Associativismo e cooperativismo no meio audiovisual: um caminho necessário

O cinema é uma linguagem artística que envolve espaço (projeção de imagem em uma superfície) e tempo  (movimento e ritmo), como afirmou o italiano Ricciotto Canudo em seu Manifesto das Setes Artes (1923), ao declarar em seu sistema que o cinema seria a sétima arte. Mas além disso, o cinema também é um dos elementos do audiovisual, um conceito que abrange tudo o que envolve elementos visuais e sonoros, como conteúdos televisivos, videoclipes, entre outros. E quem produz todas essas obras, muitas vezes, acaba sendo vítima de um cenário cada vez mais precarizado e de desrespeito ao profissional e seus direitos. Nesse texto, Eduardo Ferreira* e Vitória Felipe** falam sobre essa realidade, e sobre como a associação e a cooperação entre trabalhadores podem ser um caminho possível para mudá-la.

Para a produção de um filme publicitário, um filme de ficção ou documentário, um videoclipe, uma novela ou um vídeo para um canal do YouTube; é necessário o trabalho de uma equipe. Por isso é possível afirmar que o audiovisual só acontece coletivamente, a partir do trabalho de várias pessoas: produtores, roteiristas, fotógrafos, elenco, editores, diretores, entre muitas outras funções necessárias para o processo criativo.

No entanto, ainda que seja muito poética a visão da arte do coletivo, o dia a dia do mercado é composto por muita hierarquia, longas jornadas de trabalho e um cenário marcado por freelances, pejotização, contratos precários, individualização e precarização das relações de trabalho. A cultura, de um modo geral, vem sendo disputada pelo perigoso discurso do empreendedorismo. Mas a economia solidária vem se apresentando como um importante contraponto a esse modelo de relação de trabalho, especialmente por respeitar as relações coletivas que são a base do audiovisual!

O atual cenário do audiovisual no Brasil

O setor audiovisual brasileiro movimenta mais de R$ 25 bilhões por ano e tem um crescimento anual aproximado de 8,8% de acordo com a Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Isso inclui desde pequenas produções até longas-metragens, que podem envolver o trabalho de dezenas de profissionais para a sua realização, muitas vezes em jornadas diárias de mais de 8 horas. 

Não é difícil de imaginar que muitos desses profissionais, mesmo com a forte atuação dos sindicatos, tenham seu trabalho explorado e muitas vezes mal remunerado. Para além da remuneração, outra questão recente vem contribuindo para a escalada da precarização da força de trabalho dos profissionais de audiovisual, sempre sob a justificativa de “minimizar custos”: a famosa “pejotização”, onde os profissionais são “convidados” a abrir suas MEIs (Micro Empreendedor Individual) e prestar serviço como pessoa jurídica. 

Ou seja, para receber seus cachês, o profissional que passa a ser contratado por empreitada, mesmo em projetos de longa duração, precisa emitir nota fiscal. Dessa forma, a produtora contratante passa a pagar menos encargos trabalhistas e, de quebra, se sente livre para impor a esses profissionais jornadas de trabalho nos sets de filmagem que podem chegar a 12 horas por dia, seis dias na semana – ou mesmo mais que isso. A produtora contratante ganha, pois economiza no orçamento e seus profissionais trabalham mais, porém o profissional perde duplamente, pois além da exploração diária no trabalho para o qual foi contratado, fica alheio a muitos dos direitos que teria se fosse contratado via CLT. Para piorar, essa prática o condena a sempre depender de um próximo projeto para voltar a ter uma remuneração, o que a médio e longo prazo o força a ter que aceitar condições de trabalho e cachês ainda mais precarizados.

É uma realidade totalmente oposta ao que se vende no mercado a respeito, contrastante com a ideia totalmente romantizada da “pejotização”. Nela, o profissional se tornaria um empreendedor, e nessa condição ele teria maiores chances de “vender” seu serviço no mercado, atendendo a diversas produtoras diferentes, e assim se reinventando e crescendo com sua própria empresa. Mas essa ideia ignora o fato de que um bom profissional nem sempre será um bom empreendedor, e que isso não muda com a simples obtenção de um CNPJ.

Entender essa situação é relevante, pois para que possamos compreender a importância dos empreendimentos autogestionários é necessário entender como muitos profissionais decidiram subverter a lógica capitalista, deixando de prestar serviços de forma explorada para grandes produtoras e passando a investir em seus empreendimentos, trabalhando como coletivos, pequenas sociedades e cooperativas. Vale lembrar, como dito anteriormente, que agora grande parte desses profissionais já são pessoas jurídicas, logo, porque não unir o útil ao agradável?

As alternativas para além do mercado: exemplos que vêm da Baixada

Logo após compreender essa realidade, a grande dúvida deve ser: ao optar por ser um pequeno empreendimento de audiovisual, dificilmente será possível produzir um filme, atender agências de publicidade ou até mesmo produzir conteúdo diversificado nas redes sociais, certo? Na verdade, não é bem assim!

É claro que um pequeno empreendimento, sendo ele autogestionário ou não, não terá acesso a fundos de financiamento como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), por exemplo. Mas é possível produzir começando de baixo: primeiro se estruturando, depois se planejando e se desenvolvendo – o crescimento é consequência. Dessa forma, sim, um pequeno empreendimento audiovisual, sendo ele autogestionário ou não, pode produzir um longa-metragem, uma série para plataformas de streaming, conteúdos diversificados para as redes sociais, filmes publicitários e até mesmo programas de TV.

Na Baixada Santista, temos exemplos disso. Um deles é o coletivo audiovisual autogestionário Noise Coletivo, da cidade de São Vicente. Fabiano Keller, integrante do grupo, falou um pouco sobre o empreendimento:

Durante um curso de cinema, juntamos um pessoal e formamos o coletivo, com ideia de realizarmos produções autorais, onde as funções seriam exercidas em sistema de rodízio, ou seja, em cada projeto os membros atuariam em funções diferentes, para exercitar o conhecimento e pegarmos experiência em diversas áreas. Hoje, cerca de 9 anos depois, algumas pessoas se afastaram, outras chegaram agregando, e continuamos com esse ideal de coletividade em todos os projetos em que nos envolvemos”, afirma.

