Tecnologia aberta e o projeto Santos às Cegas

De um lado temos um professor ciente da não neutralidade da tecnociência capitalista e ansioso por colocar em prática os conhecimentos e os ideias da tecnologia aberta. Do outro uma cidade que necessita de maior inclusão, interação e questionamentos sobre sua história, na maioria das vezes contada a partir da ótica dos vencedores. O que saiu disso foi o Projeto Santos às Cegas, descrito aqui por seu próprio idealizador Renato Frosch *

A pandemia do coronavírus acelerou alguns processos de colaboração digital internacional, destacadamente em nosso país. Pode parecer algo distante e inoportuno comentar este aspecto em momento mundial tão calamitoso, porém, de maneira esperançosa e em alguma medida revolucionária, novas redes solidárias foram formadas, fortalecidas e geridas, por exemplo, com o desenvolvimento, produção e disponibilização dos protetores faciais, chamados popularmente de face shields. Este dispositivo foi (e é) largamente utilizado por equipes de profissionais de saúde como uma barreira mecânica de proteção à dispersão de vírus. Nesta produção, intencionalmente estruturada em pequenos grupos de trabalho, pessoas descobriram outras pessoas, muitas vezes vizinhos de bairros ou de cidades próximas a partir de suas habilidades, vontades e atuações diversas utilizando-se de tecnologia aberta e uma dose de entusiasmo em buscar contribuir de algum modo com a situação emergencial do início da pandemia.

Quando o vírus chegou à Europa, em meados do início do ano de 2019, a rede maker mundial já se mobilizava trocando e intercambiando digitalmente os arquivos que mais se adequavam a critérios de produção ágil, consumo de materiais eficazes e adequação às legislações sanitárias de cada país. Portanto, não é distante dizer que a tecnologia aberta, por meio de recursos do compartilhamento digital, fez com que essas face shields fossem executadas de maneira colaborativa antes mesmo da chegada do vírus ao Brasil, em março de 2020.

Vale destacar aqui dois pontos do contexto de tecnologia aberta abordados neste texto: o compartilhamento e o fazer digital. O compartilhamento (em inglês, share) é o ato de trocar arquivos em perspectiva do open source (ou o código aberto) de projetos de algum objeto ou produto. E o fazer digital é o ato de produção em pequena e média escala utilizando-se de máquinas que tiveram prazos de patentes findados e assim estimularam, por via menos burocratizada, a aceleração da fabricação digital chegar ao acesso mais popular, por exemplo o uso de impressoras 3d.

Santos às Cegas

Neste contexto de experiência e reconhecimento prático da tecnologia aberta, em novembro de 2020, surge o Projeto “Santos às Cegas”. Motivado por edital da Secretaria da Cultura da Prefeitura de Santos/SP, relacionado ao Prêmio Alcides Mesquita, o projeto tem seu início operacional nos meses de janeiro e fevereiro de 2021.

O projeto tem como objetivo dar acesso às pessoas com e sem deficiência a trajetos ao longo da ciclovia de Santos/SP, com paradas pedagogicamente mediadas a monumentos, prédios de interesse histórico e outros espaços urbanos, como praças e outros contextos da cidade.

A tecnologia aberta, no caso aquelas utilizadas no projeto, se traduz por meio de ações da cultura maker que é entendida pelas ações do “faça você mesmo”. Do inglês, do it yourself (DiY), o que entendemos hoje como cultura maker nasce de modo mais estruturado em 2001, com o estadunidense Neil Gershenfeld, quando diretor do Center of Bits and Atoms – CBA, do MIT. Motivado pela necessidade de resolver problemas de ordem tecnológica cada vez mais multidisciplinares, encarando-os como um processo e de modo mais rápido, criou uma disciplina chamada “How to make (almost) everything”, algo traduzido livremente como, “Como fazer (quase) todas as coisas”.

Para que o projeto pudesse ocorrer em Santos a partir destes princípios da tecnologia aberta e de modo integrado e democrático foram desenvolvidas réplicas em modelos digitais impressos em 3d de monumentos e também desenvolvida e adaptada uma bicicleta dupla em modelo triciclo. O triciclo acolhe, por exemplo, as pessoas com deficiência visual que podem fazer parte dos percursos e também pessoas que não possuem habilidade em andar de bicicleta.

Cabe uma abordagem que o projeto implantado na cidade de Santos tem a possibilidade de ser expandido para outras cidades, devido à sua facilidade de operação a partir de metodologia desenvolvida.

Na metodologia citada, um ponto que se destaca e que passa pela tecnologia aberta é a produção dos monumentos do trajeto, em formato de miniaturas com uso de recursos da impressão 3d. Para dimensionamento das paradas foram, escolhidos de modo intencional monumentos que além de representatividade histórica e urbana provocassem reflexões críticas, da própria implantação daquele patrimônio e especificidades dos monumentos.

Aqui cabe um aprofundamento conceitual de que há movimentos mundiais, bastante evidentes na Europa e em países latino-americanos como Argentina (que em 2013 substituiu uma escultura de Cristóvão Colombo por liderança indígena), Chile e Colômbia, que colocam em pauta a retirada ou substituição de monumentos que fazem referência a personagens escravocratas, racistas e outros.

Vale entender, também, que os monumentos são o ponto de partida para suscitar as discussões relacionadas à memória e, por outro lado, a simples retirada de uma escultura como vem ocorrendo em outros países, parece não resolver por completo as discussões relativas a determinadas representatividades e contextos. É neste âmbito, da ação afirmativa de reconhecimento das memórias relacionadas aos monumentos, suas interpretações e olhar crítico de celebrações ou desvios delas que o projeto se posiciona.

Foram produzidas aproximadamente 20 réplicas com o uso de fabricação digital e o trajeto tem paradas nestes monumentos. Alguns locais não foram produzidas réplicas mas também oferecem paradas pedagógicas que contribuem para discussão e reflexão a respeito das aprendizagens que determinadas estátuas podem ajudar a entender ou desconfiar de definições muitas vezes estereotipadas a certos contextos.

Monumentos, tecnologia aberta e acessibilidade

Alguns exemplos dos monumentos que o projeto “Santos às cegas” oferece como paradas para reconhecimento tátil das réplicas e dos próprios monumentos são a Escultura dos 100 anos da Imigração Japonesa; Lydia Federici / Maria José Resende; e o de 500 anos do “descobrimento”, ou seja de cinco séculos da invasão européia ao território que viria a ser chamado Brasil.

Além do apoio dos requisitos da tecnologia aberta para produção das réplicas para acesso inclusivo, como citados  anteriormente o fazer e o compartilhamento digital, há muitas tarefas artesanais realizadas para garantia de contrastes visuais e táteis, como o uso de pinturas e texturas diferentes que apoiam o uso destas réplicas por pessoas nas mais variadas habilidades sensoriais, como a visão ou o conforto tátil.

O monumento dos 100 anos da imigração japonesa, da artista Tomie Ohtake, homenageia a chegada do navio Kasato Maru, em 1908, ao Porto de Santos. O Kasato Maru foi originalmente um navio russo chamado Kazan que foi utilizado como navio-hospital durante a Guerra Russo-Japonesa. Foi adaptado para ser um navio de passageiros e transportou os soldados que tinham combatido na Manchúria de volta para o Japão.

Em 1908, o navio trouxe o primeiro grupo de imigrantes japoneses para o Brasil. A viagem começou no porto de Kobe e terminou 52 dias depois, no Porto de Santos em 18 de junho de 1908. Vieram nesta viagem de imigração 165 famílias que foram trabalhar, em grande parte, nos cafezais do oeste paulista.

Em 1907 alguns imigrantes japoneses chegaram ao Brasil, período de aproximadamente 7 meses antes da chegada do Kasato Maru, e há registros que chegaram a fundar uma colônia agrícola na fazenda Santo Antônio, no atual município de Conceição de Macabu (então distrito de Macaé), no estado do Rio de Janeiro. Entretanto, foi a chegada deste primeiro grupo trazido pelo Kasato Maru que iniciou um fluxo contínuo de imigração de japoneses para o Brasil. 

É este contexto, por exemplo do aprofundamento e reflexão histórica de que já havia japoneses no Brasil mesmo antes da chegada do Kasato Maru e relevância monumental de abordagem também de outros povos que se desenrola nosso trajeto. Assim, a ressignificação e a valorização das nossas ancestralidades em contexto plurinacional  são colocados em discussão durante o circuito do projeto, para amparo e enriquecimento da avaliação e entendimentos dos temas de memória.

Já a parada à frente das esculturas de Lydia Federici e Maria José Resende apontam para uma grande disparidade entre representações masculinas quando comparadas a das figuras femininas isoladas. A cidade de Santos tem apenas três monumentos em áreas públicas representando figuras femininas – apenas 3% dos cerca de 130 localizados em áreas públicas na cidade. Para piorar, as duas já citadas estão situadas lado a lado na orla da praia próximo ao canal 3, e a terceira – Maria Coelho Lopes – não se encontra mais no seu local original, na Zona Noroeste, por motivo de furto ou vandalismo. Lembrando: esse levantamento não inclui figuras míticas ou religiosas, como: Yemanjá, Ninfa e Sereias

Na cidade de São Paulo a situação é ainda mais crítica. Em informação de 2020, das 370 esculturas em locais públicos apenas 5 – 1,3% – são de representações de mulheres, levando-se em conta a exclusão de figuras genéricas e divinas, como na metodologia do caso de Santos.

Por fim, a escultura dos 500 anos do “Descobrimento” na praça do Aquário (Praça Vereador Luiz La Scala), de Regina Maria Lourenço Adegas e Rica Mota, foi construída pela comunidade portuguesa da cidade e foi inaugurada no Dia de Portugal, em 10 de junho de 1988. Mas, ao mesmo tempo: que território invadido homenageia os invasores em um dos lugares de maior destaque da cidade? E para ampliação da memória, quais as outras esculturas da cidade ou mesmo de outros locais homenageiam os povos originários que já estavam por aqui antes dos europeus? E com essa pergunta, é feita conexão com um monumento que fica na Universidade Federal de Santa Catarina.

Trata-se de um monumento que ajuda a entender a representação da caravela santista em homenagem aos 500 anos da conquista mas também, como um contraponto de valorização da memória às pessoas que estavam aqui antes do holocausto indígena chamado de descrobrimento. O monumento na UFSC foi inaugurado em 1995 e elaborado por Ivens Fontoura, Aurora Mendes e Márcia Simões. A motivação para criação do monumento surgiu da iniciativa de um dos reitores da Universidade, em 1992, de realizar um concurso para um projeto de edificação monumental. O Novo Sol​, além de representar a ruptura cultural ocorrida a partir do genocídio realizado pels europeus, segundo o Departamento Artístitico Cultural da UFSC, serve para “ser uma critica à forma como foi iniciado o processo colonial”,  formar “uma nova mentalidade de consciência crítica com relação à realidade”, e também “servir à recuperação da dignidade e emancipação dos povos, e à garantia dos direitos humanos”.

É este contexto histórico e de memória que, apoiado no ferramental da tecnologia, aberta temos a possibilidade de analisar e refletir que o projeto “Santos às cegas” propõe um roteiro inclusivo nos aspectos sensoriais e históricos, que vai além da contemplação artística ofertada pela cidade, mas sobretudo uma profunda argumentação para novos olhares experienciais e críticos ao modo que nos relacionamos com as comunidades e com outros cenários de apagamentos ou ainda, dos conteúdos valiosos deturpados ou assertivos a determinados contextos sociais e educacionais.

Dessa forma, o projeto aqui retratado tem sido fundamental para que pessoas com e sem deficiência conheçam e reconheçam estas abordagens, de modo livre e gratuito, por conta da parceria com a Prefeitura de Santos. Afinal, importa que saibamos a razão de existir de cada monumento, para que possamos questionar se seu papel social serve para reafirmar as relações de poder injustas ou para edificar um modelo de sociedade mais justo. Proporcionar esse conhecimento a todos e todas é auxiliar de forma decisiva na democratização do acesso à cidadania no município de Santos.

* Professor universitário, doutor em educação, mestre em Engenharia civil, promotor e articulador de projetos de inovação cidadã com foco na inclusão das pessoas com deficiência com o uso da fabricação digital. Autor do livro “O mundo em 3d”

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Red Cecosesola: Transformação social a partir da organização comunitária

Há 45 anos, surgia na Venezuela uma organização comunitária, com um propósito muito específico: oferecer à comunidade um serviço funerário digno e não especulativo. Mas a sociedade demandava muito mais que isso, e logo a Red Cecosesola se tornou uma rede, múltipla, reunindo dezenas de serviços e mais de mil colaboradores e colaboradoras. Em meio a um país politicamente efervescente e com as finanças oscilando da prosperidade à miséria, muitos venezuelanos encontram nessa rede sua tábua de salvação. Conheça mais sobre a história e trabalho desse movimento, através desse depoimento escrito coletivamente pelos seus próprios membros

A Central de Cooperativas de Lara (Cecosesola) é composta por uma rede de cerca de 50 organizações comunitárias dos setores populares dedicadas à produção de bens e serviços, sendo localizadas em sete entidades federativas da Venezuela. Há mais de 45 anos alimentamos um processo de transformação cultural que se baseia em ir descobrindo outras maneiras de nos relacionar. Trata-se de ir sobrepondo as relações patriarcais que, ao longo de milhares de anos, propiciaram a dominação de uns poucos seres humanos sobre os demais, incluindo tudo o que é vida em nosso planeta. Vemos tais maneiras de se relacionar como transformáveis, porque têm uma origem cultural.

É um processo que não se limita aos mais de 1200 trabalhadores e trabalhadoras associados, que colaboram diretamente na gestão da rede, mas que se irradia a qualquer um que se identifique com ele, e em especial se espraia até nossos familiares, amigos e amigas, assim como também impactam as dezenas de milhares de pessoas que se aproximam pela qualidade e a questão econômica de nossos serviços. 

Nossos inícios

Nosso início foi no ano de 1967 com o serviço funerário, respondendo a uma necessidade muito sentida nos setores populares. Assim como hoje em dia, existia uma grande especulação das funerárias privadas. 

A criação da Cecosesola foi um processo de cerca de dez meses onde, junto de dezenas de habitantes dos setores populares, participamos e demos vida às recém-criadas cooperativas da região. Com muito entusiasmo, nos reuníamos até altas horas da madrugada. Assim prevaleceram os critérios de trabalhar com recursos próprios, além de promover a inclusão, e sempre respeitando a diversidade política e religiosa.

Porém, pouco tempo após a Cecosesola ser legalizada como uma Central de Cooperativas, foi se esvaindo a paixão. Como ocorre em muitas ocasiões, a essência da cooperativa passou a ser definida por seus estatutos, uns estatutos convencionais que, ao invés de integrar, criam separações: o conselho de administração tinha plenos poderes para administrar a cooperativa até a próxima assembleia anual; não se permitia que o conselho de vigilância, participasse das decisões; havia um comitê para “transmitir” educação, ratificando a tradicional separação entre o que transmite seu saber e as outras pessoas que não têm nada ou pouco a agregar; a participação das trabalhadoras e trabalhadores das cooperativas afiliadas por meio de suas delegadas e delegados ficava relegada à tradicional assembleia anual. Assim, esse espaço de participação foi o que restou para a maior parte das pessoas que havíamos envolvido de forma entusiasmada na criação de nossa central cooperativa. . 

