Tecnologia aberta e o projeto Santos às Cegas
De um lado temos um professor ciente da não neutralidade da tecnociência capitalista e ansioso por colocar em prática os conhecimentos e os ideias da tecnologia aberta. Do outro uma cidade que necessita de maior inclusão, interação e questionamentos sobre sua história, na maioria das vezes contada a partir da ótica dos vencedores. O que saiu disso foi o Projeto Santos às Cegas, descrito aqui por seu próprio idealizador Renato Frosch *
A pandemia do coronavírus acelerou alguns processos de colaboração digital internacional, destacadamente em nosso país. Pode parecer algo distante e inoportuno comentar este aspecto em momento mundial tão calamitoso, porém, de maneira esperançosa e em alguma medida revolucionária, novas redes solidárias foram formadas, fortalecidas e geridas, por exemplo, com o desenvolvimento, produção e disponibilização dos protetores faciais, chamados popularmente de face shields. Este dispositivo foi (e é) largamente utilizado por equipes de profissionais de saúde como uma barreira mecânica de proteção à dispersão de vírus. Nesta produção, intencionalmente estruturada em pequenos grupos de trabalho, pessoas descobriram outras pessoas, muitas vezes vizinhos de bairros ou de cidades próximas a partir de suas habilidades, vontades e atuações diversas utilizando-se de tecnologia aberta e uma dose de entusiasmo em buscar contribuir de algum modo com a situação emergencial do início da pandemia.
Quando o vírus chegou à Europa, em meados do início do ano de 2019, a rede maker mundial já se mobilizava trocando e intercambiando digitalmente os arquivos que mais se adequavam a critérios de produção ágil, consumo de materiais eficazes e adequação às legislações sanitárias de cada país. Portanto, não é distante dizer que a tecnologia aberta, por meio de recursos do compartilhamento digital, fez com que essas face shields fossem executadas de maneira colaborativa antes mesmo da chegada do vírus ao Brasil, em março de 2020.
Vale destacar aqui dois pontos do contexto de tecnologia aberta abordados neste texto: o compartilhamento e o fazer digital. O compartilhamento (em inglês, share) é o ato de trocar arquivos em perspectiva do open source (ou o código aberto) de projetos de algum objeto ou produto. E o fazer digital é o ato de produção em pequena e média escala utilizando-se de máquinas que tiveram prazos de patentes findados e assim estimularam, por via menos burocratizada, a aceleração da fabricação digital chegar ao acesso mais popular, por exemplo o uso de impressoras 3d.
Santos às Cegas
Neste contexto de experiência e reconhecimento prático da tecnologia aberta, em novembro de 2020, surge o Projeto “Santos às Cegas”. Motivado por edital da Secretaria da Cultura da Prefeitura de Santos/SP, relacionado ao Prêmio Alcides Mesquita, o projeto tem seu início operacional nos meses de janeiro e fevereiro de 2021.
O projeto tem como objetivo dar acesso às pessoas com e sem deficiência a trajetos ao longo da ciclovia de Santos/SP, com paradas pedagogicamente mediadas a monumentos, prédios de interesse histórico e outros espaços urbanos, como praças e outros contextos da cidade.
A tecnologia aberta, no caso aquelas utilizadas no projeto, se traduz por meio de ações da cultura maker que é entendida pelas ações do “faça você mesmo”. Do inglês, do it yourself (DiY), o que entendemos hoje como cultura maker nasce de modo mais estruturado em 2001, com o estadunidense Neil Gershenfeld, quando diretor do Center of Bits and Atoms – CBA, do MIT. Motivado pela necessidade de resolver problemas de ordem tecnológica cada vez mais multidisciplinares, encarando-os como um processo e de modo mais rápido, criou uma disciplina chamada “How to make (almost) everything”, algo traduzido livremente como, “Como fazer (quase) todas as coisas”.
Para que o projeto pudesse ocorrer em Santos a partir destes princípios da tecnologia aberta e de modo integrado e democrático foram desenvolvidas réplicas em modelos digitais impressos em 3d de monumentos e também desenvolvida e adaptada uma bicicleta dupla em modelo triciclo. O triciclo acolhe, por exemplo, as pessoas com deficiência visual que podem fazer parte dos percursos e também pessoas que não possuem habilidade em andar de bicicleta.