Outra experiência de empreendimento autogestionário, também da cidade de São Vicente, é a Tumulto Rec, que teve seu início após o videomaker Andrey Haag, que trabalhava em uma produtora audiovisual de casamentos, ser convidado para produzir um fashion film e um videoclipe.

Depois desse videoclipe eu comecei a receber várias mensagens, como por exemplo ‘Nem parece que foi o primeiro!’, o que achei muito bom… muitas pessoas querendo que eu trabalhasse com elas… e (ali) eu acho que eu consegui entender com que eu quero trabalhar, pra onde eu quero ir”, diz Andrey.

Apesar de ter se encontrado, Andrey continuou trabalhando na produtora audiovisual de casamentos, realizando suas produções em paralelo, mas como a forma de contratação era por trabalho realizado e rendimento, ao focar nos videoclipes, o rendimento de Andrey despencou na produtora de casamentos e no fim veio a notícia. “Aí um belo dia minha chefe me chamou e falou assim: ‘Você já foi um funcionário que agregou ideia nova, você pesquisou coisa nova, só que é isso, agora a sua produção está caindo, você não tá mais conseguindo mais dar conta’, e no meio disso ela me soltou: ‘Sabe por que você não vai crescer na vida? Porque você não gosta de coisa certa, você gosta de tumulto’”.  

Foi nesse momento que Andrey percebeu que era isso que precisava, desse “tumulto”, de ter algo com a sua cara e se dedicou integralmente ao seu empreendimento que veio a se chamar Tumulto Rec, hoje em parceria de Fê Góis, onde atuam de forma autogestionária e atuando em projetos de impacto social com grande relevância na Baixada Santista.

O trabalho desses coletivos ainda é importante por mostrar que empreendimentos audiovisuais autogestionários não precisam necessariamente produzir somente conteúdo autoral. A Noise Coletivo, por exemplo, define seu objetivo profissional da seguinte forma: ”Atuar em todas as áreas do audiovisual, desde projetos autorais que ainda desenvolvemos, quanto videoclipes, institucionais, e conteúdo para redes sociais. Temos uma preferência por projetos que tenham algum apelo social, pois acreditamos na força do audiovisual como ferramenta de conscientização e transformação. O coletivo hoje é formado por 4 integrantes, onde todos têm total liberdade de expressão e a mesma força de decisão. Quando chegam novos projetos, nos reunimos para avaliar e criar em conjunto”.

A experiência do Coletivo Catarse em Porto Alegre

Nos distanciando da Baixada Santista, conhecemos o Coletivo Catarse, uma cooperativa de comunicação localizada em Porto Alegre, que trabalha com projetos audiovisuais e podcasts. O empreendimento, segundo suas próprias palavras, ”desenvolve seus trabalhos a partir de uma perspectiva de comunicação integrada, transdisciplinar e com características de produção e compartilhamento de conhecimento, fomento de redes e formação com caráter articulador e mobilizador”.

O Coletivo Catarse se destaca por ser um exemplo de iniciativa oficialmente formalizada como cooperativa. Seu caso foi inspiração para a mudança na Política Nacional do Cooperativismo, que em 2012, legalmente liberou a formação de cooperativas de trabalho com apenas sete associados, pela Lei N°12.690/2012.  

Com 11 cooperados e um currículo com mais de 500 curtas, médias, longas metragens, videoclipes, reportagens, cobertura de eventos e outras produções, o Coletivo se mostra como uma alternativa dentro do mercado audiovisual que conseguiu ter sustentação financeira e produzir trabalhos autorais, seguindo um modelo autogestionário.

A autogestão é uma alternativa

A autogestão dentro de coletivos audiovisuais é recorrente, tendo em vista que há um circuito cinematográfico independente resistindo há décadas. Mas o engajamento dentro da Economia Solidária, de modo a reconhecer e adotar seus princípios é menos comum dentro da área. É um cenário que deve mudar, pois a Ecosol é uma solução sob medida para o profissional de audiovisual que quer valorizar seu trabalho, e construir projetos coletivamente.

Essa é uma importante reflexão, pois, como já dito, mesmo diante de uma produção coletiva, ainda há exploração nas relações de trabalho no mercado tradicional, realidade que se aprofunda na atual conjuntura e sob um governo neoliberal e autoritário. Mas o cooperativismo, que propõe uma relação equânime baseada na autogestão e na humanização nos seus ambientes, nos permite eliminar as cadeias tóxicas dessa corrente. 

Contar com cada vez mais profissionais e empreendimentos audiovisuais dentro das redes de Economia Solidária Brasil afora é a melhor maneira que temos de tirar o trabalhador da invisibilidade, proporcionando participação coletiva na tomada de decisões e criação – uma premissa básica para conteúdos inovadores  e críticos. Além disso, para criar outra economia será preciso criar também um setor de audiovisual autogestionário. Essa transição é, portanto, necessária!

* Eduardo Ferreira: Diretor Audiovisual da Orvalho Filmes. Produziu e dirigiu inúmeros curtas-metragens selecionados em festivais nacionais e internacionais, dentre eles os premiados Pique-Esconde e Anseios que permeiam meus tempos de paz; além de dirigir diversos comerciais e filmes institucionais;

** Vitória Felipe: Formada em Licenciatura em História pela Universidade Católica de Santos (Unisantos), onde pesquisou sobre Patrimônio Negro. Cursou Cinema nas Oficinas Querô, onde iniciou seu contato com audiovisual e dirigiu o curta-metragem “ANA”. Atualmente é cooperada da Livres Coop.

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Stein Haus: a cerveja orgânica e agroecológica da Coopernatural

Quando Ricardo Fritsch e outros dez agricultores começaram a vender seus alimentos em uma tenda à beira da BR-116, há 20 anos, eles provavelmente não imaginavam que estavam diante do início daquela que se tornaria uma das marcas mais conhecidas de orgânicos no país: a Coopernatural. E no meio disso tudo nasceu outra experiência única, a cerveja Stein Haus. Conversamos com Ricardo para entender melhor a história da Coopernatural e como a Stein Haus surgiu, tornando-se o que é hoje 

Ao estudarmos Economia Solidária, aprende-se que ela possui – pelo menos – seis princípios básicos: autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo e consumo solidário. Unidos, elas criam as condições para que a Ecosol cumpra seu objetivo, que é organizar a produção, o consumo e a distribuição de riqueza focando na valorização do ser humano, e não do capital.