O que nos move

O impulso para a criação da Cecosesola foi uma necessidade muito sentida pelos setores populares: ter acesso a um serviço funerário digno e não especulativo. Nossa razão de ser se apoiava na prestação de serviços às pessoas associadas das cooperativas afiliadas.

Atualmente, nossa razão de ser se apoia em um processo educativo de transformação cultural com base na reflexão coletiva sobre o fazer diário. Nossas variadas atividades são os espaços que nos permitem desenvolver esse processo.

O impulso para ir aprofundando esse processo transformador que nos demandamos hoje em dia, iniciou-se no quinto ano de existência da Cecosesola. Começou com um questionamento ao rumo que nossa central cooperativa havia tomado, ao se burocratizar e se limitar a ser uma cooperativa tradicional de (e para) seus associados e associadas, sem maior compromisso social com seu entorno. Além disso, se questionava o conceito educativo de “transmitir” educação, contrário a um processo de compromisso social com base na reflexão sobre o fazer diário. Entre dar o peixe ou ensinar a pescar, decidimos passar a pescar juntos, incorporando a participação de todos e todas, compartilhando nossos conhecimentos e descobrimentos, resgatando assim a essência do nosso início. 

Mudança repentina de rumos: a experiência do Serviço Cooperativo de Transporte

Em 1974, fomos mais um a se integrar às mobilizações dos setores populares contra o aumento da passagem do transporte público. E, posteriormente, depois de cerca de 20 meses de numerosos protestos contra o dito aumento, assumimos a maior parte do serviço de transporte de ônibus da cidade de Barquisimeto, com o compromisso de manter a tarifa. 

Tratava-se de um serviço público a ser gerido com a participação plena das pessoas que trabalhavam com o transporte, assim como também com a comunidade usuária. Além disso, os ônibus constituíam uma ferramenta a serviço das lutas populares. Sendo assim, abruptamente, a Cecosesola deixou de ser fundamentalmente uma cooperativa de (e para) seus associados, começando um novo processo que nos levou ao que vamos nos tornando hoje em dia.

Enfrentados pelo poder

Coincidindo com a chegada dos primeiros ônibus, o país iniciou um processo inflacionário que tornou impossível manter o preço da passagem com a receita existente. Por isso, a partir dos setores populares e do movimento estudantil, efetuamos massivas manifestações em defesa do subsídio necessário. Nossa capacidade de mobilização era muito superior à dos partidos políticos, de maneira que a Cecosesola foi se convertendo em uma referência de poder temida, não só pelo governo vigente, mas também pela maioria dos partidos de diferentes ideologias.

A imprensa foi se aliando com o governo, chegando ao ponto em que o Ministro das Relações Interiores impôs instruções às mídias para que não publicassem nossas declarações, por serem supostamente de um movimento subversivo de extrema esquerda. Isso apesar de nunca termos tido filiação política. Em várias ocasiões fomos detidos pelas forças policiais.

Por quatro anos, mantivemos igual a tarifa da passagem, até nossas instalações de transporte foram apreendidas pelo governo em março de 1980. O conselho municipal assumiu a administração do serviço e imediatamente duplicou o seu valor, e só nos devolveriam os ônibus se nossa diretriz fosse substituída por outra disposta a se desfazer do Serviço Cooperativo de Transporte.

A assembleia da Cecosesola negou esta petição e só depois de mais quatro meses de resistência, conseguimos resgatar a frota de ônibus que havia sido 70% destruída pela administração governamental. As perdas econômicas e as dívidas contraídas ao fechar o serviço em 1985 terminaram ficando na ordem dos US$ 7 milhões. Tratava-se de uma perda de 30 vezes o capital investido, em uma conjuntura econômica impossível de superar operando com critérios empresariais. Assim, quebrados economicamente, nossa possibilidade de sobreviver residia no processo educativo de autogestão iniciado no próprio Serviço Cooperativo de Transporte.

Havíamos vivido nossa primeira experiência de ir enfraquecendo as hierarquias, fomentando um processo participativo das pessoas que autogeriam diretamente os serviços, assim como das comunidades, um processo que já nessa época havia propiciado um incipiente, mas significativo sentido de identidade. Ao nos apoiarmos nessa vivência, e sem capital financeiro, no ano de 1983 iniciamos as Feiras de Consumo Familiar (nossos atuais mercados cooperativos). Com os recursos gerados por ela, saldamos todas as dívidas contraídas, e, ainda por cima, as feiras tornaram-se o motor econômico principal das atividades atuais da Rede Cecosesola. 

Nota-se que essas múltiplas atividades se desenrolaram majoritariamente utilizando recursos próprios. Como exemplo temos a construção de nosso Centro Integral Cooperativo de Saúde, avaliado em cerca de US$ 3 milhões – no qual investimos uma porcentagem importante dos excedentes das feiras, assim como o produzido por diferentes iniciativas cooperativas.

Novos caminhos e relações com o poder

Depois da experiência do Serviço Cooperativo de Transporte, a Rede tomaria um rumo diferente. Já não seria mais a mesma. Ainda que mantidos e reforçados nossos fundamentos iniciais, a autogestão foi continuada e aprofundada num processo de transformação pessoal e organizacional que nos levou por outros caminhos.

Nesta caminhada aprendemos que nosso processo aberto à diversidade entra em contradição com o mundo da luta pelo ou contra o poder. As relações de competição que se geram nesta luta poderiam ser uma das principais causas que nos levaram à crise humanitária atual e constituem justamente as relações que tentamos transformar. 

Fomos aprendendo a evitar que nossos encontros e reuniões se constituíssem em instâncias burocráticas obrigatórias para tomar decisões, de tal maneira que qualquer um possa desenvolver iniciativas sem passar por esse filtro. Ainda que as reuniões sirvam para tomar decisões, este não é seu papel fundamental. O fundamental se encontra na conversação sobre nossas maneiras de nos relacionar, assim como em ir consensuando critérios coletivos baseados em nossos fundamentos éticos de responsabilidade, apoio mútuo e equidade.

Assim promovemos a ideia de que nos tornássemos responsáveis e atuássemos sem necessidade de esperar uma reunião, amparados sobre os critérios e fundamentos que fomos construindo. Mas é claro que, no caso de uma pessoa atuar por critérios pessoais, descolados dos critérios e fundamentos coletivos, se colocaria fora de nossos consensos assumindo individualmente as consequências dessa ação. 

Nem um nem outro

Assim, fomos deixando de ser uma organização vertical, mas sem tampouco querer nos converter em uma organização horizontal onde tudo, ou quase tudo, tenha que passar por uma reunião, organizações estas que tendem a ser ainda mais burocráticas que as verticais. Nem um, nem outro. Tentamos ir mais além da dualidade de ser horizontal ou vertical, imposta pelos nossos conceitos culturais. Trata-se de um projeto coletivo (mas não coletivista), onde estamos muito pendentes dos mecanismos culturais de nivelação que tendem a reduzir cada qual ao menor denominador comum, castrando nossa evolução pessoal. O fundamental é essa evolução individual, que transcende o individualismo. 

Desta maneira vamos aprendendo que as relações niveladoras são como um tumor que faz metástase rapidamente se não se corta a tempo. Sugam nossas energias assim como a kriptonita faz com o Super-Homem.

O simples e o complexo

Aprendemos além de tudo que sair das relações hierárquicas não se decreta, tampouco se pode decretar a confiança, e que a equidade só se constrói enquanto reconhecemos e respeitamos o que nos diferencia pois não somos iguais. Muitos elementos que tendemos a considerar naturais e insubstituíveis para realização de qualquer atividade, não são só desnecessários, mas também podem se converter em impedimentos que em vez de integrar, dividem e separam. Como exemplo, a negativa a compartilhar as responsabilidades, a inviolabilidade das leis de mercado, a competição como regra de ouro da produtividade, a diferenciação salarial como elemento fundamental de motivação, assim como a ênfase na especialização. 

Assim compreendemos que fomos formados em uma sociedade da separação. De tal maneira que vivemos imersos numa cultura que tende a dar ênfase ao que nos separa, mas não na imensa riqueza que nos une, pois todos e todas buscamos resolver as mesmas necessidades. Contrariamente, nosso processo vai até a integração, construindo relações harmônicas de confiança e respeito baseadas na responsabilidade, equidade e no apoio mútuo. Enfim, em relações empáticas e compassivas. 

Derrubando fronteiras

Desde a época dos ônibus propiciamos a participação das comunidades na gestão dos serviços da rede. Trata-se de um esforço permanente para transcender essa fronteira entre o que serve e o que é servido. Um esforço que implica ser consequentes com nossos fundamentos éticos sendo fiel a palavra empenhada. 

O resultado foi uma crescente identificação da população em geral com o que vamos nos tornando. 

Essa relação comunitária empática continuou a se aprofundar com o tempo e ante às situações dramáticas que vão acontecendo com o país, tentamos responder solidariamente. Por exemplo, nos anos de extrema escassez de produtos básicos, entre os anos de 2014 e 2018, nossas feiras eram a principal alternativa que tinham grande parte das pessoas para conseguir alguns desses produtos.

Enquanto muitos negócios se desfaziam rapidamente das mercadorias que escasseavam vendendo-as por maior volume, em nosso caso distribuíamos com critérios de equidade, buscando que o pouco que se tinha alcançasse o máximo número de pessoas. Podia ser só um quilo de macarrão, arroz ou farinha de mandioca por pessoa. De igual maneira, as trabalhadoras e trabalhadores que geriam diretamente os serviços da rede podiam levar a mesma quantidade. 

Nessa época, mais de cem mil pessoas vinham semanalmente fazer suas compras, nos mais de 300 entrepostos existentes. O trabalho começava às 6 da manhã e ia até altas horas da noite (em uma ocasião até as 23h). Só fechávamos os portões quando a última pessoa fazia suas compras, para levar a seu lar algo de comer.

Na ocasião do apagão elétrico de cinco dias em março de 2018, com a maioria da população sem condições para fazer suas compras e sem luz nos pontos de venda, os negócios que comercializavam comida na cidade fecharam suas portas temendo saques. Contrariamente, nossas feiras se mantiveram abertas fornecendo mais de 100 toneladas de verduras, o que para muitos foi sua única possibilidade de levar comida às suas casas.

Essa longa história de empatia comunitária concorda com os resultados de uma pesquisa, realizada na cidade de Barquisimeto pelo Centro Gumilla, e financiada pela Unviersidade Católica Andrés Bello (2018), dentro da qual foi ressaltado que 90% dos entrevistados respondeu que, se alguém tentasse prejudicar a Cecosesola, a apoiaria e faria qualquer coisa para defendê-la. 

Isto se manifesta diariamente na atitude de cuidado pelos serviços da rede e por uma confiança em participar, seja pessoalmente ou por meio das redes, dando opiniões ou sugestões. 

Resiliência: uma história de tenacidade e flexibilidade

A capacidade de resiliência, demonstrada ante a derrocada econômica derivada da experiência do Serviço Cooperativo de Transporte, foi se aprofundando com o tempo, e se manifesta hoje diante da dramática situação que se vive no país, agora ampliada com a chegada da pandemia. 

Ao longo dos anos, enfrentamos os “vai e vem” do país, entre eles, saques massivos, três golpes de Estado, violentas manifestações ao redor de nossas instalações e também, diante das intrigas políticas da época, desenrolando estratégias de sobrevivência quando o governo venezuelano tinha como política a expropriação de múltiplas empresas por decreto. 

A essa altura, pelo que se dizia nos corredores, já não éramos o movimento subversivo de extrema esquerda dos anos 1970, mas, por capricho da graça, tínhamos nos convertido em capitalistas raquíticos. 

E foi assim durante os últimos tempos, uma vez passada a bonança petroleira e agora com o bloqueio e a pandemia, o que se evidencia de novo com força é a resiliência que se encontra implícita em nosso processo transformador. 

Foi um período no qual tivemos que nos adaptar praticamente de imediato às mudanças permanentes tanto das leis como das regras do jogo informal, sabendo intuir quando uma predomina sobre a outra e, ao mesmo tempo, ter presente nossa posição ética ante o avanço crescente da corrupção.

Estamos enfrentando uma realidade permanentemente mutável, que nos exige a flexibilidade de adaptação ante as novas situações que vão se apresentando, muitas vezes sem aviso prévio. Vivenciamos uma inflação que obrigou a cortarmos oito zeros da moeda e já se anunciam mais seis, totalizando quatorze. Assim, experimentamos a repentina e enorme baixa do poder aquisitivo da população. 

Depois de passar primeiro por uma dramática escassez de alimentos, agora nos encontramos em uma situação de abundância com uma sobreoferta por parte de novos negócios improvisados que não cumprem as medidas sanitárias, que evadem até o imposto de valor agregado e pagam salários precários. Padecemos uma escassez endêmica de eletricidade que esporadicamente paralisa diferentes regiões e, em uma ocasião inesquecível, o país inteiro por cerca de cinco dias. Sofremos frequentes quedas das conexões dos pontos de venda que terminam paralisando suas atividades por dias inteiros. 

Passamos a ser obrigados a criar nossas próprias rotas de transporte para suprir as grandes falhas desse serviço público. Ainda assim, mantivemos sempre abertos nossos serviços quando os demais fechavam ante ameaças de saque e isso muitas vezes em meio a violentos enfrentamentos de manifestantes com as forças de segurança. Acabamos por superar uma reiterada escassez de combustível que por momentos paralisa os processos produtivos assim como a distribuição de mercadorias. E em meio a todas essas circunstâncias, confrontamos uma pandemia com quarentenas e medidas sanitárias que incluem fechamentos temporários e toques de recolher.

É evidente que imersos a esses problemas e muitos outros se reduziu a periodicidade de nossos encontros educativos e se afeta grandemente nossas receitas e custos, assim como o que recebem periodicamente os associados e associadas. 

Frente a essas situações, nosso processo educativo continuou se fortalecendo, a grande maioria dos produtores e produtoras da rede segue produzindo e nossos serviços continuam sendo para a população, por longo período, a alternativa mais econômica. De maneira que, ante as penúrias que confrontam a maioria dos venezuelanos e venezuelanas, nosso aporte solidário tem mais importância. 

* Esse texto foi elaborado por um coletivo de autoras e autores da Red Cecosesola, cujos escritos são produtos do seu conviver e compartilhar

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Gente organizada é a salvação da lavoura!

