Diante da destruição de direitos e desmonte de políticas públicas, a articulação entre campo e cidade mostra a importância da sociedade civil organizada. Conheça a experiência do Instituto Terra Viva, que anima, estrutura e organiza uma rede de agroecologia no fortalecimento da agricultura familiar e da economia solidária. Por Caco de Paula *

A crise que se acentua com a pandemia de Covid-19 reforça duas certezas. Primeiro, a enorme importância do Estado — independentemente de toda propaganda em contrário. Resolver grandes problemas da vida humana requer Estados confiáveis, com poder econômico e político, capazes de tomar as decisões adequadas, com visão democrática, humanitária e coletiva. A outra grande verdade é a indispensável organização da sociedade civil, desde a sua base, para maior proteção dos direitos das pessoas e do comportamento geral da sociedade. A presença do Estado, com políticas públicas efetivas, e a capacidade de organização, ação e influência da base são condições com efeitos conhecidos na vida cotidiana da população. Especialmente na agricultura familiar de base ecológica, essas condições podem beneficiar a ação de quem enxerga a natureza de forma mais holística e vê a pessoa como um ser dotado do espírito de solidariedade. Esses aspectos estão presentes na inspiradora experiência coletiva do Instituto Terra Viva, que conecta cerca de 80 famílias de produtores agroecológicos da região de Sorocaba (SP) a uma rede de economia solidária construída com parceiros de pontos de venda, distribuidores de cestas, restaurantes e centenas de famílias que, ao se nutrir desses alimentos, nutrem a própria rede.

Cultivo da mudança

O coletivo define sua missão como um trabalho pela prosperidade em seus diversos pilares, de forma digna, responsável e justa, a serviço da agroecologia, da autoconsciência, do bem-estar e da economia solidária. E declara os seus valores:  justiça, transparência, verdade, amor, solidariedade, lealdade e abundância. A semente dessa rede começou a germinar dez anos atrás, em 2011, momento em que a produção agroecológica vivia um vigoroso crescimento no Brasil. Incentivados por políticas públicas implantadas durante os governos Lula e Dilma, agricultores familiares, muitos deles produtores em assentamentos da reforma agrária e em quilombos, tiveram acesso à universidade pública, interagiram com pesquisadores no campo e contaram com programas de aquisição regular de produtos, para alimentação em escolas, hospitais e presídios. Vem dessa época a consolidação de muitos núcleos de agroecologia, como o NAAC Apêtê Caapuã (da Ufscar, campus de Sorocaba), em torno do qual se discutia a importância da diversidade e do conhecimento local – não apenas para o trabalho na terra, mas também para o cultivo da mudança social. Fermentavam-se as ideias e ampliava-se o movimento de transição, da agricultura familiar dependente do pacote tecnológico dito “convencional”, para a produção agroecológica. A aproximação entre pesquisadores e agricultores buscava a construção conjunta de conhecimento, como na proposta do educador Paulo Freire, em que ambos são capazes de educar e de se educarem. Foi nesse contexto que nasceu o Instituto Terra Viva, com a missão de contribuir para a agroecologia da região. 

Água e conhecimento

O primeiro projeto realizado pelo instituto foi sua participação na edição inicial do programa Plantando Águas, com patrocínio da Petrobras e coordenado pela organização Iniciativa Verde, que atendeu mais de 160 famílias no estado de São Paulo. O Terra Viva foi o executor do projeto na região de Sorocaba, atuando com mais de 70 famílias agricultoras, assentados e quilombolas. O trabalho incluiu a implementação de áreas de agroflorestas nos sítios, restauração de áreas de proteção permanente, instalação de equipamentos básicos de manejo e saneamento ecológico para tratar os resíduos das residências, além de assessoria técnica. O projeto sensibilizou dezenas de famílias, que se engajaram na regeneração do solo e do planeta produzindo alimentos orgânicos. Na construção conjunta de conhecimento de que falamos há pouco, agricultoras e agricultores definiram as prioridades para os sistemas agroflorestais (SAFs) em seus lotes. O trabalho é descrito no livro Sistemas Agroflorestais – experiências e reflexões, editado pela Embrapa. Cerca de 30 dessas famílias ainda fazem parte da mesma rede do Terra Viva. 