Mas existe um outro fator importante nesse processo, no entanto, igualmente essencial para qualquer Empreendimento Econômico Solidário que queira ter sucesso e longevidade: a organização. Sem ela, o empreendimento pode se perder em si mesmo e não conseguirá autossustentar nem a si, nem sua própria rede.

Quando há essa organização, porém, o EES consegue sobreviver às dificuldades iniciais, cresce e pode até se tornar, anos depois, em uma referência nem seu segmento – como é o caso da Coopernatural, localizada no pequeno município de Picada Café/RS. Ela nasceu a partir da iniciativa de 11 agricultores da região, entre eles Ricardo Fritsch, com quem a Alternativas Solidárias conversou.

“A Coopernatural surge em 2001, ainda como associação, por conta de duas demandas que existiam entre nós: ter uma produção agroecológica limpa e saudável, e comercializar o excedente das produções em um espaço, à beira da BR-116, todos os finais de semana e feriados. Na época, tinha bastante produtos in natura, frutas, legumes e folhosos. Éramos, na época, em sua maioria, agricultores integrados, que ou produziam frango para engorda, ou produziam leite para uma empresa que fornecia ração para animais, ou ainda faziam reflorestamento de Acácia”, explica.

Era um trabalho difícil, pois de acordo com Ricardo as integradoras prejudicavam demais o trabalho dos agricultores, porque tanto o frango quanto o leite já eram uma commodity nessa época, o que acarretava em muita desvalorização do trabalho. Além disso, ainda segundo ele, os agrotóxicos já estavam muito presentes na agricultura e prejudicavam bastante a qualidade do alimento. 

Os primeiros anos

Entre 2001 e 2004, o grupo atuava na forma de associação, com o nome Associação Vida Natural. Isso pois apenas nesse ano foi possível reunir os 20 integrantes necessários para fundar uma cooperativa, que foi constituída em 21 de setembro com o nome Cooperativa Agropecuária de Produção e Comercialização Vida Natural, criada sob um modelo de gestão e produção definido após muitas visitas a outros agricultores agroecológicos, especialmente do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

“No início foi difícil pros agricultores, pois nem todos enxergavam todo o processo. Quando se trabalha com integradoras, só se enxerga parte dele. Alguns tinham dúvidas sobre se conseguiriam sustentar suas famílias e os seus negócios. Por isso foi importante visitar outros grupos, pois foi o que nos permitiu ter a confiança de que realmente era possível”, afirma.

A essa altura, segundo Ricardo, a tenda já não absorvia mais toda a produção dos agricultores, então foi necessário ter “criatividade” para escoar os produtos. “Nós tínhamos, por exemplo, uma lista de agricultores que promoviam eventos temáticos sobre agroecologia. Naquela época, falar de aproveitamento de folhas de cenoura ou beterraba não era tão comum assim, né? Aí eles convidavam os nossos agricultores para apresentar seus produtos”, diz. Além disso, a Coopernatural começava a se fazer presente em feiras agroecológicas, onde exibia não apenas seus produtos in natura como alguns agroindustrializados, que já eram produzidos desde 2003.

“A ideia de agroindustrializar foi uma forma de aproveitar melhor os produtos. Porque se nós levássemos a uva para a tenda e não vendesse em dois dias, por exemplo, no terceiro ela virava geleia, e assim a gente não perdia nada. Comprávamos os vidros e tampas coletivamente e assim passamos a ter outros produtos à disposição, fomos diversificando”, lembra.

Foi como Coopernatural que o grupo conseguiu seu primeiro cliente fora do estado, uma empresa de orgânicos de Campinas/SP, e também participou de sua primeira feira fora do estado, um evento de Economia Solidária em São Paulo/SP, no Ibirapuera, já em 2005.

“Foi um ótimo evento para nós, pois havia muita representatividade quilombola, bastante de grupos de mulheres, artesanato, mas muito pouco de agroindústria. Além disso, nos destacamos pelos nossos preços, pois fomos para a feira com a mentalidade de praticar um valor justo nas mercadorias. Vendemos todos os itens que levamos”, lembra,.

Ricardo explica que essa mentalidade vinha da vivência acumulada em eventos como o Fórum Social Mundial e a feira de Santa Maria/RS, da Irmã Dulce, que era realizada em um espaço que não era cobrado. “Então ela sempre dizia: ‘pratiquem apenas um pequeno lucro para o combustível, mas deixem os produtos num valor justo para o pessoal conhecer’. Ela insistia muito nisso”, afirma. 

A parceria com o Sebrae

Havia algo, porém, que precisava ser melhorado: a apresentação dos produtos, que não era tão “profissional”, segundo Ricardo: os rótulos eram impressos na impressora, com data de validade, escrita à caneta. Era necessário aperfeiçoar. 

“Com o tempo, fomos encontrando os pontos onde era importante investir o nosso tempo e dinheiro para evoluir. Foi quando iniciamos uma parceria com o Sebrae, na forma de consultoria. Fizemos um planejamento estratégico, e tivemos a assessoria de um engenheiro de alimentos, um uruguaio chamado Álvaro Lopes. Ele nos ajudou muito a crescer em vários aspectos, desde a padronização até a própria produção. Isso aconteceu em um bom momento, pois em 2006 a nossa comercialização de agroindustrializados já tinha tomado uma dimensão tal que a tenda já tinha cumprido sua função”, explica. 

Foram várias as ações da consultoria, mas Ricardo destacou algumas. Uma das mais importantes foi a transformação das cozinhas onde as geleias eram feitas em mini agroindústrias. “Quando o consultor veio aqui, constatou que não tinha dinheiro para uma fábrica. Então essa foi a solução que ele encontrou. Nós concordamos, e assim foi feito. Somente em 2010 nossa fábrica de geleias ficou pronta”, diz. 