Diante da destruição de direitos e desmonte de políticas públicas, a articulação entre campo e cidade mostra a importância da sociedade civil organizada. Conheça a experiência do Instituto Terra Viva, que anima, estrutura e organiza uma rede de agroecologia no fortalecimento da agricultura familiar e da economia solidária. Por Caco de Paula *

A crise que se acentua com a pandemia de Covid-19 reforça duas certezas. Primeiro, a enorme importância do Estado — independentemente de toda propaganda em contrário. Resolver grandes problemas da vida humana requer Estados confiáveis, com poder econômico e político, capazes de tomar as decisões adequadas, com visão democrática, humanitária e coletiva. A outra grande verdade é a indispensável organização da sociedade civil, desde a sua base, para maior proteção dos direitos das pessoas e do comportamento geral da sociedade. A presença do Estado, com políticas públicas efetivas, e a capacidade de organização, ação e influência da base são condições com efeitos conhecidos na vida cotidiana da população. Especialmente na agricultura familiar de base ecológica, essas condições podem beneficiar a ação de quem enxerga a natureza de forma mais holística e vê a pessoa como um ser dotado do espírito de solidariedade. Esses aspectos estão presentes na inspiradora experiência coletiva do Instituto Terra Viva, que conecta cerca de 80 famílias de produtores agroecológicos da região de Sorocaba (SP) a uma rede de economia solidária construída com parceiros de pontos de venda, distribuidores de cestas, restaurantes e centenas de famílias que, ao se nutrir desses alimentos, nutrem a própria rede.

Cultivo da mudança

O coletivo define sua missão como um trabalho pela prosperidade em seus diversos pilares, de forma digna, responsável e justa, a serviço da agroecologia, da autoconsciência, do bem-estar e da economia solidária. E declara os seus valores:  justiça, transparência, verdade, amor, solidariedade, lealdade e abundância. A semente dessa rede começou a germinar dez anos atrás, em 2011, momento em que a produção agroecológica vivia um vigoroso crescimento no Brasil. Incentivados por políticas públicas implantadas durante os governos Lula e Dilma, agricultores familiares, muitos deles produtores em assentamentos da reforma agrária e em quilombos, tiveram acesso à universidade pública, interagiram com pesquisadores no campo e contaram com programas de aquisição regular de produtos, para alimentação em escolas, hospitais e presídios. Vem dessa época a consolidação de muitos núcleos de agroecologia, como o NAAC Apêtê Caapuã (da Ufscar, campus de Sorocaba), em torno do qual se discutia a importância da diversidade e do conhecimento local – não apenas para o trabalho na terra, mas também para o cultivo da mudança social. Fermentavam-se as ideias e ampliava-se o movimento de transição, da agricultura familiar dependente do pacote tecnológico dito “convencional”, para a produção agroecológica. A aproximação entre pesquisadores e agricultores buscava a construção conjunta de conhecimento, como na proposta do educador Paulo Freire, em que ambos são capazes de educar e de se educarem. Foi nesse contexto que nasceu o Instituto Terra Viva, com a missão de contribuir para a agroecologia da região. 

Água e conhecimento

O primeiro projeto realizado pelo instituto foi sua participação na edição inicial do programa Plantando Águas, com patrocínio da Petrobras e coordenado pela organização Iniciativa Verde, que atendeu mais de 160 famílias no estado de São Paulo. O Terra Viva foi o executor do projeto na região de Sorocaba, atuando com mais de 70 famílias agricultoras, assentados e quilombolas. O trabalho incluiu a implementação de áreas de agroflorestas nos sítios, restauração de áreas de proteção permanente, instalação de equipamentos básicos de manejo e saneamento ecológico para tratar os resíduos das residências, além de assessoria técnica. O projeto sensibilizou dezenas de famílias, que se engajaram na regeneração do solo e do planeta produzindo alimentos orgânicos. Na construção conjunta de conhecimento de que falamos há pouco, agricultoras e agricultores definiram as prioridades para os sistemas agroflorestais (SAFs) em seus lotes. O trabalho é descrito no livro Sistemas Agroflorestais – experiências e reflexões, editado pela Embrapa. Cerca de 30 dessas famílias ainda fazem parte da mesma rede do Terra Viva. 

É muito simbólico que a origem do instituto e da ampliação da consciência ecológica na produção de alimentos esteja justamente numa ação de cuidado e proteção de nascentes e cursos de água. Assim como é muito prática a percepção de que, além de apoio no campo, os agricultores precisam de parceiros para fazer com que os produtos orgânicos cheguem à mesa dos consumidores. “Desde a fundação do Terra Viva era claro para nós que um dos principais gargalos das famílias agricultoras era — e continua sendo — a comercialização dos produtos, seja por falta de mão de obra, de tempo ou de logística, e assim por diante”, recorda-se a gestora ambiental Naíshi Brandão, que integra o coletivo desde seu início. “Ao finalizarmos os projetos dos quais participamos implantando SAFs, fazíamos os mutirões e nos perguntávamos sempre como e onde os agricultores poderiam escoar a produção.” 

O vigor das parcerias

O estatuto da organização já previa prestar assessoria para viabilizar a produção agroecológica por meio da comercialização. “Isso se deu  a partir da parceria com alguns atores agroecológicos de Sorocaba, que estavam reunidos no Grupo de Articulação Regional da Feira Agroecológica de Sorocaba (Garfos) e que passaram a compor essa frente de atuação na viabilização comercial da produção, que foi estimulada e em parte estruturada pelo aporte do Plantando Águas”, explica o engenheiro-agrônomo Claudio Nadaleto, que integra a equipe de campo do Terra Viva, prestando serviços no âmbito da assessoria técnica e do planejamento de produção. Da articulação com o Garfos, lá em 2013, promovida pelo biólogo Pedro Kawamura Gonçalves, então coordenador do Terra Viva, foi implementada, em parceria com a prefeitura de Sorocaba, a primeira feira de produtos orgânicos do município. As parceiras continuaram e, em 2016, uma colaboração com o (hoje extinto) coletivo Amaranto Orgânicos abriu caminho para viabilizar o Armazém Terra Viva. 

Em 2017 o armazém começou a comercialização, ainda no formato de projeto, com uma estrutura muito enxuta, tocada por Naíshi com o economista Caio Rennó José e Ari Pinheiro. Esses dois últimos, vindos do Amaranto. Durante algum tempo, toda a estrutura do armazém se resumia ao galpão emprestado pela família de Caio, a uma pequena camionete e a um único parceiro na cidade de São Paulo, o Instituto Chão, na Vila Madalena. O vigor do Terra Viva estava mesmo na rede que se fortaleceu a cada dia com as famílias de agricultores, muitas delas parceiras desde os tempos em que juntos semeavam águas. Em 2018 o coletivo ganharia novos membros e, em 2020, seria reforçado por uma entrada mais robusta de integrantes. Hoje o coletivo tem 20 participantes, que trabalham para fazer chegar a 30 parceiros em pontos de venda na capital paulista cerca de 40 toneladas de alimentos produzidos mensalmente por 84 famílias de agricultores da região de Sorocaba.

Além da comercialização, boa parte da parceria do Terra Viva com as famílias de agricultores se dá no atendimento às demandas técnicas trazidas por elas. O pano de fundo é a ausência ou inoperância das agências oficiais de assessoria técnica e extensão rural, ou “ater”, como se diz no meio agrícola. “Para além dessa ausência do Estado no campo, há principalmente a construção do conhecimento agroecológico, que é a base de nosso trabalho”, enfatiza Claudio Nadaleto. Essa assessoria se dá de diversas formas. Inclui desde a facilitação do processo de certificação orgânica por auditoria, por sistemas participativos de garantia (SPG) ou mesmo por OCS (organização de controle social). Ela se dá também tanto pela assessoria à produção em si, por meio do acompanhamento técnico agroecológico presencial, quanto remotamente, por telefone ou  WhatsApp. Prática comum antes da pandemia, as oficinas e intercâmbios para troca de experiências estão temporariamente suspensos, à espera de tempos mais propícios a encontros presenciais. 

A política do cuidado

O filósofo colombiano Bernardo Toro, que inspirou algumas das linhas do início deste texto, é quem nos lembra que “quanto maior a organização da base, maior a proteção dos direitos das pessoas e melhor o comportamento da sociedade”. Isso se aplica às escolhas na alimentação, que também são políticas. Toro gosta de citar uma frase que ganha especial significado nestes tempos de desproteção social, frase que ele atribui ao seu amigo Leonardo Boff: “Ou aprendemos a cuidar, ou todos pereceremos”. No fim, o que a rede de economia solidária formada pelo Terra Viva, pelas famílias de agricultores e pelos parceiros está fazendo é adotar um pouco dessa filosofia do cuidado, um ato de imenso significado político. “A agroecologia é um conjunto de valores e hábitos que fundem uma nova cultura, e o fruto disso são produtos saudáveis e a consciência de que não basta só tratar a saúde do ser humano desgarrado da saúde da terra, porque nós somos terra”, disse Boff em recente entrevista publicada pelo Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop). “O homem vem de húmus, terra boa, terra fértil, e há uma interação enorme entre o ser humano e a terra, a água, o solo, o que comemos e respiramos.”

No contexto da pandemia

Como ocorreu nos demais ramos da atividade humana, o cotidiano do Terra Viva foi afetado pela pandemia. Além de incluírem os protocolos de segurança sanitária, os integrantes do coletivo tiveram de se adaptar à diversificação e reformulação das operações. Pouco antes da pandemia havia sido criada a Mãnatu Orgânica, uma estrutura voltada à venda direta aos consumidores de Sorocaba e região. Como as vendas em geral tiveram um crescimento significativo nos primeiros meses pandêmicos, a Mãnatu e o armazém expandiram sua atuação e foi necessário alugar um galpão maior para organizar a distribuição. O aumento da demanda, em si, não significa que o instituto não tenha desafios a enfrentar. E não são poucos. Há muito a fazer quando se pensa na sua missão de fortalecer a agricultura familiar de base agroecológica, com ações que valorizem os saberes desses agricultores e agricultoras, materializados pela produção e pelos cuidados com a natureza e a sociedade em geral ao produzirem saúde na forma de alimentos. No nível macro, há o desgoverno e suas políticas genocidas. Internamente, os maiores desafios são remunerar melhor e garantir mais benefícios aos membros do coletivo, diversificar a atuação e aumentar a receita gerada. 

Plataforma é a reconstrução

Pesquisa recente da Articulação Nacional de Agroecologia mostra que o principal gargalo apontado pelos produtores continua sendo o apoio para os circuitos curtos de comercialização, que é justamente o trabalho que o Terra Viva faz em sua região. Um olhar sistêmico para essa atividade permite vislumbrar pontos que obrigatoriamente devem ser tratados em qualquer discussão política séria, dado seu potencial de impacto em problemas que se agravam a cada dia, como o aprofundamento da desigualdade social e o avanço da fome entre os brasileiros. Muito se pode discutir a esse respeito, mas não resta dúvida de que recuperar o que vem sendo desmontado e destruído no apoio à agricultura familiar desde o golpe de 2016 já seria, em si, uma plataforma ambiciosa e urgente.

“Diferentemente do cenário de hoje, no qual a caneta tem sido usada para tirar direitos de quem produz e de quem trabalha, um novo governo deverá reverter e aprofundar a construção de políticas de combate à fome e à insegurança alimentar, ao mesmo tempo que valoriza e cria condições para a agricultura familiar realizar suas produções”, sintetiza o economista Caio Rennó José, membro do coletivo. Ele cita políticas existentes que foram abandonadas ou desidratadas desde o golpe. Do lado das compras institucionais ele citou dois instrumentos principais: o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003 no âmbito do Programa Fome Zero), uma boa política que deve ser retomada; e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. Este deve ser aperfeiçoado, com maior valorização dos municípios que cumpram a condição de usar pelo menos 30% dos recursos na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas. 

Agroecologia como resposta

“Para estimular a produção sustentável, agroecológica, justa e que gera renda e trabalho no campesinato, o Estado deve criar programas de crédito direcionados e com as condições próprias para atender efetivamente os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária, comunidades quilombolas, caiçaras, indígenas e demais povos”, enumera Caio. Ele lembra que, além do crédito, a assessoria técnica subsidiada pelo Estado seria um grande fator para contribuir para o aperfeiçoamento das produções, aliando conhecimentos empíricos, tradicionais e científicos. 

Ele acrescenta ainda alguns pontos bem práticos: isentar de impostos o maquinário agrícola para otimizar o trabalho no campo; facilitar as condições de compra de caminhões para a agricultura familiar; incentivar a construção ou ocupação de imóveis públicos ou privados estrategicamente localizados para facilitar a locomoção dos alimentos produzidos regionalmente, concedendo contratos de comodato para associações e cooperativas locais. Como se vê, não há mistério algum sobre quais medidas reivindicar para fortalecer a agricultura familiar de base ecológica. E como já foram experimentadas em maior ou menor escala, não há dúvida sobre as suas consequências. 

“A agroecologia traz muitas respostas a problemas contemporâneos, como a falta de tolerância, de empatia, de noção de justiça, de respeito à diversidade”, diz Caio. “E isso tudo se envolve com o lugar que a gente pisa, com o que a gente come, com a forma como a gente olha para o outro”, finaliza.

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Metalcoop: quando os trabalhadores tomam nas mãos o próprio futuro

Uma empresa tradicional, referência em seu segmento mas a ponto de falir; dezenas de trabalhadores desiludidos, a ponto de perderem a esperança no próprio futuro; um ultimato impensado, que adianta uma transformação na história de todos. Três partes de uma história que resultou na criação da Metalcoop, uma cooperativa de destaque no mercado, graças ao uso da tecnologia de forjamento a frio de metais em seu processo produtivo. Conheça a fantástica história desse empreendimento, através das palavras do diretor Cláudio Domingos da Silva *

A Economia Solidária é um universo que precisa ser continuamente explorado, por ser, pelo menos, tão vasta quanto o tamanho do que conhecemos por “economia” e seus segmentos.. Um desses, que ainda não havia sido explorado aqui na Revista Alternativas Solidárias, é aquele no qual trabalhadores de empresas em crise financeira (ou já falimentar) tenham a possibilidade de manter os próprios postos de trabalho, assumindo a gestão das mesmas. São as chamadas Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores, ou ERT’s. 

Levantamento feito em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada revelou que, na época, havia 67 ERT’s no Brasil, com quase 12 mil trabalhadores a elas vinculados. Boa parte delas (45%) eram do ramo da metalurgia, e nada menos que 85% delas optou por adotar a forma jurídica de cooperativa ao se formalizarem.

Trata-se de um movimento recente no Brasil, onde a Cooperativa de Extração de Carvão Mineral dos Trabalhadores de Criciúma (Cooperminas), recuperada em 1987, foi uma das experiências pioneiras. A partir de então, foram vários os exemplos bem sucedidos – incluindo, aí, o que iremos conhecer a partir de agora: a Metalcoop, recuperada em 2002 e localizada em Salto.

Entendendo o passado

Para entendermos o contexto de surgimento da Metalcoop, é necessário falar sobre a empresa que existia antes: a Picchi, uma indústria metalúrgica. Foi ela que, em 1986, contratou Cláudio como funcionário. 