Cabe uma abordagem que o projeto implantado na cidade de Santos tem a possibilidade de ser expandido para outras cidades, devido à sua facilidade de operação a partir de metodologia desenvolvida.
Na metodologia citada, um ponto que se destaca e que passa pela tecnologia aberta é a produção dos monumentos do trajeto, em formato de miniaturas com uso de recursos da impressão 3d. Para dimensionamento das paradas foram, escolhidos de modo intencional monumentos que além de representatividade histórica e urbana provocassem reflexões críticas, da própria implantação daquele patrimônio e especificidades dos monumentos.
Aqui cabe um aprofundamento conceitual de que há movimentos mundiais, bastante evidentes na Europa e em países latino-americanos como Argentina (que em 2013 substituiu uma escultura de Cristóvão Colombo por liderança indígena), Chile e Colômbia, que colocam em pauta a retirada ou substituição de monumentos que fazem referência a personagens escravocratas, racistas e outros.
Vale entender, também, que os monumentos são o ponto de partida para suscitar as discussões relacionadas à memória e, por outro lado, a simples retirada de uma escultura como vem ocorrendo em outros países, parece não resolver por completo as discussões relativas a determinadas representatividades e contextos. É neste âmbito, da ação afirmativa de reconhecimento das memórias relacionadas aos monumentos, suas interpretações e olhar crítico de celebrações ou desvios delas que o projeto se posiciona.
Foram produzidas aproximadamente 20 réplicas com o uso de fabricação digital e o trajeto tem paradas nestes monumentos. Alguns locais não foram produzidas réplicas mas também oferecem paradas pedagógicas que contribuem para discussão e reflexão a respeito das aprendizagens que determinadas estátuas podem ajudar a entender ou desconfiar de definições muitas vezes estereotipadas a certos contextos.
Monumentos, tecnologia aberta e acessibilidade
Alguns exemplos dos monumentos que o projeto “Santos às cegas” oferece como paradas para reconhecimento tátil das réplicas e dos próprios monumentos são a Escultura dos 100 anos da Imigração Japonesa; Lydia Federici / Maria José Resende; e o de 500 anos do “descobrimento”, ou seja de cinco séculos da invasão européia ao território que viria a ser chamado Brasil.
Além do apoio dos requisitos da tecnologia aberta para produção das réplicas para acesso inclusivo, como citados anteriormente o fazer e o compartilhamento digital, há muitas tarefas artesanais realizadas para garantia de contrastes visuais e táteis, como o uso de pinturas e texturas diferentes que apoiam o uso destas réplicas por pessoas nas mais variadas habilidades sensoriais, como a visão ou o conforto tátil.
O monumento dos 100 anos da imigração japonesa, da artista Tomie Ohtake, homenageia a chegada do navio Kasato Maru, em 1908, ao Porto de Santos. O Kasato Maru foi originalmente um navio russo chamado Kazan que foi utilizado como navio-hospital durante a Guerra Russo-Japonesa. Foi adaptado para ser um navio de passageiros e transportou os soldados que tinham combatido na Manchúria de volta para o Japão.
Em 1908, o navio trouxe o primeiro grupo de imigrantes japoneses para o Brasil. A viagem começou no porto de Kobe e terminou 52 dias depois, no Porto de Santos em 18 de junho de 1908. Vieram nesta viagem de imigração 165 famílias que foram trabalhar, em grande parte, nos cafezais do oeste paulista.
Em 1907 alguns imigrantes japoneses chegaram ao Brasil, período de aproximadamente 7 meses antes da chegada do Kasato Maru, e há registros que chegaram a fundar uma colônia agrícola na fazenda Santo Antônio, no atual município de Conceição de Macabu (então distrito de Macaé), no estado do Rio de Janeiro. Entretanto, foi a chegada deste primeiro grupo trazido pelo Kasato Maru que iniciou um fluxo contínuo de imigração de japoneses para o Brasil.