Outro ponto foi a contratação de empresas para padronizar os rótulos e construir um site. Medidas que ajudaram a melhorar a qualidade não apenas dos produtos, mas agregar valor aos mesmos.

A consultoria do Sebrae foi uma virada na história da Coopernatural. “Conforme fomos evoluindo, passamos a fazer parte de feiras inclusive no exterior, em países da Europa, da África, no Peru… em vários outros lugares. Fomos um pouco mais longe”, afirma Ricardo, rindo.

Questionamos a que ele atribui o crescimento e sucesso da cooperativa. A resposta foi simples, mas esclarecedora. 

“Nós sempre fomos organizados, e rápidos, acho que isso nos ajudou. A cada cinco, seis horas, respondíamos todos os e-mails. E isso muitas vezes significou credibilidade, eficiência e confiança junto aos clientes, parceiros. Certos órgãos percebiam isso e apostavam na gente. Conseguimos presença em muitas feiras e eventos sendo subsidiados, por exemplo. Te diria isso”, diz. 

A Stein Haus

E como a cerveja entrou no caminho da Coopernatural?

“Eu estudei na Alemanha em 1989 e 1990, e fiz um curso que aqui no Brasil se interpretaria como ‘Técnico em Agropecuária’, ou algo do tipo. E durante o curso, visitei umas cinco cervejarias. Mas era algo ainda muito distante para nós no Brasil, tanto é que naquela época o processo de produção da cerveja era diferente de hoje”, lembra.

“Mas o tempo passou, e em 2012 ou 2013, com a ascensão da cerveja artesanal no Brasil, resolvemos estudar a possibilidade. Nós já estávamos trabalhando com alguns grãos, e fomos verificar se havia alguém no Brasil que produzia cevada agroecológica. Encontramos um, mas ele produzia para o trato animal, não para comercializar. Precisamos conversar com ele, e em 2014 fizemos uma proposta para ele plantar cevada. Ele concordou”, afirma Ricardo. 

A cevada foi colhida apenas em 2015, mas ainda faltava uma etapa: a malteação. Somente depois de muita pesquisa, Ricardo encontrou alguém que fizesse o processo: um professor chamado Rodolfo Heitor Vargas Rebelo, que possuía uma malteria em Blumenau/SC. “Conhecemos ele em um curso, e depois de conversarmos ele se dispôs a maltear um pouco de cevada para nós. A partir daí, tudo andou: em maio a nossa cevada foi malteada, fizemos os testes e três meses depois nós já tínhamos o registro junto do Ministério da Agricultura para a produção de cerveja”, recorda.

Foi graças à organização que, novamente, um desafio para a cooperativa que poderia ser muito complexo acabou não sendo. “O MAPA fez a auditagem na nossa unidade em agosto, antes de iniciarmos a produção. Desde o início empoderamos o fiscal de informações, para evitarmos ao máximo qualquer contestação. E assim aconteceu”, afirma. 

Da mesma forma, ocorreu a certificação da cerveja como orgânica. “Deixamos as autoridades cientes de todas as etapas, com todas as documentações em dia e bem explicadas. Já tínhamos um bom relacionamento com a Rede Acolhida no estado, e também com o Núcleo Serra. Além disso, os produtores da cevada já eram certificados e bem conhecidos na região e no meio da agroecologia, isso facilitou. O último passo foi certificar a malteação, mas levamos um fiscal até Blumenau para fazer essa auditagem, analisar o processo e conhecer o espaço, para garantir que tudo estaria dentro dos parâmetros da produção orgânica. Ele foi aprovado e assinou um termo de compromisso e, até hoje, todo o processo dentro da malteria é gravado, exceto as etapas onde existe algum segredo industrial – mas mesmo essas partes foram auditadas”, explica. 

Então, em novembro de 2015, a Coopernatural lançou a cerveja Stein Haus Doppel Weizenbier, primeira orgânica e sustentável produzida no país. “Stein Haus”, em alemão, significa “Casa de Pedra”. É um nome que faz alusão ao local onde ela é produzida, um prédio construído com pedra basalto. “Construímos com esse material não por causa da cerveja, mas do vinho, que produzimos lá também, e para o vinho é conveniente a temperatura interna do local seja mantida”, afirma. Segundo Ricardo, algumas pedras na construção pesam mais de 100 quilos, e todas foram retiradas ali, do entorno das plantações. “Os construtores foram verdadeiros artesãos. Eles removeram as pedras da roça e as esculpiam manualmente até ficar razoavelmente retangular. Além disso, elas são apenas rejuntadas, não há massa entre elas, pois o próprio peso da pedra é o que sustenta a construção”, detalha.

Hoje, a carta de cervejas da Stein Haus tem 21 variedades. “É preciso de vários maltes especiais para isso. Com o tempo a malteria de Blumenau foi se desenvolvendo e hoje ela produz cerca de oito motos especiais. Assim fomos incrementando nossa carta de cervejas. Além disso, temos nosso grupo o Tiago Genehr, que já foi foi cervejeiro de uma pequena marca conceituada de cerveja. Ele saiu dela quando a empresa foi vendida e hoje está conosco, construindo receitas. Ele simpatiza muito com nossa causa”, conta.

Atualmente, a Stein Haus conta com a produção de grãos (cevada, trigo, centeio e aveia) em Santo Antônio do Palma/RS, e segue com a malteação em Blumenau, sempre no início de janeiro. As vendas ocorrem para todo o Brasil, mas segundo Ricardo cerca de 70% se concentra na região Sudeste e no Distrito Federal.

Os desafios da pandemia

Ricardo conta que os agricultores se preocuparam com a pandemia do coronavírus, no seu início, pois temiam que as vendas parassem. Por isso, procurou amigos agricultores que manteve, da época em que estudou na Alemanha, para saber como eles haviam passado pelos momentos de crise, meses antes. E se aliviou.

“Eles me disseram para não me preocupar, pois muitos alemães passaram a cozinhar de casa, e a demanda por alimentos havia aumentado por lá. Então acreditavam que aqui não seria diferente. Eu tive um cenário muito antecipado de como tudo foi, então peguei essa cartilha e coloquei debaixo do braço. Nos preparamos para ter alimento para mais pessoas, e não menos, e deu certo, pois crescemos mais de um dígito desde o início de tudo”, afirma.