“A Picchi era muito conhecida, uma referência, pois atuou 53 anos no mercado. Ela atuava basicamente na produção de peças para a indústria bélica e também para o segmento agrícola. Mas com os anos, e principalmente após o fim da Guerra Irã-Iraque (1988), a empresa começou a ter dificuldades, e precisou buscar outros mercados, como o automotivo”, explica.

O problema é que, no meio dos altos e baixos, os funcionários geralmente eram os mais prejudicados. Nos anos de crise, eram frequentes os atrasos de salário e o não-cumprimento de garantias trabalhistas, o que gerava insatisfação. Cláudio observava tudo atentamente, pois fazia parte do movimento sindical, e buscava organizar os trabalhadores na luta pelos seus direitos.

Após a segunda metade dos anos 1990, porém, a situação foi indo de mal a pior. “O faturamento da empresa despencou, e fomos descobrindo uma série de problemas e irregularidades: quase todos os funcionários tinham férias vencidas; o fundo de garantia estava há anos sem depósitos; e até mesmo fornecedores estavam sem receber. A gota d’água foi quando descobrimos que nem mesmo a companhia de luz era paga. Como uma fábrica vai trabalhar sem energia?”, questiona. 

A essa altura, a empresa havia escalado um diretor apenas para comparecer à fábrica e prestar contas a uma comissão de trabalhadores que foi criada. “Mas as reuniões com esse diretor eram inúteis. Os números que ele apresentava só estavam no papel, não eram reais. E no final, ele sempre afirmava que a empresa não tinha dinheiro para pagar os salários, então simplesmente dividia o que dizia ter para todos. Mas isso não agradava ninguém, pois esse valor nunca chegava perto de um salário mínimo sequer. Para quem recebia pouco, o prejuízo até era menor, mas quem recebia mais ficava revoltado, e com razão”, conta. 

Até que, um dia, tudo mudaria. “Me atrasei para uma dessas reuniões, e quando cheguei, ela já havia acabado. Mas conversamos, e durante a conversa eles me questionaram sobre o que a gente queria. E eu respondi, sem pensar: queremos a fábrica! A primeira reação deles foi de desdém. Me perguntaram quem seria o presidente, o que faríamos com a fábrica. Então o presidente, que nesse dia estava lá, me chamou de canto, perguntou se era sério, e após eu dizer que sim, pediu alguns dias”, lembrou.

Eles realmente responderam alguns dias depois: informaram que fechariam a fábrica e demitiriam todos os funcionários, sem pagar nada a ninguém. Para muitos, seria um alívio, pois poderiam buscar outra colocação. “Mas insistimos na ideia, e fizemos uma proposta: arrendar a fábrica, e seus equipamentos. Eles poderiam se livrar dos funcionários e das responsabilidades, e nós seguiríamos produzindo naquele espaço, agora por conta própria. A Picchi aceitou”, revela. 

Tudo foi oficializado em agosto de 2002. A Metalcoop foi fundada no dia 25, o dia em que todos os desafios começariam a ser enfrentados: a cooperativa começava com 89 pessoas, uma fábrica sem luz elétrica, uma dívida superior a R$ 500 mil, e praticamente sem faturamento, pois mal tinha clientes.

Construindo a própria credibilidade

Não foi fácil para a Metalcoop se estabelecer no mercado. Primeiro, pois havia um grande desafio inicial, e tudo dependia dele: a conta com a fornecedora de energia. “A antiga empresa já havia feito um acordo para pagar a dívida, e não estava pagando nem o acordo nem as faturas seguintes”, conta Cláudio. Mas depois de muito esforço, os trabalhadores conseguiram negociar o débito, e enfim puderam iniciar os trabalhos.

Então surgiu o segundo desafio: retomar os laços com antigos fornecedores e clientes da Picchi. Por conta da má gestão da empresa, sobretudo nos seus anos finais, muitos haviam se afastado. E quando a Metalcoop abordava essas empresas, a primeira reação era negativa. “Alguns perguntavam sobre ex-diretores da Picchi, pois não entendiam que a gestão era nossa, agora. Outros nem queriam nos atender, devido a dívidas que não foram honradas”, afirma. 

Em uma das primeiras negociações, Cláudio lembra que a própria Metalcoop arcou com a matéria-prima da peça encomendada. A empresa ainda não tinha a inscrição estadual, e todo o acordo foi verbal: o cliente confiaria que a peça seria feita, e a Metalcoop confiaria que receberia o pagamento após a entrega. Ao final, tudo deu certo, e quando a cooperativa se regularizou e passou a emitir nota fiscal, a primeira foi para esse cliente, que segundo Cláudio ainda encomenda peças com eles.

Outro grande passo da cooperativa foi a conquista, em 2004, do certificado ISO 9001. “Era uma certificação fundamental para que a gente entrasse em um mercado muito importante, o automobilístico. Tínhamos vários clientes à espera apenas de que a gente tivesse essa certificação. Com muito trabalho e ajuda, principalmente do Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores), conseguimos contratar uma consultoria. Eles queriam 14 meses para concluir o trabalho, mas houve muito esforço e em seis meses tudo foi feito”, relembra. 

O resultado foi espantoso: após a certificação, em junho, o número de encomendas explodiu, e o faturamento da Metalcoop subiu de R$ 300 mil naquele mês para mais de R$ 750 mil em setembro. Hoje, eles também contam com o ISO/TS 16949, uma especificação ISO que alinha as normas dos sistemas de qualidade automotiva existentes – brasileira, americana, alemã, francesa e italiana – dentro da indústria automotiva global.

A cooperativa seguiu crescendo ao longo dos anos, e atualmente possui uma carteira de clientes sólida e é bem estabelecida no mercado. Apenas recentemente, com a pandemia, a fábrica ficou parada por alguns meses, segundo Cláudio. “Optamos por deixar os trabalhadores em casa, mas seguimos pagando a todos. Retornamos com as atividades em setembro, depois que definimos todos os cuidados sanitários a tomar: máscaras, álcool em gel, distanciamento, entre outros. Mas quando alguém tem suspeita de covid, a pessoa é afastada, assim como quando alguém na família é contaminado”, afirma. Graças a esses cuidados, de acordo com ele, apenas duas pessoas foram contaminadas até o momento, nenhuma delas de forma grave.

A busca pela justiça nos ganhos

A Metalcoop tem uma política de retirada por funções, e um princípio firmado desde o início: a retirada mais alta nunca pode ser superior a cinco vezes a retirada mais baixa. É uma maneira, segundo Cláudio, de garantir que todos possam receber um bom valor mensalmente, mas ainda assim garantir que o empreendimento não perca para o mercado aquelas pessoas que cumprem funções mais especializadas.

Hoje, a Metalcoop conta com 33 cooperados, e segundo Cláudio ninguém retira menos de R$ 3500, complementados por previdência social, tanto via pessoa jurídica como física, auxílio alimentação, plano de saúde e outros benefícios. “Se considerarmos que temos, entre nós, funcionários com muito pouca instrução, é um ganho muito maior do que poderiam ter lá fora, em outras empresas”. No entanto, o inverso é verdadeiro: os mais qualificados acabam por receber menos do que a média do mercado.

Mas por que, então, essas pessoas continuam na cooperativa? Para Cláudio, a resposta é simples. “Aqui, trabalhamos um pouco pela nossa retirada, sim, mas um pouco também pela ideologia, e por tudo que o nosso trabalho gera, para nós mesmo e para a comunidade. É o que nos motiva”, complementa. 

O desafio de ser cooperado

Cláudio lembra de uma passagem, no início da existência da Metalcoop, que ilustra bem como pode ser desafiador conscientizar trabalhadores acostumados com uma lógica de mercado capitalista, baseada na carteira de trabalho assinada e na garantia de direitos trabalhistas, a se tornarem “donos” da própria empresa.

“Não foi fácil para todos entenderem o que era cooperativismo, e o que significava ser cooperado. Alguns não conseguiam associar a ideia de que os ganhos só viriam mediante trabalho, e que se em um mês não houvesse trabalho, por exemplo, também não haveria retirada. Eu ouvia coisas como ‘mas no mês seguinte recebemos dobrado então, certo?’” – lembra-se, rindo – “E eu explicava que não funcionava assim. Alguns desistiram no início por isso, por não entenderem ou não acreditarem mesmo.”

Além disso, implementar a disciplina que um cooperado deve ter também foi um desafio. Cláudio aprendeu na pele que certos hábitos não poderiam ser abandonados, pelo bem do dia-a-dia da cooperativa.

“Eu sempre tive um sonho: que os trabalhadores nunca mais tivessem que marcar cartão. Era algo que sempre quis poder fazer por eles. Então, quando criamos a Metalcoop, pensei: finalmente, vou poder realizar esse sonho”, lembra.

Mas as coisas não ocorreram exatamente como ele esperava: os trabalhadores, desacostumados com a ideia, não cumpriam com os horários. “Eles diziam que agora também eram donos, então podiam trabalhar quando quisessem, e eu pensava: entenderam tudo errado! Pois o dono deve dar exemplo, ser o primeiro a chegar. Então infelizmente tive que enterrar o sonho, e até hoje marcamos o cartão aqui”, afirma.

Foi algo complicado para os trabalhadores entenderem: dormir como empregado, e acordar como sócio do próprio negócio. E como, então, essa mentalidade foi modificada? Segundo Cláudio, com conscientização, e muitas reuniões.

“Temos que contar uns com os outros. Fazemos as assembleias regularmente e procuramos manter toda a transparência, para que eles vejam o resultado do próprio trabalho e entendam como é importante a dedicação de todos. Precisamos manter essa mentalidade, senão a cooperativa não anda, e a gente não pode parar”, conclui.

* Texto redigido por Daniel Keppler. Jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista

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Recompor a relação entre economia, sociedade e ecologia: agenda para uma transição solidária

A economia solidária muitas vezes é atrelada a uma agenda de microeconomia. Reforçar laços econômicos de forma solidária no bairro e na comunidade local não é menos importante. Porém, entender a Ecosol como uma transição ao socialismo autogestionário, – onde se reorganizarão múltiplas economias com relações mais harmoniosas, despatriarcalizadas, cooperativas e ecológicas sob um Estado profundamente redistributista -, é também uma questão da macroeconomia. Como ressocializar a economia para chegar a tal objetivo é motivo de reflexão para Genauto França Filho *

Será que temos efetiva compreensão sobre o alcance da agenda de mudança social na qual a economia solidária é portadora? Ou costumamos tirar conclusões mais limitadas sobre esse tema? Neste texto tentaremos indicar a amplitude da economia solidária enquanto temática, cujo significado nos permite pensar tanto a originalidade de variadas formas de auto-organização socioeconômicas, quanto um outro cenário em termos de sistema macroeconômico envolvendo a relação entre Estado, mercado e sociedade. Segundo nossa abordagem, a agenda da economia solidária aponta múltiplos níveis e escalas em termos de cenário de sociedade. O paradigma de mudança social na qual ela é portadora nos parece mais em fase com a noção de transição social e ecológica, em razão dos valores que a orientam. No intuito de esclarecer tais argumentos, começaremos sugerindo um outro olhar acerca da crise que se vive em diferentes sociedades atualmente e salientaremos seus efeitos. Isto já permite posicionar a problemática situando a razão de ser da economia solidária. Na sequência, abordaremos os seus fundamentos, enfatizando o como ela redefine o sentido do agir econômico na vida em sociedade, para então explorar a agenda de transformação social nela contida.

A solidariedade invisibilizada …

Uma entrada pouco explorada na compreensão sobre a natureza da crise que vivemos no capitalismo consiste em entender o modo como nele se estabelece a relação entre economia e sociedade e seus efeitos decorrentes. Aqui, uma primeira constatação salta a percepção: economia e vida estão separadas, como se fossem domínios distintos. O modo compartimentado pelo qual a ciência tratou os dois objetos contribuiu para invisibilizar este fato. Entretanto, áreas do conhecimento como história e antropologia nos trazem importantes ensinamentos sobre a íntima relação entre economia e vida. Primeiro porque ampliam seu significado: a economia é compreendida como o meio de garantia das condições materiais de existência, assumindo diversas formas. Na história das sociedades humanas observa-se que essa garantia não se realiza sem um imperativo de solidariedade, pois as culturas e povos antigos sempre reconheceram, na busca pela sustentabilidade, uma dupla dependência dos seres humanos: entre si e em relação à natureza. Dois princípios então, muito diferentes do mercado, tiveram prevalência nos processos de organização social e econômica na história: a redistribuição e a reciprocidade. O mercado, na sua versão de um princípio de auto-regulação prescindindo da solidariedade, é uma invenção bastante recente, nascendo com a revolução industrial. Todavia, trata-se de uma invenção portadora de um profundo paradoxo, como nos ensina a história econômica: às suas virtudes extraordinárias de criação de riqueza se somam, na mesma medida, um notável poder destrutivo dessa mesma riqueza. Isto se deve ao caráter intrinsecamente concentrador e excludente desse mecanismo, cujo efeito mais conhecido é a produção de desigualdades. 

O curioso é que, embora essa forma de economia tenha nascido da própria sociedade, através de uma engenhosa operação de economia política, seu movimento é de uma busca incessante em separar-se, devido justamente ao seu caráter autocentrado. Diferentemente das demais formas de economia, que estão submetidas às regras de organização da vida social, este mecanismo inverte a relação entre economia e sociedade na história, em nome de uma reivindicação de liberdade bastante específica (pois pretensamente desprovida de regras ou de limites). Dessa vez é a sociedade que deve estar submetida às regras do mercado concebido como ente deificado. O destino das economias de mercado, conforme notou Polanyi (1986), é de tornarem-se sociedades de mercado, devido a extensão sem fim das relações mercantis. 

Contudo, esse movimento de expansão sem limites do mercado encontra historicamente a resistência da própria sociedade através de variadas expressões da proteção social. Sendo esta tratada como um empecilho ao desenvolvimento das forças de mercado, a história do capitalismo pode ser lida como um processo de tensionamento permanente (POLANYI, 1986) entre esse mecanismo econômico tentando subordinar a sociedade à sua racionalidade, e a sociedade, por sua vez, lutando para “domar a fera” e fazer prevalecer as necessidades sociais.

É neste tensionamento que localizamos com mais clareza a natureza da crise que vivemos. Primeiro é importante reconhecer que ela decorre de um divórcio entre economia e sociedade produzido no bojo de uma concepção de economia como um fim em si mesmo. Este, tem engendrado uma série de outros afastamentos bem conhecidos: entre economia e meio ambiente, economia e território ou, nos tempos de pandemia, economia e saúde. Em segundo lugar, cabe salientar um outro divórcio relativo à expulsão da solidariedade. Afinal de contas, na imaginação que se torna real de uma vida em sociedade regulada através de uma generalização das relações de compra e venda, de fato, não apenas deixa de haver espaço para a solidariedade, como ela é vista como indesejável. Essa visão atualizada através do neoliberalismo considera também a democracia como um elemento indesejável, pois perturbador da suposta ordem natural em que leis sociais seriam substituídas por regras tecnocráticas. Num mundo governado como uma empresa, é a própria ideia de sociedade que também perde sentido, como nos vaticinou Margareth Thatcher: there’s no society. Ela não fez mais do que seguir pressupostos de uma filosofia política utilitarista rudimentar, segundo a qual a ganância ou a sede do lucro fazem bem (the greed is good). Na utopia de um mundo governado pela generalização dos interesses privados, onde a ideia de empresa substitui aquela de sociedade e uma governança tecnocrática se impõe no lugar da democracia, parece que estamos mais próximos de um cenário de distopia totalitarista, já anunciada em inúmeras obras de ficção científica, sobretudo no cinema e na literatura. Na prática, tal ideologia não seria indesejável se não trouxessem consequências tão dramáticas. 

