Pensar a Educação como ferramenta libertadora de pessoas não deve ser um sonho intangível. Não só. Mais do que isso, a ação-reflexão no campo educacional é demanda ontológica e urgência civilizatória. Destacamos que, nesse conceito de civilização, fazemos referência a grupos sociais que olhem além de seus interesses restritos, que percebam a fundamental necessidade de pensar solidariamente o ser humano, que compreendam que humanismo é conhecimento, prática e método. Em tempos de ameaças sistêmicas e continuadas à cidadania brasileira, torna-se um imperativo ético pensar em práticas que priorizem tanto o senso comunitário – aliado à autogestão das pessoas – quanto a defesa da dignidade humana. É sobre isso, e muito mais, que falam Almir José da Silva* e Flávio Oliveira Roca** nesse texto
Educar implica em libertar
O Brasil atual é um celeiro doentio de mazelas e ódios, sobretudo contra pobres, pretos e periféricos. Mais do que uma infelicidade, é um projeto capitalista a combinação de aviltamento, alienação e opressão exercida diariamente contra estudantes, trabalhadores e famílias, que sofrem esse controle sufocante em escolas, casas, igrejas e fábricas.
Enxergar essas amarras não é uma percepção espontânea; é tarefa que exige da pessoa atenção, conhecimento e autoconhecimento. E é nessa urgência no olhar que desponta o ambiente educacional: espaço que pode ser de libertação – quando impregnado do pensar libertador –, mas que também pode apertar ainda mais as amarras – quando burocrático e indiferente.
Fica claro que a prática da Economia Solidária exige que as pessoas que foram formadas no capitalismo sejam reeducadas. Essa reeducação tem de ser coletiva, pois ela deve ser de todos os que efetuam em conjunto a transição, do modo competitivo ao cooperativo de produção e distribuição. […] Essa visão não pode ser formulada e transmitida em termos teóricos, mas apenas em linhas gerais e abstratas. O verdadeiro aprendizado dá-se com a prática, pois o comportamento econômico solidário só existe quando é recíproco. (SINGER, 2005)
Como será abordada adiante, a estratégia cínica e alienante de muitos dos detentores do poder estatal, que questiona e achincalha sistematicamente o pensamento e a práxis de Paulo Freire, impõe-nos a necessidade urgente de buscar o “inédito viável” freireano, de sedimentar os alicerces de uma Educação que torne as pessoas solidárias e conscientes de seu poder social.
O mundo, agora, já não é algo sobre que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua Humanização. (FREIRE, 2013)
Sob essa perspectiva libertadora, a constituição de coletivos de Economia Solidária tem revelado a concretude de capacitar pessoas invisibilizadas ou desassistidas por políticas públicas, dando-lhes cidadania, cobertura e autonomia na gestão de suas vidas. A EcoSol mostra-se uma experiência efetiva na proposição de uma sociedade diferente, em que seus integrantes percebem que o engajamento coletivo em demandas e ações potencializa os bons resultados colhidos por todo o grupo.
Exaltar o “eu” é uma armadilha neoliberal
Em um contexto político conturbado, como esse em que nos encontramos, é fundamental compreender as estratégias por trás dos jogos de poder e as intencionalidades das ações, pois são dessas que advêm os maiores perigos, por conta da natureza manipuladora que os objetivos individualistas exercem sobre sujeitos ou grupos. Assim, o fenômeno que experimentamos de desinteligência intencional, tem por característica um movimento bipolar, que não se encontra apenas na compreensão dos transtornos, mas na desestabilização psíquica e social. O movimento desta desinteligência é marcado por um compasso frenético de jogar ao público uma torrente de informações dúbias ou esmigalhadas com referências duvidosas, quando divulgadas. Em um trabalho orquestrado, outra tempestade acomete os meios de informação com novas teorias ou que contradizem parcialmente ou totalmente a versão anterior.
Essa estratégia gera algo muito valioso hoje: o engajamento. Contudo, não se encontra a compreensão sartreana de um processo em que o sujeito, em seu empenho ético e político no exercício livre de sua vontade, faz suas escolhas para a transformação de si e de seu mundo. O processo de engajamento que se encontra é uma subversão do sujeito, que deixa de ser protagonista em sua leitura de mundo e passa ao papel de mero consumidor de informação com falsas participações em escolhas já postas. Esse pretenso engajamento exige um pedágio: o acesso às informações que servirão para alimentar um ciclo perpétuo de demanda e consumo.