O único produto afetado, diz ele, foi um que estava em estudo: o chope artesanal, que chegou a ser apresentado em algumas feiras regionais, mas foi inviabilizado pela pandemia.

A comunidade e a natureza

Picada Café fica na encosta da Serra Gaúcha, a 90 km de Porto Alegre. Possui cerca de 5500 habitantes, mas quando a cooperativa começou tinha cerca de 2400, segundo Ricardo. É muito conhecida pelas indústrias de couro e calçadista, tendo mais população durante a semana que nos finais de semana.

“Por causa disso, a Coopenatural acaba ainda não sendo conhecida por todos os habitantes aqui, mas realizamos nossas ações com a comunidade. Realizamos palestras, e campanhas nas escolas, como uma de reciclagem que foi promovida durante alguns anos. Também já fomos fornecedores de alimentos para a merenda escolar da rede municipal, e temos um espaço no Parque Municipal Jorge Kuhn onde comercializamos nossos produtos. Além disso, dentre a parte da população que nos conhece, contamos com grande apoio e adeptos, sem falar no apoio de todas as legislações do município”, detalha.

Os aprendizados foram muitos desde o início da Coopernatural. Segundo Ricardo, o futuro se mostra muito promissor para os 75 cooperados e agricultores parceiros. E o que fica, de tudo que já viveram, é a forma como todos passaram a se relacionar com a natureza:

“O agricultor agroecológico aprendeu a se comunicar com a natureza. Isso é muito importante, ele conseguir se comunicar e saber interagir com e a favor da própria natureza, e saber responder àquilo que ela tenta lhe dizer para conseguir produzir. Alguns têm esse conhecimento acumulado de outras gerações, outros adquirem com os ensinamentos dos próprios cursos que participamos. São essenciais para que façamos bem nosso trabalho”, finaliza.

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Red Cecosesola: Transformação social a partir da organização comunitária

Há 45 anos, surgia na Venezuela uma organização comunitária, com um propósito muito específico: oferecer à comunidade um serviço funerário digno e não especulativo. Mas a sociedade demandava muito mais que isso, e logo a Red Cecosesola se tornou uma rede, múltipla, reunindo dezenas de serviços e mais de mil colaboradores e colaboradoras. Em meio a um país politicamente efervescente e com as finanças oscilando da prosperidade à miséria, muitos venezuelanos encontram nessa rede sua tábua de salvação. Conheça mais sobre a história e trabalho desse movimento, através desse depoimento escrito coletivamente pelos seus próprios membros

A Central de Cooperativas de Lara (Cecosesola) é composta por uma rede de cerca de 50 organizações comunitárias dos setores populares dedicadas à produção de bens e serviços, sendo localizadas em sete entidades federativas da Venezuela. Há mais de 45 anos alimentamos um processo de transformação cultural que se baseia em ir descobrindo outras maneiras de nos relacionar. Trata-se de ir sobrepondo as relações patriarcais que, ao longo de milhares de anos, propiciaram a dominação de uns poucos seres humanos sobre os demais, incluindo tudo o que é vida em nosso planeta. Vemos tais maneiras de se relacionar como transformáveis, porque têm uma origem cultural.

É um processo que não se limita aos mais de 1200 trabalhadores e trabalhadoras associados, que colaboram diretamente na gestão da rede, mas que se irradia a qualquer um que se identifique com ele, e em especial se espraia até nossos familiares, amigos e amigas, assim como também impactam as dezenas de milhares de pessoas que se aproximam pela qualidade e a questão econômica de nossos serviços. 

Nossos inícios

Nosso início foi no ano de 1967 com o serviço funerário, respondendo a uma necessidade muito sentida nos setores populares. Assim como hoje em dia, existia uma grande especulação das funerárias privadas. 

A criação da Cecosesola foi um processo de cerca de dez meses onde, junto de dezenas de habitantes dos setores populares, participamos e demos vida às recém-criadas cooperativas da região. Com muito entusiasmo, nos reuníamos até altas horas da madrugada. Assim prevaleceram os critérios de trabalhar com recursos próprios, além de promover a inclusão, e sempre respeitando a diversidade política e religiosa.

Porém, pouco tempo após a Cecosesola ser legalizada como uma Central de Cooperativas, foi se esvaindo a paixão. Como ocorre em muitas ocasiões, a essência da cooperativa passou a ser definida por seus estatutos, uns estatutos convencionais que, ao invés de integrar, criam separações: o conselho de administração tinha plenos poderes para administrar a cooperativa até a próxima assembleia anual; não se permitia que o conselho de vigilância, participasse das decisões; havia um comitê para “transmitir” educação, ratificando a tradicional separação entre o que transmite seu saber e as outras pessoas que não têm nada ou pouco a agregar; a participação das trabalhadoras e trabalhadores das cooperativas afiliadas por meio de suas delegadas e delegados ficava relegada à tradicional assembleia anual. Assim, esse espaço de participação foi o que restou para a maior parte das pessoas que havíamos envolvido de forma entusiasmada na criação de nossa central cooperativa. . 

O que nos move

O impulso para a criação da Cecosesola foi uma necessidade muito sentida pelos setores populares: ter acesso a um serviço funerário digno e não especulativo. Nossa razão de ser se apoiava na prestação de serviços às pessoas associadas das cooperativas afiliadas.

Atualmente, nossa razão de ser se apoia em um processo educativo de transformação cultural com base na reflexão coletiva sobre o fazer diário. Nossas variadas atividades são os espaços que nos permitem desenvolver esse processo.

O impulso para ir aprofundando esse processo transformador que nos demandamos hoje em dia, iniciou-se no quinto ano de existência da Cecosesola. Começou com um questionamento ao rumo que nossa central cooperativa havia tomado, ao se burocratizar e se limitar a ser uma cooperativa tradicional de (e para) seus associados e associadas, sem maior compromisso social com seu entorno. Além disso, se questionava o conceito educativo de “transmitir” educação, contrário a um processo de compromisso social com base na reflexão sobre o fazer diário. Entre dar o peixe ou ensinar a pescar, decidimos passar a pescar juntos, incorporando a participação de todos e todas, compartilhando nossos conhecimentos e descobrimentos, resgatando assim a essência do nosso início. 