As insustentabilidades em curso…

Quatro insustentabilidades, absolutamente indissociáveis, refletem grandes dilemas que vivemos atualmente. Elas decorrem do modelo econômico que predomina no capitalismo contemporâneo, cuja principal caraterística é seu elevado grau de financeirização. Tal fenômeno representa um deslocamento do principal centro de produção de valor ou de “riqueza econômica”: da atividade produtiva concreta para o mercado financeiro (DOWBOR, 2017). Com isso, aquilo que é nomeado comumente de “economia real” se torna subordinada à lógica de reprodução e ampliação de um capital especulativo e rentista que é desterritorializado e mundializado. 

Uma primeira insustentabilidade é de natureza socioambiental e compreende-se através dos efeitos de exaustão sobre os recursos naturais que são provocados pelos níveis de consumo desenfreados decorrentes da necessidade de crescimento ilimitado. Tal lógica é geradora de uma grande crise ambiental verificada hoje através do aquecimento climático e uma série de outros indicadores como desmatamento, poluição dos oceanos, contaminação química dos solos e água, e destruição da biodiversidade (IPCC, 2014; IPBES, 2017). Alguns cientistas da Terra e ecologistas mencionam uma “grande aceleração” ocorrida desde os anos 1970 – coincidindo, portanto, com o avanço do modelo neoliberal – e que nos conduz, provavelmente, a uma série de catástrofes ambientais já fora do controle. Desta forma, com a entrada nos tempos de “antropoceno”, a humanidade está diante da necessidade de transformações imediatas tanto no nível da economia quanto no das formas de vida (BONNEUIL & FRESSOZ, 2013; LATOUR, 2020).

Uma segunda insustentabilidade é socioeconômica e está refletida nos níveis de recrudescimento incessante das desigualdades no mundo como fruto das tendências de concentração da renda e da riqueza. Em um dos estudos internacionais recentes mais conhecidos sobre a dinâmica do capital no século XXI, o economista francês Thomas Piketty demonstra com elevado rigor essa escalada ao evidenciar os graus cada vez maiores de desigualdade socioeconômica na dinâmica histórica do capitalismo e que se acentuam nas três últimas décadas (PIKETTY, 2013; CAPRARA, 2017). Vários outros estudos também evidenciam o aumento das desigualdades  relacionados à concentração de renda e riqueza no planeta (EPSTEIN, MONTECINO, 2016; OXFAM, 2017; DOWBOR, 2017). Tais abordagens descortinam uma nova lógica econômica, atualizando a problemática da apropriação e indicando as incongruências entre esforço produtivo e remuneração.

Os fatores climáticos e a concentração da renda se conjugam para explicar os movimentos migratórios no mundo. Estes reacendem uma terceira dimensão das insustentabilidades que é de caráter sociocultural. Elas dizem respeito aos níveis cada vez mais elevados de intolerância à diversidade de grupos sociais refletindo uma problemática racial, de gênero, de orientação sexual ou de opção religiosa. Atestam isso o recrudescimento dos casos de racismo, misoginia e feminicídio, homofobia e perseguição religiosa em diversos países. Esses problemas de preconceito e discriminação não estão atrelados apenas aos imigrantes, mas são vividos no interior de diferentes sociedades como heranças históricas da condição de não reconhecimento de “minorias” como um traço cultural. Nestes tempos de ascensão ao poder de governos populistas de extrema direita em diferentes países, tal problemática se torna muito mais aguda e dramática.

Finalmente, uma quarta dimensão é de natureza sociopolítica e diz respeito ao enfraquecimento da democracia enquanto forma de governança desde a escala global até o nível local. De fato, a lógica de apropriação desigual das riquezas e da desterritorialização da produção e das finanças está, obviamente, na origem de um enfraquecimento da capacidade de organização da vida econômica e de promoção dos direitos por parte dos Estados-nação. Isso gera uma quarta dimensão da crise, de natureza eminentemente política. Trata-se do fato das sociedades contemporâneas estarem confrontadas a uma nova forma de governança internacional, cuja principal característica é o deslocamento tácito do poder decisório mundial de um lócus público, representado pelos Estados e organismos supranacionais, para o setor privado, representado pelo poder real dos poucos grandes grupos corporativos, baseados sobretudo no capital financeiro, cujas atividades estão espalhadas nos mais diversos países (DOWBOR, 2017; CHOMSKY, 2017). A proporção do endividamento público dos Estados nacionais no mundo aumenta em uma medida praticamente simétrica ao crescimento econômico desses gigantes corporativos mundiais, que aliás, tornam-se seus credores. Tal fenômeno acontece, ainda, na mesma proporção do enfraquecimento das instâncias supranacionais de decisão no mundo. Com o poder econômico concentrado em gigantes corporativos transnacionais, os Estados-nação se encontram em situação de dependência em relação a estes atores considerados como investidores, sendo suas políticas públicas diretamente influenciadas por estes (DOWBOR, 2017). Com a fragilização da soberania dos países, são as próprias democracias que se encontram então ameaçadas.

A necessidade de ampliar nossa visão sobre o econômico

A mudança que o mundo precisa para enfrentar tais insustentabilidades pressupõe a reafirmação de uma série de princípios e valores basilares na garantia de uma efetiva capacidade de convivência dos humanos entre si e com o seu meio ambiente: democracia, solidariedade, liberdade, diversidade, bens comuns e bens públicos, são alguns desses valores. Todavia, uma questão salutar se coloca: qual concepção e/ou modelo econômico parece compatível com uma tal agenda de valores ? 

De fato, as práticas de economia solidária são incompreensíveis sem a adoção de uma concepção ampliada de economia. Esta, conforme salientamos no início, pode ser extraída de um olhar sobre a história de diferentes culturas e sociedades humanas em relação ao modo como organizaram, em termos institucionais, a garantia dos meios materiais para viver, isto é, o modo como fizeram economia. A dupla definição do econômico identificada por Polanyi (2012), esclarece este aspecto. Para além da chamada definição formalista, que reduz a compreensão do econômico a um cálculo maximizador em situação de escassez, este autor defende uma visão substantiva. Nesta, a economia é pensada como o que permite a garantia dos meios de existência, através de interações humanas e de interações com a natureza. Essa abordagem insiste numa relação íntima entre economia e vida, rompendo com a ideia de uma economia isolada da vida que se encontra na base do sofisma que confunde economia com mercado (definição formalista). Essa ficção alimentou a pretensão ocidental de superioridade, segundo a qual não há nada a aprender das sociedades ditas “primitivas” e “arcaicas”.

Num sentido absolutamente diferente, a visão substantiva evidencia que outros princípios, para além do mercado, desempenham um importante papel em todas as economias humanas ao longo da história: a redistribuição (ou seja, a realocação de recursos tomados por um poder central e controlados, no caso do estado de bem-estar social, pela democracia representativa); a reciprocidade (ou seja, os tipos de produção e troca que são governados não pelo lucro, mas pela preocupação de fortalecer os vínculos sociais entre pessoas ou grupos); e, o compartilhamento doméstico (ou seja, as atividades econômicas realizadas no seio de um agrupamento social de base como a família).

Economia plural e ressignificação dos mercados: caminhos para a transição social e ecológica

Desse conjunto de ideias, deduzimos a noção de economia plural enquanto um esforço de atualização dessa outra visão do econômico que orienta a agenda da economia solidária. Como vimos, a definição substantiva do econômico, por ser ampliada, engloba a definição formalista. Da mesma forma, o conceito de economia plural envolve ou ultrapassa a noção de economia de mercado. Nessa relação, a noção de economia plural parece cumprir um propósito analítico-normativo, conforme esclarece a dupla acepção do verbo conter. Em um primeiro sentido, a economia plural contém a ideia de mercado, pois este é apenas parte de uma concepção mais ampla. Em um segundo sentido, a economia plural contém a economia de mercado em termos de refrear seus efeitos de externalidade negativa ou barrar sua pretensão de subordinar a sociedade à sua lógica (FRANÇA FILHO, 2019; EYNAUD, FRANÇA FILHO, 2019). 

Podemos notar então que o conceito de economia plural guarda grande fecundidade heurística ao indicar uma atualização do olhar sobre as dinâmicas econômicas contemporâneas. Com este conceito podemos pensar novas possibilidades de ação coletiva para o desenvolvimento, segundo pelo menos três matrizes analíticas: a) relativo a especificidade de cada uma das distintas lógicas socioeconômicas; b) relativo às possibilidades de articulação entre tais lógicas, apontando caminhos inovadores em termos de arranjos institucionais; e c) relativo às possibilidades de ressignificação das próprias práticas de mercado, através de inovações institucionais nos próprios modos de produzir, comercializar, consumir e se relacionar financeiramente (FRANÇA FILHO, 2019). Neste esforço de atualização conceitual, importa salientar a relação de cada uma das formas de economia com a democracia. É um imperativo de solidariedade democrática que acompanha a proposição de uma outra ideia de economia contida na noção de economia plural. Se ela nos ajuda a refletir sobre outro modo de enxergar o funcionamento da economia real, pelo menos três níveis indissociavelmente articulados podem ser vislumbrados (FRANÇA FILHO, 2019).

Um primeiro nível, micro-sistêmico, consiste em identificar práticas organizativas no seio da sociedade, baseado em mecanismos de solidariedade econômica, como uma projeção miniaturizada do conceito mais amplo de economia plural. Isto porque tais práticas podem ser vistas com ênfase nos modos de gestão de diferentes lógicas em tensão nas respectivas dinâmicas organizativas que são analisadas. Nessas, enfatiza-se o desafio da busca do equilíbrio necessário à sustentabilidade de tais práticas, em meio à tensão entre as lógicas mercantil, redistributista e reciprocitária. Isso significa reconhecer que uma mesma iniciativa, a exemplo de um empreendimento de economia solidária no seu funcionamento cotidiano, pode estar mobilizando recursos simultaneamente: via atividade de comercialização e contraprestação financeira (lógica mercantil), via financiamento público governamental ou não governamental (lógica redistributista) ou via relações de solidariedade na forma de ajuda mútua, de contribuições voluntárias, de produção para autoconsumo, de mutualização de recursos, ou de financiamentos coletivos, entre outros (lógica reciprocitária). Neste sentido, o desafio da gestão encontra-se em aproveitar o potencial sinérgico contido nas três lógicas do ponto de vista da capacidade reunida pelo empreendimento para a sua mobilização de recursos e, ao mesmo tempo, manter a lógica mercantil subordinada às lógicas solidárias enquanto esforço de equilibrar distintas racionalidades. 

Um segundo nível, meso-sistêmico, consiste em identificar o potencial de fortalecimento de dinâmicas locais ou territoriais de desenvolvimento contidas na articulação entre esses vários princípios de ação econômica, isto é, entre a lógica redistributista, a lógica reciprocitária e a lógica de mercado ressignificada. Se tal abordagem implica em pensar a pluralidade das formas de economia a serviço do seu contexto territorial, é porque existe um valor importante em cada uma delas e um campo aberto de possibilidades para pensar sua articulação segundo as características específicas e demandas de cada contexto. As diferentes redes e parcerias institucionais possíveis neste caso devem obedecer aos pressupostos básicos da democracia e da solidariedade como condição para sua inovação territorial e institucional. Arranjos institucionais específicos, a exemplo de redes reunindo atores locais diversos (poder público, setor privado, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e empreendimentos de economia solidária) voltadas ao fortalecimento de uma dada territorialidade, constituem um caminho importante neste segundo nível. 

Finalmente, no terceiro nível, macro-sistêmico, o conceito de economia plural pode nos ajudar a melhor compreender a relação entre Estado, mercado e sociedade em termos de novas formas de regulação socioeconômicas. Trata-se nesse caso de superar enfoques funcionais, que tentam entender a regulação a partir de setores, para valorizar uma abordagem mais sociopolítica sobre o papel ressignificado do mercado, do Estado e, sobretudo, da sociedade, na provisão de bens e serviços de modo efetivamente acessível ao conjunto da população.

Este nível macro deve integrar uma agenda de desenvolvimento mais amplo em que princípios de economia solidária transmutados na ideia de economia plural nos ajuda a pensar uma renovação das relações entre Estado, mercado e sociedade. Escapando das visões mercadocêntricas do desenvolvimento, em que tudo estaria resumido no potencial da racionalidade empresarial, trata-se tanto de readequar e ressignificar a ação privada no sentido de conter seu caráter predatório, quanto de valorizar o potencial das iniciativas partindo da sociedade e baseadas em cooperação para reativar as economias territoriais, além de melhor aproveitar a capacidade redistributista e de investimento público do estado no redirecionamento dos fluxos da riqueza.

Essa outra regulação tem como objetivo uma agenda de valores pautados no combate às causas das insustentabilidades: defesa e preservação ambiental; respeito à diversidade e promoção dos direitos de grupos sociais marginalizados; inclusão social e distribuição equitativa da renda e da riqueza; valorização dos distintos saberes de povos e culturas, além de preservação da sua memória histórica; e, valorização da democracia.

O cumprimento de uma tal agenda de valores é precisamente o que define a transição social e ecológica como um novo paradigma da transformação das sociedades de hoje. Neste sentido, as práticas de economia solidária são uma inspiração importante, pois elas já carregam em seu bojo a totalidade desse ideário. São inciativas pautadas na gestão e controle democrático dos seus mecanismos de decisão; surgem em grande parte dos casos da iniciativa de grupos sociais marginalizados; estão enraizadas localmente, ou seja, identificam-se com a realidade do seu território de pertencimento, pautando suas ações na valorização das identidades do lugar e na preservação do seu ecossisitema; baseiam-se numa distribuição equitativa dos rendimentos econômicos e na valorização do direito ao trabalho associado; e, se organizam com base em tecnologias sociais e de preservação do ecossistema em que vive.

Em resumo, urge a necessidade de reativarmos as solidariedades públicas e democráticas, tanto aquelas que partem do Estado e atualizam o princípio redistributista, quanto aquelas que partem da sociedade e atualizam o princípio reciprocitário. O papel das políticas públicas torna-se um elemento central neste esforço de mudança institucional cujo paradigma é inclusivo, democrático e ecológico.