É este contexto, por exemplo do aprofundamento e reflexão histórica de que já havia japoneses no Brasil mesmo antes da chegada do Kasato Maru e relevância monumental de abordagem também de outros povos que se desenrola nosso trajeto. Assim, a ressignificação e a valorização das nossas ancestralidades em contexto plurinacional são colocados em discussão durante o circuito do projeto, para amparo e enriquecimento da avaliação e entendimentos dos temas de memória.
Já a parada à frente das esculturas de Lydia Federici e Maria José Resende apontam para uma grande disparidade entre representações masculinas quando comparadas a das figuras femininas isoladas. A cidade de Santos tem apenas três monumentos em áreas públicas representando figuras femininas – apenas 3% dos cerca de 130 localizados em áreas públicas na cidade. Para piorar, as duas já citadas estão situadas lado a lado na orla da praia próximo ao canal 3, e a terceira – Maria Coelho Lopes – não se encontra mais no seu local original, na Zona Noroeste, por motivo de furto ou vandalismo. Lembrando: esse levantamento não inclui figuras míticas ou religiosas, como: Yemanjá, Ninfa e Sereias
Na cidade de São Paulo a situação é ainda mais crítica. Em informação de 2020, das 370 esculturas em locais públicos apenas 5 – 1,3% – são de representações de mulheres, levando-se em conta a exclusão de figuras genéricas e divinas, como na metodologia do caso de Santos.
Por fim, a escultura dos 500 anos do “Descobrimento” na praça do Aquário (Praça Vereador Luiz La Scala), de Regina Maria Lourenço Adegas e Rica Mota, foi construída pela comunidade portuguesa da cidade e foi inaugurada no Dia de Portugal, em 10 de junho de 1988. Mas, ao mesmo tempo: que território invadido homenageia os invasores em um dos lugares de maior destaque da cidade? E para ampliação da memória, quais as outras esculturas da cidade ou mesmo de outros locais homenageiam os povos originários que já estavam por aqui antes dos europeus? E com essa pergunta, é feita conexão com um monumento que fica na Universidade Federal de Santa Catarina.
Trata-se de um monumento que ajuda a entender a representação da caravela santista em homenagem aos 500 anos da conquista mas também, como um contraponto de valorização da memória às pessoas que estavam aqui antes do holocausto indígena chamado de descrobrimento. O monumento na UFSC foi inaugurado em 1995 e elaborado por Ivens Fontoura, Aurora Mendes e Márcia Simões. A motivação para criação do monumento surgiu da iniciativa de um dos reitores da Universidade, em 1992, de realizar um concurso para um projeto de edificação monumental. O Novo Sol, além de representar a ruptura cultural ocorrida a partir do genocídio realizado pels europeus, segundo o Departamento Artístitico Cultural da UFSC, serve para “ser uma critica à forma como foi iniciado o processo colonial”, formar “uma nova mentalidade de consciência crítica com relação à realidade”, e também “servir à recuperação da dignidade e emancipação dos povos, e à garantia dos direitos humanos”.
É este contexto histórico e de memória que, apoiado no ferramental da tecnologia, aberta temos a possibilidade de analisar e refletir que o projeto “Santos às cegas” propõe um roteiro inclusivo nos aspectos sensoriais e históricos, que vai além da contemplação artística ofertada pela cidade, mas sobretudo uma profunda argumentação para novos olhares experienciais e críticos ao modo que nos relacionamos com as comunidades e com outros cenários de apagamentos ou ainda, dos conteúdos valiosos deturpados ou assertivos a determinados contextos sociais e educacionais.
Dessa forma, o projeto aqui retratado tem sido fundamental para que pessoas com e sem deficiência conheçam e reconheçam estas abordagens, de modo livre e gratuito, por conta da parceria com a Prefeitura de Santos. Afinal, importa que saibamos a razão de existir de cada monumento, para que possamos questionar se seu papel social serve para reafirmar as relações de poder injustas ou para edificar um modelo de sociedade mais justo. Proporcionar esse conhecimento a todos e todas é auxiliar de forma decisiva na democratização do acesso à cidadania no município de Santos.
* Professor universitário, doutor em educação, mestre em Engenharia civil, promotor e articulador de projetos de inovação cidadã com foco na inclusão das pessoas com deficiência com o uso da fabricação digital. Autor do livro “O mundo em 3d”