Mudança repentina de rumos: a experiência do Serviço Cooperativo de Transporte

Em 1974, fomos mais um a se integrar às mobilizações dos setores populares contra o aumento da passagem do transporte público. E, posteriormente, depois de cerca de 20 meses de numerosos protestos contra o dito aumento, assumimos a maior parte do serviço de transporte de ônibus da cidade de Barquisimeto, com o compromisso de manter a tarifa. 

Tratava-se de um serviço público a ser gerido com a participação plena das pessoas que trabalhavam com o transporte, assim como também com a comunidade usuária. Além disso, os ônibus constituíam uma ferramenta a serviço das lutas populares. Sendo assim, abruptamente, a Cecosesola deixou de ser fundamentalmente uma cooperativa de (e para) seus associados, começando um novo processo que nos levou ao que vamos nos tornando hoje em dia.

Enfrentados pelo poder

Coincidindo com a chegada dos primeiros ônibus, o país iniciou um processo inflacionário que tornou impossível manter o preço da passagem com a receita existente. Por isso, a partir dos setores populares e do movimento estudantil, efetuamos massivas manifestações em defesa do subsídio necessário. Nossa capacidade de mobilização era muito superior à dos partidos políticos, de maneira que a Cecosesola foi se convertendo em uma referência de poder temida, não só pelo governo vigente, mas também pela maioria dos partidos de diferentes ideologias.

A imprensa foi se aliando com o governo, chegando ao ponto em que o Ministro das Relações Interiores impôs instruções às mídias para que não publicassem nossas declarações, por serem supostamente de um movimento subversivo de extrema esquerda. Isso apesar de nunca termos tido filiação política. Em várias ocasiões fomos detidos pelas forças policiais.

Por quatro anos, mantivemos igual a tarifa da passagem, até nossas instalações de transporte foram apreendidas pelo governo em março de 1980. O conselho municipal assumiu a administração do serviço e imediatamente duplicou o seu valor, e só nos devolveriam os ônibus se nossa diretriz fosse substituída por outra disposta a se desfazer do Serviço Cooperativo de Transporte.

A assembleia da Cecosesola negou esta petição e só depois de mais quatro meses de resistência, conseguimos resgatar a frota de ônibus que havia sido 70% destruída pela administração governamental. As perdas econômicas e as dívidas contraídas ao fechar o serviço em 1985 terminaram ficando na ordem dos US$ 7 milhões. Tratava-se de uma perda de 30 vezes o capital investido, em uma conjuntura econômica impossível de superar operando com critérios empresariais. Assim, quebrados economicamente, nossa possibilidade de sobreviver residia no processo educativo de autogestão iniciado no próprio Serviço Cooperativo de Transporte.

Havíamos vivido nossa primeira experiência de ir enfraquecendo as hierarquias, fomentando um processo participativo das pessoas que autogeriam diretamente os serviços, assim como das comunidades, um processo que já nessa época havia propiciado um incipiente, mas significativo sentido de identidade. Ao nos apoiarmos nessa vivência, e sem capital financeiro, no ano de 1983 iniciamos as Feiras de Consumo Familiar (nossos atuais mercados cooperativos). Com os recursos gerados por ela, saldamos todas as dívidas contraídas, e, ainda por cima, as feiras tornaram-se o motor econômico principal das atividades atuais da Rede Cecosesola. 

Nota-se que essas múltiplas atividades se desenrolaram majoritariamente utilizando recursos próprios. Como exemplo temos a construção de nosso Centro Integral Cooperativo de Saúde, avaliado em cerca de US$ 3 milhões – no qual investimos uma porcentagem importante dos excedentes das feiras, assim como o produzido por diferentes iniciativas cooperativas.

Novos caminhos e relações com o poder

Depois da experiência do Serviço Cooperativo de Transporte, a Rede tomaria um rumo diferente. Já não seria mais a mesma. Ainda que mantidos e reforçados nossos fundamentos iniciais, a autogestão foi continuada e aprofundada num processo de transformação pessoal e organizacional que nos levou por outros caminhos.

Nesta caminhada aprendemos que nosso processo aberto à diversidade entra em contradição com o mundo da luta pelo ou contra o poder. As relações de competição que se geram nesta luta poderiam ser uma das principais causas que nos levaram à crise humanitária atual e constituem justamente as relações que tentamos transformar. 

Fomos aprendendo a evitar que nossos encontros e reuniões se constituíssem em instâncias burocráticas obrigatórias para tomar decisões, de tal maneira que qualquer um possa desenvolver iniciativas sem passar por esse filtro. Ainda que as reuniões sirvam para tomar decisões, este não é seu papel fundamental. O fundamental se encontra na conversação sobre nossas maneiras de nos relacionar, assim como em ir consensuando critérios coletivos baseados em nossos fundamentos éticos de responsabilidade, apoio mútuo e equidade.

Assim promovemos a ideia de que nos tornássemos responsáveis e atuássemos sem necessidade de esperar uma reunião, amparados sobre os critérios e fundamentos que fomos construindo. Mas é claro que, no caso de uma pessoa atuar por critérios pessoais, descolados dos critérios e fundamentos coletivos, se colocaria fora de nossos consensos assumindo individualmente as consequências dessa ação. 

Nem um nem outro

Assim, fomos deixando de ser uma organização vertical, mas sem tampouco querer nos converter em uma organização horizontal onde tudo, ou quase tudo, tenha que passar por uma reunião, organizações estas que tendem a ser ainda mais burocráticas que as verticais. Nem um, nem outro. Tentamos ir mais além da dualidade de ser horizontal ou vertical, imposta pelos nossos conceitos culturais. Trata-se de um projeto coletivo (mas não coletivista), onde estamos muito pendentes dos mecanismos culturais de nivelação que tendem a reduzir cada qual ao menor denominador comum, castrando nossa evolução pessoal. O fundamental é essa evolução individual, que transcende o individualismo. 