Bibliografia

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* Professor Titular da UFBA (Escola de Administração). Coordenador do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA/EAUFBA) e da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária e Gestão do Desenvolvimento Territorial da Universidade Federal da Bahia (ITES/UFBA). Pesquisador CNPq: Bolsista de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora. Doutorado em Sociologia pela Université de Paris VII (Dennis Diderot). Mestrado e Graduação em Administração pela Universidade Federal da Bahia

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A revolução conquistada

Por Francisvaldo Mendes de Sousa *

Queremos apresentar o terceiro número dessa importante revista que nos ajuda a defender a ideia que uma sociedade melhor é possível com as atitudes importantes no dia a dia de nossa vivência em sociedade.

As atitudes são como tsunamis que arrastam mesmo contra a vontade do sistema que nos impõe comportamentos mecânicos que só beneficiam os donos dos meios de produção, os capitalistas e exploradores.

Nessa revista temos o professor Genauto Carvalho de França Filho apresenta uma reflexão sobre a profundidade do debate que é feito atualmente em relação à economia solidária e o alcance da agenda de mudança social a ela relacionada. Já no segundo texto, conhecemos a história da Metalcoop, uma cooperativa localizada em Salto/SP que, há 19 anos, proporcionou a recuperação de uma tradicional indústria metalúrgica prestes a falir. Em seguida, Caco de Paula nos apresenta o Instituto Terra Viva, um coletivo que conecta cerca de 80 famílias de produtores agroecológicos da região de Sorocaba/SP a uma ampla rede de economia solidária.

Colocando em prática a discussão sobre tecnociência Solidária de Sandra Rufino na edição anterior, contamos com o texto de Renato Frosch, sobre o Projeto Santos às Cegas. Essa grande experiência de tecnologia aberta que ocorre em Santos/SP dá acesso a pessoas com e sem deficiência a trajetos e monumentos ao longo da ciclovia da cidade.

Por fim, uma colaboração internacional: publicamos um depoimento do coletivo venezuelano Red Cecosesola, atuante desde a década de 1980 naquele país, e que conta com mais de 1200 trabalhadoras e trabalhadores associados, colaborando em diversos serviços prestados à população, mostrando que a população organizada pode superar desafios e contribuir para que o meio em que vive possa ser melhor para todos e todas da sociedade.

* Francisvaldo Mendes de Souza é Presidente Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (FLCMF)

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Uma nova conquista no horizonte

Por Francisvaldo Mendes de Souza *

Após a boa receptividade do lançamento dessa revista, – publicação que será uma referência no debate e fomento de uma nova forma de ver a relação capital e trabalho – , seguiremos firmes da publicação das próximas edições a fim de sedimentar uma nova visão sobre as relações sociais, rompendo os paradigmas da mentalidade de exploração que o sistema nos impõe diariamente.

Nessa segunda edição, os temas são essenciais para o aprofundamento da nossa percepção de construção de algo novo na engrenagem da produção, circulação, distribuição e consumo de bens e serviços. Na abertura Egeu Esteves e Cris Fernández trazem uma conceituação de Economia Solidária antissistêmica, fugindo das falácias da precarização e do empreendedorismo. 

Na segunda seção, uma discussão essencial para a esquerda: Sandra Rufino mostra que é preciso ir além do paradigma do “desenvolvimento das forças produtivas” para nos perguntarmos que tipo de tecnologia está por trás delas, assim defendendo a tecnologia social e a tecnociência solidária como tecnologias dos trabalhadores.

João Canuto, na terceira parte da revista, mostra que as agroflorestas são economicamente viáveis, sendo assim possível reorganizar a natureza de forma produtiva e para além da ecologia capitalista. 

A experiência concreta, ou seja, quem coloca a “mão na massa” nessa edição é Afonso Homma trazendo a experiência da COOPCENT, profunda iniciativa autogestionária dos trabalhadores da reciclagem. Assim, fechando a nossa revista que agora tem duas publicações de idade, temos a Giro Sustentável, coletivo de entregadores que aponta caminhos para a boa vida em comunidade em meio a precarização dos aplicativos e dos atravessadores do delivery.

Todos e todas que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária sabem quão importantes são as experiências e a vontade de transformação daqueles que militam pela transformação das relações desumanas do sistema capitalista. O fortalecimento de tais experiências é, não somente possível, mas também necessário e urgente. Cada pequena contribuição é importante para o espraiamento de novas atitudes!

* Francisvaldo Mendes de Souza é Presidente Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (FLCMF)

 

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O que cresce nas brechas pode derrubar muros? O projeto da outra economia

Karl Marx e Rosa Luxemburgo apontaram que, de alguma forma, o comunismo seria uma ligação entre o passado de nossos povos originários, – sociedades que compartilhavam o fruto do seu trabalho -, e o futuro da humanidade – que ao superar o capitalismo voltaria a socializar as riquezas. No mesmo sentido, a Ecosol também postula-se como um modo de produção com tal síntese, porém já projetando o futuro em práticas autogestionárias no aqui e agora. Lembrando os ensinamentos de Marx como, por exemplo, o de ver o assalariamento como uma opressão, Egeu Esteves e Cris Andrada nos apontam tal alternativa sistêmica como projeto de sociedade. Agucem os ouvidos para escutar tal Revolução Silenciosa.

Por Egeu Esteves e Cris Andrada *

Todos conhecemos as desgraças do capitalismo. A conversão de tudo e todos em mercadorias já possibilitou o comércio de pessoas, a superexploração dos trabalhadores, a dominação de povos inteiros e, no ritmo atual, ameaça a biosfera de nosso planeta. Compreendidos como recursos, tudo está lá, ao aguardo dos desígnios do Capital. Até nossa subjetividade e personalidade são convocadas a existir como ativos, transformadas em competências, valorizadas como capital humano e extraídas para servir aos mesmos de sempre. 

Também queremos crer que o capitalismo irá findar um dia, o quanto antes, e pensamos nas condições necessárias para esse inevitável passo, prometido desde o famoso manifesto. Mas quando? Será que o que ainda não existe, mas que já poderia existir, nos aguarda em algum lugar? Será a realização da utopia um sonho ou um pesadelo? Em outras palavras, a nova economia será equitativa e solidária? O Estado será participativo e democrático? Teremos direitos a garantir? Haverá leis a cumprir e liberdades a realizar?

Se tivesse rumo certo o futuro seria o esperar de um porvir, uma inevitável consequência do desenvolvimento dessas ou daquelas forças. Mas o futuro, por si só, não tem bússola e é preciso lutar para que o porvir seja melhor que o presente. É justamente a incerteza que convoca a política para dar direção a um futuro que, embora aberto, torna-se tema do presente.

Em busca de definições

Provavelmente seria muita pretensão apontar um caminho, uma direção, para a superação do capitalismo. Mas parece que é isso que trabalhadores e trabalhadoras, consumidores e consumidoras, vêm fazendo. Segundo Paul Singer (2000) “A economia solidária é o projeto que, em inúmeros países há dois séculos, trabalhadores vêm ensaiando na prática e pensadores socialistas vêm estudando, sistematizando e propagando.” (p.14). 

No exercício do direito à livre associação, trabalhadores/as unidos/as em bases equitativas e solidárias, investem suas reservas, recursos e trabalho para atuar coletivamente nos mercados de produção e de serviços e, ao fazê-lo, modificam a estrutura desses mercados. Essa economia invertida, em que o trabalho contrata o capital, tem sido chamada de Economia Solidária. Mas, afinal, o que é economia solidária? 

Provocada pela mesma pergunta, Sylvia Leser de Mello (2018) respondeu em entrevista:

— A Economia Solidária é basicamente aquilo que se propõe: uma outra economia, na qual não há um patrão e não há um empregado. Uma economia feita coletivamente e acompanhada democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores envolvidos. A decisão e a organização do trabalho estão nas mãos, na cabeça, na inteligência dos trabalhadores. Não tem um patrão, mas um coletivo de pessoas que vivem de um trabalho que é essencial para eles, mas sem subordinação, sujeição. O controle é feito coletivamente, nas assembleias e através da discussão dos problemas. – Sylvia Leser de Mello (Paixão, 2018)

Essa resposta indica que a Economia Solidária deve ser entendida como a economia dos/as trabalhadores/as, com caráter coletivo, igualitário e democrático. Uma economia autogerida, ou seja, sem intermediários (investidores, patrões, rentistas, usurários, atravessadores) na qual as pessoas, articulando suas capacidades de trabalho e necessidades de consumo, realizam juntos/as toda a variedade de atividades necessárias para a vida em sociedade. 

As iniciativas dos/as trabalhadores/as de criar empresas associativas para atuar coletivamente são tão antigas e presentes que permitem a ver a Economia Solidária como vertente da luta histórica dos/as trabalhadores/as de resistência ao avanço do capitalismo. Na fundação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, seus/suas trabalhadores/as afirmaram: 

Nos primórdios do capitalismo, as relações de trabalho assalariado […] levaram a um tal grau de exploração do trabalho humano que os(as) trabalhadores(as) organizaram-se em sindicatos e em empreendimentos cooperativados. Os sindicatos como forma de defesa e conquista de direitos dos/as assalariados/as e os empreendimentos cooperativados, de autogestão, como forma de trabalho alternativa à exploração assalariada. (Carta de Princípios do FBES, 2003)

Embora sindicatos e cooperativas tenham surgido na mesma época e com finalidades complementares na luta dos/as trabalhadores/as, Paul Singer (2002) argumentou que as conquistas do movimento sindical ofuscaram a forma associativa de luta contra o assalariamento:

Este avanço […] debilitou a crítica à alienação que o assalariamento impõe ao trabalhador. Em vez de lutar contra o assalariamento e procurar uma alternativa emancipatória ao mesmo, o movimento operário passou a defender os direitos conquistados e a sua ampliação. (p.109)

É necessário, portanto, perceber a Economia Solidária como parte da luta dos/as trabalhadores/as e reconhecer que ela assume um lado na luta de classes, o lado dos/as trabalhadores/as que constroem uma alternativa ao capitalismo. Voltemos à Carta de Princípios da Economia Solidária no Brasil: 

A Economia Solidária ressurge hoje como resgate da luta histórica dos(as) trabalhadores(as), como defesa contra a exploração do trabalho humano e como alternativa ao modo capitalista de organizar as relações sociais dos seres humanos entre si e destes com a natureza. (Carta de Princípios do FBES, 2003)

Neste sentido, entendemos a Economia Solidária como movimento social de resistência ao avanço do capitalismo:

É preciso caracterizar a Economia Solidária como um movimento de segundo grau, que atrai, põe em rede e aglutina, trabalhadores/as de outros movimentos sociais, com reivindicações e processos organizativos próprios: trabalhadores assentados da reforma agrária, atingidos por barragens, pescadores, ribeirinhos, agricultores familiares, trabalhadores de fábricas recuperadas, catadores de resíduos urbanos, artesãs, artistas de rua, usuários de serviços de Saúde Mental, membros de comunidades tradicionais se encontraram e, de alguma forma, amalgamaram suas lutas na Economia Solidária. (Andrada & Esteves, 2017, p. 177)

Por fim, defendemos que a Economia Solidária pode também ser definida como uma utopia concreta anticapitalista que, ao ser realizada pelos trabalhadores/as em muitos lugares e épocas, demonstra que outra realidade não só é possível, mas que também  acontece. 

Por consistir em um outro modo de trabalhar, produzir, obter crédito e comercializar, a Economia Solidária é, em suas origens, princípios e bases, uma ética e uma prática francamente anticapitalista. Um movimento social de resistência ao capitalismo tramado nas fendas do sistema, por trabalhadores dele excluídos ou em franca recusa às mazelas do assalariamento, com vistas a superá-lo. (Andrada & Esteves, 2017, p.176)

Ninguém melhor que uma trabalhadora do movimento apresentar o poder que viver a Economia Solidária entrega à possibilidade de sonhar. Ouçamos a costureira Nelsa Nespolo, trabalhadora da cooperativa Unidas Venceremos, de Porto Alegre:

Provar que a gente é capaz de ter o controle de todo o processo de produção. Os trabalhadores organizados em Economia Solidária, de forma coletiva. Isso é mexer na estrutura da sociedade. Isso é você de fato construir algo que o capitalismo não te tira, nenhum outro sistema te tira. É importante pra gente, é importante pro mundo. Tu pode acreditar que o mundo pode mudar, não só nas belas palavras, mas porque está mudando aqui, e porque também ele está mudando numa dimensão maior. Nelsa Nespolo, Cooperativa Univens. (Andrada & Sato, 2014, p. 12).

Até aqui vimos a Economia Solidária como prática, como movimento e como utopia. Vimos que o propósito dos/as trabalhadores/as do movimento não é criar uma economia paralela ou um setor da economia, mas sim substituir a economia capitalista por uma economia dos/as trabalhadores/as

Somente é possível vislumbrar essa possibilidade radical pois, na visão de Paul Singer, a Economia Solidária pode ser entendida como um modo de produção:

A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação destes princípios une todos os que produzem em uma única classe de trabalhadores que são possuidores do capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. (Singer, 2002, p. 10.)

Na Economia Solidária os trabalhadores/as associados/as detém, controlam e governam os meios de produção por meio de associações ou cooperativas, ambas sociedades de pessoas. A unidade entre posse, controle e uso dos meios de produção significa que os/as membros são sócios, trabalham e governam sua empresa. Significa também a integralidade dessa condição de sócio-trabalhador-administrador, ou seja, que não deve existir membros parciais, apenas sócios ou apenas trabalhadores ou apenas administradores.

A economia solidária casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição com o princípio da socialização destes meios. (…) O modo solidário de produção e distribuição parece à primeira vista um híbrido entre capitalismo e a pequena produção de mercadorias. Mas, na realidade, ele constitui uma síntese que supera a ambos. (Singer, 2000, p.13)

Essa formulação guarda o tesouro de um inédito viável, o projeto de uma economia em que trabalhadores/as-consumidores/as, livremente unidos por meio de associações e cooperativas, podem autogovernar todo o processo de produção, consumo e crédito, sem intermediários. Essa constitui a maior radicalidade da Economia Solidária como projeto de outra economia.

Porém, para compreender em detalhe o Projeto da Economia Solidária será preciso, antes, falar novamente do capitalismo. Para Paul Singer, 

O capitalismo é um modo de produção cujos princípios são o direito de propriedade individual aplicado ao capital e o direito à liberdade individual. A aplicação destes princípios divide a sociedade em duas classes básicas: a classe proprietária ou possuidora do capital e a classe que (por não dispor de capital) ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade (Singer, 2002, p.10).

O sistema capitalista foi estabelecido para manter ricos os que já são ricos, a classe possuidora de capital, por meio do recebimento de lucros, juros e rendas pagos pelo conjunto das atividades da economia, ou seja, ao fim e ao cabo, pagos pelo trabalho. No capitalismo há um ato que caracteriza o sistema econômico: a obtenção de excedente, seja pela extração de mais valia (trabalho não pago) ou de lucro, comercial ou financeiro. Nas empresas capitalistas o excedente gerado é utilizado para pagar os lucros dos sócios ou acionistas, os juros dos investidores e a renda imobiliária dos proprietários. Todo o sistema econômico capitalista é regido e medido por essa lógica, a tal ponto de a eficiência das empresas ser confundida com a lucratividade dos negócios. 