Ademais, a situação concreta de opressão demonstra uma dualidade existencial em que as pessoas hospedam em si mesmas uma combinação de revolta e alienação, pois sentem as consequências como vítimas do sistema e, ao mesmo tempo, não tomam para si o processo de transformação de seu status quo. Decerto, a situação redunda em fatalismo e imprime uma sensação de impotência. Daí a necessidade de investimento em uma Educação para a emancipação, que ultrapasse componentes curriculares e saberes tecnicistas. O compromisso com a libertação comunga com a construção de uma sociedade que, em suas bases, declara a solidariedade e o bem comum como realizações da justiça. Faz-se necessária a superação de um contexto em que a disputa de poder é centro das ações políticas com forte teor individualista, em que grupos e corporações vendem a ideia neoliberal do triunfo do “eu”, que esmaga as ações coletivas, destruindo o espaço de civilidade.
A constituição da cooperativa Cipó
Tendo como motor elementar o fundamento de que a educação liberta, um conjunto de nove educadores da Baixada Santista organizou-se para pensar, estruturar e constituir a Cipó: uma cooperativa que transporta a concepção emancipadora de Economia Solidária para a pesquisa escolar. Nesse contexto, a Cipó realça a autogestão humana sobre a gestão de negócios; estuda a efetivação de currículos que libertem instituições e pessoas das amarras tecnicistas; colabora para a efetivação de uma gestão escolar democrática e, essencialmente, dá o testemunho para outros coletivos de que a Economia Solidária é viável, justa e necessária.
Os cooperados da Cipó têm formações acadêmicas distintas, atuantes em diversas áreas do conhecimento, pesquisa educacional e segmentos das instituições escolares. Essa multiplicidade formativa é decisiva para a consecução dos trabalhos da cooperativa, uma vez que hierarquias e distinções são substituídas por partilha democrática de análises, opiniões e gestão de recursos. Os bons resultados são fruto de um trabalho coletivo e os reveses absorvidos de forma igualmente solidária, não existindo, portanto, culpados ou protagonistas. Assim pontua Paul Singer (2005):
De forma geral, há uma inversão completa de situação, quando alguém deixa de ser assalariado e torna-se cooperador. Enquanto assalariado, suas escolhas eram extremamente limitadas, reduzidas quase sempre a ficar ou deixar o emprego. […] Quando se torna cooperador, ele passa a ser membro de um coletivo, encarregado de tomar tais decisões.
É particularmente reconfortante verificar que ainda há espaço para criticidade, reflexão e engajamento social em um cenário predatório como o da administração de escolas e recursos educacionais. É fundamental acreditar que o sucesso de um estudante ou de uma instituição não reside apenas em critérios de desempenho ou ranqueamentos. Isso é pouco e é ofensivo à cidadania. Desde sua criação, a cooperativa EcoSol Cipó concebe a verdadeira Educação como dinâmica, libertadora, solidária e merecedora de contínuos e criteriosos estudos.
A Educação como libertação
É urgente reconhecer a escola como um espaço social de primeira grandeza, terreno fértil para fomentar uma visão de humanidade mais justa e solidária. Enxergar a instituição escolar como simples depósito de gente e saberes estáticos presta-se mais à ideologia neoliberal de alienação e exploração humana.
Ao tecer a relação entre o campo do fazer educação com o da condução da própria existência, esse saber torna-se a própria realidade; a presença da dicotomia entre o pensar e a vida desaparece e a proximidade com a libertação autêntica descobre-se como um fazer permanente. A vida sugere muito mais do que uma simples adesão a projetos, mas uma participação engajada de todos os sujeitos que escrevem a história.
É difícil responder completamente às inúmeras indagações que surgem quando nos propusemos a discutir uma Educação libertadora e a autogestão de pessoas. Regressamos às bases teóricas e tratamos o contexto por meio de uma leitura panorâmica, embora o caminho nos exigisse uma jornada mais longa e amparada por inúmeros pensadores e atores sociais que atuaram e ainda o fazem em suas redes sociotécnicas. Acreditamos ser necessário ir além, mas, nesse mundo provável e rico de possibilidades, cabe-nos instigar e propor o debate franco a partir da realidade concreta, escapando da inércia e dos dogmatismos infrutíferos. Desse modo, poderemos crer (ou esperançar) que nossas ações ulteriores contribuirão para o traçado de um futuro sustentável, solidário e diferente do atual.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 54 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.SINGER, Paul. A Economia Solidária como ato pedagógico. In: KRUPPA, Sonia (org). Economia Solidária e Educação de Jovens e Adultos. Brasília: Inep, 2005.
* Almir José da Silva: professor de Filosofia, pedagogo . Integra a cooperativa Cipó Educação, integrante dos FESBS (Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista) e coletivos Ecosol da Baixada Santista.Pesquisador – grupo de estudos Filosofia e Educação no Espaço Monica Aiub. Filosofia, Arte e Cultura;
** Flávio Oliveira Roca: professor de Química e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Integra a cooperativa Cipó Educação, o mandato coletivo Santos Progressista (Partido dos Trabalhadores) e coletivos EcoSol da Baixada Santista e do Estado de São Paulo.