Desta maneira vamos aprendendo que as relações niveladoras são como um tumor que faz metástase rapidamente se não se corta a tempo. Sugam nossas energias assim como a kriptonita faz com o Super-Homem.

O simples e o complexo

Aprendemos além de tudo que sair das relações hierárquicas não se decreta, tampouco se pode decretar a confiança, e que a equidade só se constrói enquanto reconhecemos e respeitamos o que nos diferencia pois não somos iguais. Muitos elementos que tendemos a considerar naturais e insubstituíveis para realização de qualquer atividade, não são só desnecessários, mas também podem se converter em impedimentos que em vez de integrar, dividem e separam. Como exemplo, a negativa a compartilhar as responsabilidades, a inviolabilidade das leis de mercado, a competição como regra de ouro da produtividade, a diferenciação salarial como elemento fundamental de motivação, assim como a ênfase na especialização. 

Assim compreendemos que fomos formados em uma sociedade da separação. De tal maneira que vivemos imersos numa cultura que tende a dar ênfase ao que nos separa, mas não na imensa riqueza que nos une, pois todos e todas buscamos resolver as mesmas necessidades. Contrariamente, nosso processo vai até a integração, construindo relações harmônicas de confiança e respeito baseadas na responsabilidade, equidade e no apoio mútuo. Enfim, em relações empáticas e compassivas. 

Derrubando fronteiras

Desde a época dos ônibus propiciamos a participação das comunidades na gestão dos serviços da rede. Trata-se de um esforço permanente para transcender essa fronteira entre o que serve e o que é servido. Um esforço que implica ser consequentes com nossos fundamentos éticos sendo fiel a palavra empenhada. 

O resultado foi uma crescente identificação da população em geral com o que vamos nos tornando. 

Essa relação comunitária empática continuou a se aprofundar com o tempo e ante às situações dramáticas que vão acontecendo com o país, tentamos responder solidariamente. Por exemplo, nos anos de extrema escassez de produtos básicos, entre os anos de 2014 e 2018, nossas feiras eram a principal alternativa que tinham grande parte das pessoas para conseguir alguns desses produtos.

Enquanto muitos negócios se desfaziam rapidamente das mercadorias que escasseavam vendendo-as por maior volume, em nosso caso distribuíamos com critérios de equidade, buscando que o pouco que se tinha alcançasse o máximo número de pessoas. Podia ser só um quilo de macarrão, arroz ou farinha de mandioca por pessoa. De igual maneira, as trabalhadoras e trabalhadores que geriam diretamente os serviços da rede podiam levar a mesma quantidade. 

Nessa época, mais de cem mil pessoas vinham semanalmente fazer suas compras, nos mais de 300 entrepostos existentes. O trabalho começava às 6 da manhã e ia até altas horas da noite (em uma ocasião até as 23h). Só fechávamos os portões quando a última pessoa fazia suas compras, para levar a seu lar algo de comer.

Na ocasião do apagão elétrico de cinco dias em março de 2018, com a maioria da população sem condições para fazer suas compras e sem luz nos pontos de venda, os negócios que comercializavam comida na cidade fecharam suas portas temendo saques. Contrariamente, nossas feiras se mantiveram abertas fornecendo mais de 100 toneladas de verduras, o que para muitos foi sua única possibilidade de levar comida às suas casas.

Essa longa história de empatia comunitária concorda com os resultados de uma pesquisa, realizada na cidade de Barquisimeto pelo Centro Gumilla, e financiada pela Unviersidade Católica Andrés Bello (2018), dentro da qual foi ressaltado que 90% dos entrevistados respondeu que, se alguém tentasse prejudicar a Cecosesola, a apoiaria e faria qualquer coisa para defendê-la. 

Isto se manifesta diariamente na atitude de cuidado pelos serviços da rede e por uma confiança em participar, seja pessoalmente ou por meio das redes, dando opiniões ou sugestões. 

Resiliência: uma história de tenacidade e flexibilidade

A capacidade de resiliência, demonstrada ante a derrocada econômica derivada da experiência do Serviço Cooperativo de Transporte, foi se aprofundando com o tempo, e se manifesta hoje diante da dramática situação que se vive no país, agora ampliada com a chegada da pandemia. 

Ao longo dos anos, enfrentamos os “vai e vem” do país, entre eles, saques massivos, três golpes de Estado, violentas manifestações ao redor de nossas instalações e também, diante das intrigas políticas da época, desenrolando estratégias de sobrevivência quando o governo venezuelano tinha como política a expropriação de múltiplas empresas por decreto. 

A essa altura, pelo que se dizia nos corredores, já não éramos o movimento subversivo de extrema esquerda dos anos 1970, mas, por capricho da graça, tínhamos nos convertido em capitalistas raquíticos. 

E foi assim durante os últimos tempos, uma vez passada a bonança petroleira e agora com o bloqueio e a pandemia, o que se evidencia de novo com força é a resiliência que se encontra implícita em nosso processo transformador. 

Foi um período no qual tivemos que nos adaptar praticamente de imediato às mudanças permanentes tanto das leis como das regras do jogo informal, sabendo intuir quando uma predomina sobre a outra e, ao mesmo tempo, ter presente nossa posição ética ante o avanço crescente da corrupção.

Estamos enfrentando uma realidade permanentemente mutável, que nos exige a flexibilidade de adaptação ante as novas situações que vão se apresentando, muitas vezes sem aviso prévio. Vivenciamos uma inflação que obrigou a cortarmos oito zeros da moeda e já se anunciam mais seis, totalizando quatorze. Assim, experimentamos a repentina e enorme baixa do poder aquisitivo da população. 

Depois de passar primeiro por uma dramática escassez de alimentos, agora nos encontramos em uma situação de abundância com uma sobreoferta por parte de novos negócios improvisados que não cumprem as medidas sanitárias, que evadem até o imposto de valor agregado e pagam salários precários. Padecemos uma escassez endêmica de eletricidade que esporadicamente paralisa diferentes regiões e, em uma ocasião inesquecível, o país inteiro por cerca de cinco dias. Sofremos frequentes quedas das conexões dos pontos de venda que terminam paralisando suas atividades por dias inteiros. 