Se o propósito da Economia Solidária é ser o inverso do capitalismo, ou seja, um sistema econômico que produza igualdade ao distribuir a propriedade do capital diretamente onde o valor é gerado nas empresas, então é necessário que exista algo diferente entre as empresas dos/as trabalhadores/as e suas congêneres capitalistas. Pois bem, no interior das empresas dos/das trabalhadores/as ocorre um ato econômico que fundamenta a Economia Solidária como sistema econômico, trata-se do ato cooperativo. Em sentido amplo, o ato cooperativo é a própria atividade solidária, de ajuda mútua e sem fins de lucro, de pessoas que se associam para satisfazer necessidades comuns. 

Lembremos que associações e cooperativas são sociedades de pessoas, democráticas (um voto por pessoa) e que, embora tenham atividade e finalidade econômica, elas não têm fins de lucro. Ou seja, cooperativas e associações são criadas justamente para substituir intermediários capitalistas (comercial, trabalhista ou financeiro) por meio da solidariedade econômica. É essa “substituição” que recebe o nome de ato cooperativo. 

Embora fundamental, o ato cooperativo é tão simples que geralmente é negligenciado e subestimado em sua capacidade explicativa. Ele pode ser assim descrito: os/as trabalhadores/as aplicam coletivamente sua força de trabalho aos seus meios de produção e obtém um resultado que -descontado o pagamento de insumos, serviços e impostos- pertence integralmente ao coletivo de trabalhadores/as. Essa simples equação explica a presença da palavra solidariedade pois, ao não extraírem excedentes dos/as trabalhadores/as, suas empresas não produzem a desigualdade. Dito de outro modo, ao pagarem aos/às trabalhadores/as todo o valor gerado por seu trabalho, essas empresas produzem solidariedade.

Existem apenas três modalidades de ato cooperativo: um relacionado ao trabalho, pelo qual a solidariedade substitui intermediários trabalhistas (empregadores); outro ao comércio (compra e/ou venda), em que a solidariedade substitui intermediários comerciais (atravessadores); e outro às finanças, no qual a solidariedade substitui a intermediação bancária (realizada por agiotas, bancos ou financeiras). 

Agora, tendo em consideração o ato cooperativo em suas três modalidades, podemos finalmente detalhar o Projeto da Economia Solidária em quatro atividades fundamentais:

1) Trabalho: os/as trabalhadores/as se unem para deter, controlar e usar coletivamente os meios de produção, a exemplo das empresas recuperadas pelos/as trabalhadores/as, das cooperativas de trabalho autênticas (que não comercializam mão-de-obra), e dos coletivos de trabalho em geral, presentes em todos os segmentos econômicos (agricultura, reciclagem, vestuário, manufatura, alimentação, serviços de cuidado, saúde, educação, entre outros);

2) Comercialização: produtores/as se unem para vender coletivamente seus produtos e serviços, a exemplo das associações e cooperativas de produção e de comercialização que existem em todos os segmentos econômicos. Aqui é importante frisar que a produção pode não acontecer somente no interior da empresa solidária, pois muitas vezes ela inicia antes, na atividade familiar ou individual, ao exemplo das associações e cooperativas de pesca, de extração, de coleta, de agricultura familiar, entre outros; 

3) Consumo: consumidores/as se unem para adquirir coletivamente produtos e serviços. Neste item, a forma de organização varia conforme a durabilidade da relação comercial (esporádica, durável ou permanente). São exemplos as cooperativas de plataforma (promovem a compra de produtos e serviços diversos) as cooperativas de infraestrutura (provém saneamento básico, eletricidade e gás, telefonia, Internet, entre outros) e as cooperativas de habitação (constroem e administram moradias); 

4) Financiamento: trabalhadores/as e consumidores/as se unem para prover coletivamente serviços financeiros de poupança e crédito, a exemplo dos bancos comunitários, cooperativas de crédito e fundos rotativos. Aqui cabe dizer que prover um meio de financiamento solidário das atividades econômicas dos trabalhadores/as-consumidores/as é um pilar central encontrado em todo projeto bem sucedido de economia solidária relacionado com desenvolvimento local e/ou regional. 

Ressalvas necessárias

Uma das maneiras de enfraquecer a luta pela construção de uma economia de trabalhadores/as e consumidores/as é ocultá-la, tornando-a invisível e inaudível ao confundi-la com as propostas do momento. Atualmente estão na moda propostas de outras “economias” -criativas, circulares, do compartilhamento, do conhecimento, entre outras. Ao aproximar a economia dos/as trabalhadores/as de tais conceitos, sem as devidas ponderações, a Economia Solidária não se renova ou revigora, como gostariam alguns, pelo contrário, seus limites e contornos se tornam indefinidos, aparentemente imprecisos, e a força de suas experiências é enfraquecida. 

Contudo, ao nosso ver, as confusões mais danosas à Economia Solidária são duas antigas conhecidas, a informalidade e o empreendedorismo. É fundamental dizer que:

– A Economia Solidária não é informal. Ela é uma luta contra a informalidade. Certamente há muitos coletivos de trabalho informais na Economia Solidária, podem ser agrupamentos transitórios, formados por trabalhadores/as que se unem para realizar um evento, como uma feira ou um festival, ou coletivos de trabalho solidário que emergem no interior de atividades informais preexistentes, no seio de relações de trabalho familiares ou comunitárias. Porém, a Economia Solidária não é um campo de relações de trabalho informais e precárias em si, mas o seu oposto: representa, no interior da viração familiar ou individual, a busca e experimentação de formas organizativas coletivas que possibilitem a conquista do direito ao trabalho associado digno, formal e regulado.

– A Economia Solidária não é o empreendedorismo, mas seu contrário. Enquanto o discurso empreendedor veicula o heroísmo, enfatizando a capacidade individual, o “espírito empreendedor” e o “comportamento proativo” como fundamentais para a superação de dificuldades estruturais que são tratadas como problemas de ordem pessoal ou subjetiva, a ética solidária entende que a emancipação social, econômica ou política só é possível coletivamente, a partir do reconhecimento recíproco e da luta coletiva pela transformação das condicionantes estruturais que possibilitam a dominação e produzem a pobreza. Em outras palavras, enquanto a “ética do herói” incentiva a superação individual da pobreza por meio da competição de todos contra todos, a “ética da coletividade” promove a solidariedade como condição para a transformação social, política e econômica.

Ocupar e resistir para usar, produzir e consumir

Talvez o lema “ocupar, resistir, produzir” seja o que melhor caracterize este movimento social de luta emancipatória da classe trabalhadora, que põe lado a lado a luta pela terra, pela reforma agrária, pela regularização fundiária, pela recuperação de fábricas pelos trabalhadores, por condições dignas de trabalho de catadores/as de materiais recicláveis, pescadores/as artesanais ou quebradoras/es de coco de babaçu ou, ainda, a luta pelo reconhecimento das formas tradicionais de vida, produção e reprodução social de comunidades de terreiro, quilombolas, indígenas ou ribeirinhas. 

Para sintetizar, pode-se dizer que a Economia Solidária é um modo de produção, distribuição, consumo e financiamento construído no seio do movimento internacional de luta coletiva dos/as trabalhadores/as contra a opressão e a dominação capitalista e também no cotidiano de trabalhadores/as concretos, com suas necessidades e capacidades particulares. A Economia Solidária é uma vertente legítima dessa luta, suas armas ou ferramentas são controle coletivo e autogestão dos meios de produção, consumo e crédito. Embora reserve um sentido utópico, esse outro modo de produção não é um sonho, ele existe e acontece na prática cotidiana de trabalho coletivo e gestão democrática das empresas dos/as trabalhadores/as. Ele cresce silenciosamente nas brechas do sistema e, por vezes, derruba alguns de seus muros.

Referências

ANDRADA, Cris F. & ESTEVES, Egeu G. Sonho, história, loucura? Economia Solidária: um movimento de resistência no mundo do trabalho. In: E. F. Rasera, M. S. Pereira e D. Galindo (Orgs.) Democracia Participativa, Estado e laicidade: Psicologia Social e enfrentamentos em tempos de exceção. Porto Alegre: Abrapso, 2017.

ANDRADA, Cris; SATO, Leny. Trabalho e política no cotidiano da autogestão: a rede justa trama. Psicologia & Sociedade; 26(n. spe.), n.3, v.13, 2014.

FBES. Carta de princípios da Economia Solidária. In: III Plenária Nacional da Economia Solidária, 2003.

PAIXÃO, Mayara. Conheça o projeto de extensão universitária fundado pelo economista Paul Singer. Jornal do Campus (USP), 5, 2018.

SINGER, Paul. Economia Solidária: um modo de produção e distribuição. In: P. Singer e A. R. de Souza. (Orgs) A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

* Egeu Esteves é psicólogo, doutor em Psicologia Social pela USP e professor na Unifesp. Cris Andrada é psicóloga, doutora em Psicologia Social pela USP e professora na PUC-SP.

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Uma tecnologia solidária e emancipatória é possível?

Por muito tempo, um dos paradigmas centrais da esquerda era o de “desenvolvimento das forças produtivas”. Mas que forças produtivas? Forças que produzem o que, para quem e como? O fato é que diante de imensos “progressos” tecnológicos, a fome segue e o colapso ambiental se acelera. Contra as chamadas “forças destrutivas” do Capital, Sandra Rufino nos diz que a tecnologia não é neutra, e que a tecnologia social e a tecnociência solidária podem ser alternativas para o empoderamento dos trabalhadores na construção de outra economia.

Por Sandra Rufino *

A ciência e a tecnologia avançaram muito nos séculos XX e XXI, muitas conquistas no âmbito da saúde, telecomunicação, indústria, serviços, agricultura, entre outros. Entretanto, mesmo com tantos avanços, ainda não fomos capazes de acabar com a fome e a desigualdade. Os impactos negativos sociais e ecológicos gerados por um modelo convencional de produção são insustentáveis. Estamos nesse modelo matando e extinguindo os diversos tipos de vida no planeta, inclusive a nossa.

A ciência, com o termo originado do latim scientia (conhecimento), significa um conjunto de saberes sistematizados e aprofundados sobre algo ou alguma coisa. Já a tecnologia, oriunda do grego antigo tékhnē (técnica, arte ou ofício) e lógos (estudo), significa o estudo de conjunto de técnicas. Ao resgatarmos a essência dos dois termos, é possível perceber que tanto a ciência quanto a tecnologia não são exclusivas da academia e empresas, e sim de toda a sociedade. Mas que, ao passar dos séculos, foram sendo apossadas e, talvez por isso, temos dificuldades de reconhecer que os povos africanos, indígenas e tradicionais tenham sido capazes de grandes feitos.

A ciência está intimamente ligada com a tecnologia; boa parte dos avanços de uma foram alcançadas por meio da outra. Portanto, nosso propósito aqui é propor uma reflexão sobre que tipo de tecnociência produzimos e nos indagar: para que ela serve, para quem, como e por que ela é criada?

Os primeiros estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) com o objetivo de avaliar os impactos que a tecnociência pode trazer à sociedade datam do final dos anos de 1960 e início dos anos 1970. A motivação desses estudos e movimento foram as preocupações com a natureza e com o desenvolvimento de bombas químicas e nucleares. Criticando a crença de resultados positivos e a neutralidade da ciência e da tecnologia.

Muitos movimentos (acadêmicos e da sociedade civil) criticam o modo de produção hegemônico e buscam construir coletivamente alternativas tecnológicas que atendam às demandas sociais dos mais vulneráveis, buscando assim equidade, justiça social e desenvolvimento sustentável. 

O movimento da tecnologia apropriada (TA) começou, ou pelo menos se inspirou, na experiência da Índia na década de 1920, liderada por Gandhi com o resgate do uso das rocas tradicionais como resistência e enfrentamento a dominação inglesa em seu país (Dagnino; Brandão; Novaes, 2004). A TA, de modo geral, transfere soluções tecnológicas desenvolvidas nos países centrais para os países da periferia, oferecendo-as em versões simplificadas: de baixo custo e de fácil construção, operação e/ou manutenção (Thomas, 2009). Esse movimento só chegou na América Latina na década de 1960, mas a fome e miséria não desapareceram e as soluções de tecnologias “prontas e adaptadas” não respondiam a todas as problemáticas na América Latina. Então, houve, em meados da década de 1990, o ressurgimento de iniciativas para mitigar os problemas e para transformação social, as quais foram chamadas de tecnologia social (TS) (Thomas, 2009).

No Brasil, a TS surge no final da década de 1990 e início dos anos 2000 a partir da articulação de várias instituições (movimentos sociais, sindicatos, ONGs, universidades, gestores públicos) e que valorizavam a perspectiva popular e democrática. A tecnologia social é o conjunto de: produtos (artefatos ou serviços), técnicas e/ou metodologias reaplicáveis e transformadoras, o qual deve ser desenvolvido e aplicado na interação com a comunidade e apropriado por ela, representando efetivas soluções para a inclusão social e melhoria das condições de vida (ITS, 2004). O Instituto de Tecnologia Social define os seguintes parâmetros para o desenvolvimento da TS:

1: Quanto à sua razão de ser: visa à solução de demandas sociais concretas, vividas e identificadas pela população; 

2: Em relação aos processos de tomada de decisão: usa formas democráticas de tomada de decisão, a partir de estratégias especialmente dirigidas à mobilização e à participação da população; 

3: Quanto ao papel da população: há participação, apropriação e aprendizagem por parte da população e de outros atores envolvidos; 

4: Em relação à sistemática: há planejamento, aplicação ou sistematização de conhecimento de forma organizada; 

5: Em relação à construção de conhecimentos: há produção de novos conhecimentos a partir da prática; 

6: Quanto à sustentabilidade: visa à sustentabilidade econômica, social e ecológica; 

7: Em relação à ampliação de escala: gera aprendizagens que servem de referência para novas experiências. Gera, permanentemente, as condições favoráveis que deram origem às soluções, de forma a aperfeiçoá-las e multiplicá-las.

Uma das bases importantes para a TS é desenvolver uma solução tecnológica que tem como princípio o diálogo e a valorização dos diferentes conhecimentos (integração entre conhecimento acadêmico e saber popular). Busca contribuir para a emancipação das classes populares, por meio da apropriação do processo de desenvolvimento e uso das tecnologias.

No uso da tecnologia social, há o pressuposto da construção de soluções de modo coletivo pelos que irão se beneficiar dessas soluções. Tais agentes atuarão com autonomia, não sendo apenas usuários de soluções importadas ou produzidas por equipes especialistas, como acontece com as tecnologias apropriadas. O impacto da TS se dá no indivíduo e no coletivo. Com objetivo de apropriação do conhecimento, desde a concepção a implementação da tecnologia social demandada pelo local, podemos considerar quatro grandes impactos: 1) apropriação do conhecimento; 2) sentimento de partilha com o desenvolvimento da tecnologia e em seus resultados; 3) exercício da democracia; 4) a emancipação do indivíduo e da comunidade que poderá, não só multiplicar as tecnologias desenvolvidas, mas também ter a capacidade de desenvolvimento de outras.