É muito simbólico que a origem do instituto e da ampliação da consciência ecológica na produção de alimentos esteja justamente numa ação de cuidado e proteção de nascentes e cursos de água. Assim como é muito prática a percepção de que, além de apoio no campo, os agricultores precisam de parceiros para fazer com que os produtos orgânicos cheguem à mesa dos consumidores. “Desde a fundação do Terra Viva era claro para nós que um dos principais gargalos das famílias agricultoras era — e continua sendo — a comercialização dos produtos, seja por falta de mão de obra, de tempo ou de logística, e assim por diante”, recorda-se a gestora ambiental Naíshi Brandão, que integra o coletivo desde seu início. “Ao finalizarmos os projetos dos quais participamos implantando SAFs, fazíamos os mutirões e nos perguntávamos sempre como e onde os agricultores poderiam escoar a produção.” 

O vigor das parcerias

O estatuto da organização já previa prestar assessoria para viabilizar a produção agroecológica por meio da comercialização. “Isso se deu  a partir da parceria com alguns atores agroecológicos de Sorocaba, que estavam reunidos no Grupo de Articulação Regional da Feira Agroecológica de Sorocaba (Garfos) e que passaram a compor essa frente de atuação na viabilização comercial da produção, que foi estimulada e em parte estruturada pelo aporte do Plantando Águas”, explica o engenheiro-agrônomo Claudio Nadaleto, que integra a equipe de campo do Terra Viva, prestando serviços no âmbito da assessoria técnica e do planejamento de produção. Da articulação com o Garfos, lá em 2013, promovida pelo biólogo Pedro Kawamura Gonçalves, então coordenador do Terra Viva, foi implementada, em parceria com a prefeitura de Sorocaba, a primeira feira de produtos orgânicos do município. As parceiras continuaram e, em 2016, uma colaboração com o (hoje extinto) coletivo Amaranto Orgânicos abriu caminho para viabilizar o Armazém Terra Viva. 

Em 2017 o armazém começou a comercialização, ainda no formato de projeto, com uma estrutura muito enxuta, tocada por Naíshi com o economista Caio Rennó José e Ari Pinheiro. Esses dois últimos, vindos do Amaranto. Durante algum tempo, toda a estrutura do armazém se resumia ao galpão emprestado pela família de Caio, a uma pequena camionete e a um único parceiro na cidade de São Paulo, o Instituto Chão, na Vila Madalena. O vigor do Terra Viva estava mesmo na rede que se fortaleceu a cada dia com as famílias de agricultores, muitas delas parceiras desde os tempos em que juntos semeavam águas. Em 2018 o coletivo ganharia novos membros e, em 2020, seria reforçado por uma entrada mais robusta de integrantes. Hoje o coletivo tem 20 participantes, que trabalham para fazer chegar a 30 parceiros em pontos de venda na capital paulista cerca de 40 toneladas de alimentos produzidos mensalmente por 84 famílias de agricultores da região de Sorocaba.

Além da comercialização, boa parte da parceria do Terra Viva com as famílias de agricultores se dá no atendimento às demandas técnicas trazidas por elas. O pano de fundo é a ausência ou inoperância das agências oficiais de assessoria técnica e extensão rural, ou “ater”, como se diz no meio agrícola. “Para além dessa ausência do Estado no campo, há principalmente a construção do conhecimento agroecológico, que é a base de nosso trabalho”, enfatiza Claudio Nadaleto. Essa assessoria se dá de diversas formas. Inclui desde a facilitação do processo de certificação orgânica por auditoria, por sistemas participativos de garantia (SPG) ou mesmo por OCS (organização de controle social). Ela se dá também tanto pela assessoria à produção em si, por meio do acompanhamento técnico agroecológico presencial, quanto remotamente, por telefone ou  WhatsApp. Prática comum antes da pandemia, as oficinas e intercâmbios para troca de experiências estão temporariamente suspensos, à espera de tempos mais propícios a encontros presenciais. 

A política do cuidado

O filósofo colombiano Bernardo Toro, que inspirou algumas das linhas do início deste texto, é quem nos lembra que “quanto maior a organização da base, maior a proteção dos direitos das pessoas e melhor o comportamento da sociedade”. Isso se aplica às escolhas na alimentação, que também são políticas. Toro gosta de citar uma frase que ganha especial significado nestes tempos de desproteção social, frase que ele atribui ao seu amigo Leonardo Boff: “Ou aprendemos a cuidar, ou todos pereceremos”. No fim, o que a rede de economia solidária formada pelo Terra Viva, pelas famílias de agricultores e pelos parceiros está fazendo é adotar um pouco dessa filosofia do cuidado, um ato de imenso significado político. “A agroecologia é um conjunto de valores e hábitos que fundem uma nova cultura, e o fruto disso são produtos saudáveis e a consciência de que não basta só tratar a saúde do ser humano desgarrado da saúde da terra, porque nós somos terra”, disse Boff em recente entrevista publicada pelo Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop). “O homem vem de húmus, terra boa, terra fértil, e há uma interação enorme entre o ser humano e a terra, a água, o solo, o que comemos e respiramos.”