O caminho até as novas tecnologias

Muitos ainda podem se questionar o quão distante as tecnologias sociais estão das chamadas novas tecnologias ou hightech. Considerando que a tecnologia social é a construção coletiva de artefatos (produtos), e/ou métodos/ técnicas que permitam impulsionar processos de empoderamento de trabalhadores e comunidades como alternativas de desenvolvimento, ela não está distante (e nem poderia) das novas tecnologias. O que vai depender dessa proximidade ou não é a necessidade dos trabalhadores e comunidades envolvidas. 

Na Comunidade de Deus, no Rio de Janeiro, por exemplo, foi necessário o desenvolvimento de TS para rádio e portal de internet comunitários. Já para a população do conjunto Palmeiras da periferia de Fortaleza que utiliza moedas sociais, o banco Palmas, para obter maior alcance dessas moedas (utilizadas nos bancos comunitários), fez-se o uso de aplicativo em rede com outros bancos comunitários para o uso da moeda social em formato digital: e-dinheiro.

As tecnologias sociais são desenvolvidas para as necessidades mais latentes das comunidades, e seus objetivos são de difusão, sem fins lucrativos, para outras comunidades necessitadas. Buscam o objetivo de bem comum e uso de todos daquela comunidade. Os valores que regem as tecnologias sociais estão ligados à cooperação e à solidariedade. Vimos em muitas comunidades, durante a pandemia, o desenvolvimento de métodos ou técnicas que podem ser consideradas tecnologias sociais, por terem como objetivo ajudar os que mais sofriam/sofrem com a pandemia e o agravamento das crises que já existiam nesses locais. A rede de mapeamento, comunicação e apoio da comunidade do Morro do Preventório, por meio de um banco comunitário no Rio de Janeiro, o Banco Preventório, e outros exemplos vinculados ao movimento das favelas, podem ser considerados exemplos desse enfrentamento e de como as tecnologias sociais podem ajudar as comunidades nas várias crises, não apenas na pandemia.

Os resultados positivos do desenvolvimento e da transformação social se tornaram visíveis e, por isso, o tema TS passou a compor como pauta para fortalecer as políticas públicas de geração de trabalho e renda a fim de atender trabalhadores(as) dos grupos populares (rurais, autônomos, informais, de empreendimentos de economia solidária (ECOSOL), povos e comunidades tradicionais entre outros).

Nos últimos 20 anos, a Fundação Banco do Brasil conseguiu criar um banco de dados sistematizando e promovendo premiações para tecnologias sociais em todo território nacional em diversos temas: alimentação, educação, energia, habitação, meio ambiente, recursos hídricos, saúde, entre outros. 

A Tecnociência Solidária

Muitas ações de TS estão vinculadas à ECOSOL, que é composta por formas de organização econômica – produção, comercialização, finanças e consumo – construídas com base nos valores e princípios como: do bem viver em equilíbrio e com respeito a natureza e a vida; da autogestão e da democracia; da cooperação e da solidariedade; da prática do comércio justo e do consumo solidário; do reconhecimento do lugar fundamental da mulher e do feminino na construção de um novo modo de produção; e da justiça a distribuição dos resultados.(Singer, 2002; FBES, 2021)

As pessoas se unem e cooperam de maneira solidária, formando os Empreendimentos Econômicos Solidários. Se organizam coletivamente, porque desta forma se tornam mais fortes para enfrentar as diversas crises (econômica, social, ambiental, saúde, educação etc.). A ECOSOL, apesar de muitas vezes crescer nas crises por ser a única opção que resta aos trabalhadores/as, é um modo de produção que emancipa a todos e todas. A ECOSOL permite a produção e reprodução da vida, o desenvolvimento sustentável, a equidade e a justiça social, além da paz. É um movimento centrado na valorização das pessoas e na luta contra as desigualdades sociais.

Na união da TS com a ECOSOL surge a tecnociência solidária. Entretanto, segundo o autor Renato Dagnino (2020), esse termo deveria substituir o de tecnologia social e de outros aparentemente semelhantes como as tecnologias de base, sustentável, responsável, inclusiva, frugal, além da inovação social, entre outros com a mesma postura política de criação de uma ciência e tecnologia alternativas. Para o autor, não devemos separar em desenvolvimento de ciência e tecnologia, pois sempre construiremos os dois conjuntamente. Sendo a construção da tecnociência solidária baseada nos valores e princípios da ECOSOL, isso permitirá a ela o desenvolvimento de uma tecnociência que busque verdadeiramente uma transformação social.

Referências

DAGNINO, Renato. Tecnociência Solidária: um manual estratégico. Lutas Anticapital. Marília, 2ª edição, 2020. 161 p.

DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: LASSANCE Jr. et al. (ed.) Tecnologia social: Uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. p. 15- 64

FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: https://fbes.org.br/

INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL (ITS). Caderno de debate tecnologia social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Raiz, 2004.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. 127p. 

THOMAS, H. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales. Conceptos / estrategias / diseños / acciones. Primeras Jornadas de Tecnologías Sociales.Programa consejo de la demanda de actores sociales – MINCyT. Buenos Aires, 2009.

* Sandra Rufino é professora associada do depto. de engenharia de produção da UFRN. Possui mestrado e doutorado em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Tecnologias Sociais pela Université Catholique de Louvain – UCL. É membro fundadora da Rede de Engenharia Popular Osvaldo Sevá (REPOS),  conselheira dos Engenheiros Sem Fronteiras – ESF Brasil, orientadora ESF Natal  e ENACTUS UFRN.

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Agroflorestas são economicamente viáveis?

Para escapar do colapso ecológico em curso, é preciso produzir de outras formas. A agrofloresta, como diz João Canuto, é uma oportunidade realista para a continuidade da vida no planeta. Apesar disso, questiona-se muito tais sistemas alternativas de produção de comida, no sentido de não terem o potencial produtivo dos atuais sistemas convencionais do veneno. Se essa presunção é correta você vê na sequência. O ponto é que os fatores necessários para a boa vida na terra dificilmente são chamados para fazer parte dos cálculos. E, nesse sentido, muito além de comida, as agroflorestas podem ser um prato cheio para combater a desigualdade, regenerar nossas fontes de água exauridas, e o próprio planeta

Por João Carlos Canuto *

Dentre as diversas polêmicas suscitadas pela disputa de espaço entre modelo convencional e agroecológico, uma se destaca: a da viabilidade econômica dos sistemas de produção. Temos atualmente muitas informações sobre a economia dos cultivos convencionais, mas pouco se investigou seriamente sobre a economia dos sistemas diversificados ou complexos. Assim, utilizando métodos convencionais, muitas vezes nos apanhamos fazendo comparações entre agriculturas fundadas em paradigmas díspares. Como já disse Einstein, loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual.

Por exemplo, pode-se entender viabilidade como produzir “x” sacas de grãos por hectare, mas estaremos deixando de considerar inúmeros outros elementos de suma importância, que vão além do parâmetro Kg/ha. Portanto, se quisermos entender a viabilidade econômica de modo mais completo, não podemos deixar de considerar aspectos positivos dos sistemas agroecológicos como a restauração da biodiversidade, a economia de recursos, a autonomia econômica dos agricultores, a segurança alimentar, o controle biológico natural, o enriquecimento do solo, a recuperação da água, a regulação do clima, a oferta de alimentos isentos de agrotóxicos, a inclusão social, entre outras tantos. VER LIVE Vantagens safs.

Mesmo assim, se pudermos separar a questão estrita da viabilidade econômico-financeira, sobram argumentos indicando claramente a superioridade dos sistemas agroecológicos e agroflorestais.

Para melhor entender a questão da viabilidade econômica dos sistemas biodiversos, propõe-se discutir alguns conceitos sobre agrofloresta e quais suas diferenças em relação à agricultura convencional, quais os principais fundamentos propulsores da produtividade das agroflorestas que incidem sobre sua viabilidade econômica, transcendendo o debate focado nos aspectos financeiros para a viabilidade social da agrofloresta.

A viabilidade humana da agrofloresta inclui o enfoque financeiro, mas busca constituir-se como alternativa de sustentabilidade ampliada para a existência digna do homem no planeta.

O que é agrofloresta e quais suas diferenças em relação ao monocultivo

Atualmente a sociedade vai tomando consciência que o modelo econômico em andamento está falido e a agricultura industrial é uma das principais protagonistas nesse processo, por provocar os mais diversos impactos negativos sobre os recursos da natureza, conforme é possível verificar no Quadro 1. 

Em contraponto, também estão sendo construídas com mais força alternativas ao modelo, fundamentadas no movimento agroecológico e agroflorestal.

Agroflorestas são sistemas biodiversos que unem de modo harmonioso cultivos e floresta, criando um equilíbrio entre objetivos econômicos e ecológicos. Em agrofloresta não há modelo único, mas sim variações locais da aplicação dos mesmos princípios. As agroflorestas podem expressar-se na forma de quintais e jardins agroflorestais, sistemas agrossilvopastoris, ter foco em frutas, hortaliças, cultivos anuais, madeiras, entre tantos outros arranjos e escalas produtivas.

A seguir, no Quadro 2, apresentamos abaixo algumas das principais diferenças entre a proposta agroflorestal e a convencional ou simplificada:

A superioridade ecológica dos sistemas complexos é notória, semelhante à dos sistemas naturais, que se perenizam por conta da reciclagem natural e abundância de biodiversidade, características que conferem estabilidade e resiliência semelhante a esses arranjos produtivos.

Viabilidade econômica da agrofloresta

Ao discutirmos a viabilidade econômica dos modelos industrial e ecológico de fazer agricultura, podemos escolher um enfoque estritamente financeiro ou uma visão social e humana dos diferentes sistemas. Vamos começar pela abordagem econômico-financeira e, posteriormente, ampliaremos esta forma de avaliação.

Mesmo considerando os parâmetros clássicos de avaliação financeira, as agroflorestas demonstram sua grande potencialidade de renda, devido ao que vamos explanar mais adiante, qual seja, as qualidades ecológicas emergentes propulsoras da produtividade.

Para tanto utilizaremos uma ferramenta relativamente simples, o índice de equivalência de área (IEA). O IEA é um índice utilizado para avaliar a eficiência dos sistemas biodiversos, em comparação aos de monocultivo. Os sistemas são considerados eficientes quando o IEA é superior a 1,00.

O IEA de uma agrofloresta é a relação entre a produtividade por área (kg/ha) do conjunto de seus cultivos com a produtividade (kg/ha) destas mesmas espécies em sistema de monocultivo. 

A tendência indicada pelas pesquisas é que os sistemas diversificados produzem mais que os de monocultivo. A razão disso é a geração de processos ecossistêmicos na forma de qualidades emergentes positivas, como melhor aproveitamento espacial do terreno, potencializado pela estratificação aérea, que permite uma captação de radiação solar amplificada, pela melhor exploração de camadas mais profundas de solo e seu consequente bombeamento de nutrientes de camadas  profundas, com aproveitamento da biomassa por meio de podas, além de todos os manejos ecológicos que trazem equilíbrio e menor ou nula aplicação de insumos externos.

Embora o exemplo acima seja fictício, a literatura científica, mesmo que ainda incipiente, já mostra resultados sempre maiores que 1,0 para sistemas diversificados, devidos às já comentadas qualidades ecológicas emergentes inerentes a estes sistemas.

Portanto, mesmo sob a ótica estritamente financeira, os sistemas agroflorestais mostram não apenas sua viabilidade, mas sua clara superioridade econômica em comparação à agricultura de monocultivo.

Viabilidade humana da agrofloresta

Um dos conceitos centrais nessa argumentação é o de propriedades ou qualidades emergentes. São qualidades novas criadas pela sinergia entre componentes dos sistemas biodiversos, em que “o todo é superior à soma das partes”. Na verdade, as qualidades emergentes são “o segredo” das altas produtividades físicas e ecológicas das agroflorestas.

Apresentamos a seguir algumas dessas chaves da produtividade das agroflorestas, exemplificadas com imagens no Quadro 3: 

Biodiversidade funcional é a propriedade emergente que cria equilíbrio e revitalização nos agroecossistemas: alelopatias, mutualismos, simbioses entre plantas e micorrizas, controle biológico por inimigos naturais, mineralização da matéria orgânica por microrganismos… E muito mais. Exemplos de benefícios: economia de insumos de proteção de plantas, redução de adubação (deposição de matéria orgânica, fixação de nitrogênio atmosférico) e ampliação de oferta de produtos saudáveis.

Multiestratificação aérea: captação ampliada da radiação solar, em comparação aos monocultivos, por conta da exposição das plantas em diversos “andares”; arranjo espacial mais compacto.

Exemplos de benefícios: aumento da fotossíntese do conjunto das espécies, aumento do número de plantas por área e consequente potencial de maior produtividade física (kg/ha).

Multiestratificação subterrânea: extração de elementos de horizontes profundos e disponibilização na superfície do solo como deposição de serrapilheira ou pelo manejo de podas. Exemplos de benefícios: economia de adubos, maior produtividade física (kg/ha), menor uso de água.

Manejos agroecológicos: os manejos agroecológicos são as estratégias mais usuais e de maior impacto na produtividade, tendo diversos efeitos ecológicos com reflexos econômicos, já bastante documentados, seja na fertilidade química, na vida do solo e na renovação da qualidade dos recursos como a água. 

Ainda na questão dos manejos agroecológicos, esses tem reflexos em diversos níveis, tais como:

Na renovação da fertilidade: uso de composto, esterco, resíduos da propriedade; cultivo de plantas de adubação verde e de produção de biomassa. Exemplos de benefícios: economia na aquisição de fertilizantes, menor custo de transporte, elementos não tóxicos em contato com o ambiente, conservação da qualidade dos recursos internos, entre outros. 

Na melhoria física e biológica do solo: melhor estruturação e qualidade física, facilidade de penetração das raízes, maior absorção de água, abundância da fauna edáfica, aceleração da mineralização e absorção de nutrientes. Exemplos de benefícios: manutenção do potencial produtivo do solo a baixo custo, menor despesa em manejos e insumos, menos despesas com práticas de conservação do solo, maior crescimento das plantas, mais produtividade física.

Na disponibilidade e qualidade da água: captação, conservação e “produção” de água, à semelhança de uma floresta natural. Exemplos de benefícios: menor custo de irrigação, melhor qualidade da água, recuperação de nascentes e maior potência de oferta de água potável.

Considerações finais

Sistemas biodiversos, como as agroflorestas são alternativas viáveis ao monocultivo. Considerando tão somente a abordagem financeira, mostram sua superioridade produtiva em comparação aos monocultivos da agricultura industrial. No entanto, seu papel não é apenas o de gerar renda aos agricultores, mas, mais do que isso, propõem uma nova forma de relacionamento com a natureza e com a vida humana. São alternativas de inclusão social, tanto dos agricultores como dos cidadãos da cidade. Oferecem produtos isentos de agrotóxicos. Conservam os recursos solo, água e biodiversidade. Mitigam as mudanças climáticas. São, assim, opções realistas para a continuidade da vida no planeta.

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