No contexto da pandemia

Como ocorreu nos demais ramos da atividade humana, o cotidiano do Terra Viva foi afetado pela pandemia. Além de incluírem os protocolos de segurança sanitária, os integrantes do coletivo tiveram de se adaptar à diversificação e reformulação das operações. Pouco antes da pandemia havia sido criada a Mãnatu Orgânica, uma estrutura voltada à venda direta aos consumidores de Sorocaba e região. Como as vendas em geral tiveram um crescimento significativo nos primeiros meses pandêmicos, a Mãnatu e o armazém expandiram sua atuação e foi necessário alugar um galpão maior para organizar a distribuição. O aumento da demanda, em si, não significa que o instituto não tenha desafios a enfrentar. E não são poucos. Há muito a fazer quando se pensa na sua missão de fortalecer a agricultura familiar de base agroecológica, com ações que valorizem os saberes desses agricultores e agricultoras, materializados pela produção e pelos cuidados com a natureza e a sociedade em geral ao produzirem saúde na forma de alimentos. No nível macro, há o desgoverno e suas políticas genocidas. Internamente, os maiores desafios são remunerar melhor e garantir mais benefícios aos membros do coletivo, diversificar a atuação e aumentar a receita gerada. 

Plataforma é a reconstrução

Pesquisa recente da Articulação Nacional de Agroecologia mostra que o principal gargalo apontado pelos produtores continua sendo o apoio para os circuitos curtos de comercialização, que é justamente o trabalho que o Terra Viva faz em sua região. Um olhar sistêmico para essa atividade permite vislumbrar pontos que obrigatoriamente devem ser tratados em qualquer discussão política séria, dado seu potencial de impacto em problemas que se agravam a cada dia, como o aprofundamento da desigualdade social e o avanço da fome entre os brasileiros. Muito se pode discutir a esse respeito, mas não resta dúvida de que recuperar o que vem sendo desmontado e destruído no apoio à agricultura familiar desde o golpe de 2016 já seria, em si, uma plataforma ambiciosa e urgente.

“Diferentemente do cenário de hoje, no qual a caneta tem sido usada para tirar direitos de quem produz e de quem trabalha, um novo governo deverá reverter e aprofundar a construção de políticas de combate à fome e à insegurança alimentar, ao mesmo tempo que valoriza e cria condições para a agricultura familiar realizar suas produções”, sintetiza o economista Caio Rennó José, membro do coletivo. Ele cita políticas existentes que foram abandonadas ou desidratadas desde o golpe. Do lado das compras institucionais ele citou dois instrumentos principais: o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003 no âmbito do Programa Fome Zero), uma boa política que deve ser retomada; e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. Este deve ser aperfeiçoado, com maior valorização dos municípios que cumpram a condição de usar pelo menos 30% dos recursos na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas. 

Agroecologia como resposta

“Para estimular a produção sustentável, agroecológica, justa e que gera renda e trabalho no campesinato, o Estado deve criar programas de crédito direcionados e com as condições próprias para atender efetivamente os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária, comunidades quilombolas, caiçaras, indígenas e demais povos”, enumera Caio. Ele lembra que, além do crédito, a assessoria técnica subsidiada pelo Estado seria um grande fator para contribuir para o aperfeiçoamento das produções, aliando conhecimentos empíricos, tradicionais e científicos. 

Ele acrescenta ainda alguns pontos bem práticos: isentar de impostos o maquinário agrícola para otimizar o trabalho no campo; facilitar as condições de compra de caminhões para a agricultura familiar; incentivar a construção ou ocupação de imóveis públicos ou privados estrategicamente localizados para facilitar a locomoção dos alimentos produzidos regionalmente, concedendo contratos de comodato para associações e cooperativas locais. Como se vê, não há mistério algum sobre quais medidas reivindicar para fortalecer a agricultura familiar de base ecológica. E como já foram experimentadas em maior ou menor escala, não há dúvida sobre as suas consequências. 

“A agroecologia traz muitas respostas a problemas contemporâneos, como a falta de tolerância, de empatia, de noção de justiça, de respeito à diversidade”, diz Caio. “E isso tudo se envolve com o lugar que a gente pisa, com o que a gente come, com a forma como a gente olha para o outro”, finaliza.