Passamos a ser obrigados a criar nossas próprias rotas de transporte para suprir as grandes falhas desse serviço público. Ainda assim, mantivemos sempre abertos nossos serviços quando os demais fechavam ante ameaças de saque e isso muitas vezes em meio a violentos enfrentamentos de manifestantes com as forças de segurança. Acabamos por superar uma reiterada escassez de combustível que por momentos paralisa os processos produtivos assim como a distribuição de mercadorias. E em meio a todas essas circunstâncias, confrontamos uma pandemia com quarentenas e medidas sanitárias que incluem fechamentos temporários e toques de recolher.

É evidente que imersos a esses problemas e muitos outros se reduziu a periodicidade de nossos encontros educativos e se afeta grandemente nossas receitas e custos, assim como o que recebem periodicamente os associados e associadas. 

Frente a essas situações, nosso processo educativo continuou se fortalecendo, a grande maioria dos produtores e produtoras da rede segue produzindo e nossos serviços continuam sendo para a população, por longo período, a alternativa mais econômica. De maneira que, ante as penúrias que confrontam a maioria dos venezuelanos e venezuelanas, nosso aporte solidário tem mais importância. 

* Esse texto foi elaborado por um coletivo de autoras e autores da Red Cecosesola, cujos escritos são produtos do seu conviver e compartilhar

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Coopcent ABC: um por todos e todos por um

Em uma sociedade capitalista, somos educados e instruídos a acreditar que iniciativas solidárias são uma utopia, não possuindo viabilidade – o que sabemos não ser uma verdade, pois há inúmeros exemplos de Empreendimentos Econômicos Solidários de sucesso Brasil afora. Mas às vezes, para ultrapassar certas barreiras do capital, é necessário que a união em torno da economia solidária seja ainda mais forte. É nesse contexto que surge, no Grande ABC, em São Paulo, a Coopcent ABC, que reúne seis cooperativas com 180 catadores e catadoras. Esses trabalhadores e trabalhadoras, com a força de seu trabalho em conjunto, decidiram fazer a resistência produtiva a fim de disputar espaço com as grandes empresas num mercado hostil. Adolfo Homma conta um pouco mais dessa história.

Por Adolfo Homma *

Se não fosse a Economia Solidária, seus princípios, fundamentos e procedimentos práticos, os grupos que compõem a Rede Coopcent ABC de cooperativas de catadores e catadoras de materiais recicláveis, formada por cinco cooperativas formalizadas e uma em via de formação do Grande ABC, não teriam conseguido sobreviver da forma como conseguiram. Dizemos que a união foi fundamental para que todos conseguissem enfrentar os desafios encontrados no caminho e, assim, pudessem se organizar, fortalecer e se estruturar,  transformando-se numa das únicas redes de cooperativas de catadores e catadoras a comercializar 100% de seus materiais recicláveis de forma coletiva.

A Coopcent ABC foi formada em janeiro de 2008, como cooperativa de segundo grau – ou seja, formada por no mínimo três cooperativas singulares – para viabilizar a comercialização em rede, criando condições para que os grupos pudessem juntar seus materiais recicláveis e dessa forma conseguissem comercializar diretamente com a indústria da reciclagem, que somente adquire em grande escala. Com isso, conseguiam melhores preços, pois evitavam os intermediários que pagavam preços muito baixos às cooperativas isoladas.

As cinco cooperativas formalizadas e uma em via de formalização, totalizam 180 cooperados e cooperadas, estão localizadas nas cidades de São Bernardo do Campo, Diadema, Ribeirão Pires e Mauá. Na cidade de São Bernardo do Campo estão as cooperativas Cooperluz e a Reluz; em Diadema, a Cooperlimpa e o grupo informal Nova Conquista; em Ribeirão Pires a Cooperpires; e em Mauá a Coopercata. Sua sede localiza-se na cidade de Diadema, desde sua fundação.

Uma união baseada na autogestão

Todos os seis grupos que compõem a base da Coopcent ABC atuam de forma autogestionária. A gestão de cada cooperativa é realizada coletivamente pelos cooperados e cooperadas de forma democrática e transparente. Eles aprovam o regimento interno que organiza o funcionamento da cooperativa por meio de assembleia geral, onde todos participam em igualdade de condição, com o voto de um valendo o mesmo que o de outro. O regimento interno geralmente aborda os princípios e objetivos da cooperativa, os órgãos de administração e suas atribuições, os direitos e deveres dos associados e as regras de funcionamento, de gestão e partilha dos resultados. É importante a compreensão de que autogestão não é cada um fazer o que quiser, mas todos fazerem a partir do que foi aprovado por todos, de forma organizada e transparente.

Todos os associados trabalham coletivamente, seja coletando, triando, enfardando ou comercializando os materiais recicláveis. No fim do mês, em cada cooperativa os associados se reúnem em assembleia para saber quanto foi produzido, comercializado e qual foi o montante arrecadado com a comercialização, que é a receita mensal da cooperativa. Da mesma forma, o valor de todas as despesas realizadas com alimentação, material de limpeza, manutenção do espaço e dos equipamentos e outras que tenham ocorrido. Retira-se então da receita as despesas, e decide-se quanto irão destinar aos fundos de descanso anual, abono natalino, de reserva ou outro que tenham aprovado. O valor resultante desse cálculo é a sobra, que será destinada à retirada dos cooperados e cooperadas, que é feita de acordo com as horas trabalhadas por cada um e cada uma. 

Assim, fica evidente que quem trabalha mais ganha mais. A diferença sempre está unicamente na diferença de horas trabalhadas. Este aspecto tem sido de fundamental importância para todos entenderem que eles são iguais em direitos e deveres, independente de gênero, etnia, idade ou outras questões.

As cooperativas dialogam entre si constantemente, e mensalmente é realizada reunião com representantes dos grupos, sendo geralmente, dois por grupo. Antes da pandemia, estas reuniões eram realizadas na sede do Consórcio Intermunicipal Grande ABC, local em que os sete prefeitos da região do ABC se reúnem para solucionar os problemas comuns. Nestas reuniões, debatem-se questões relacionadas aos grupos, à Coopcent ABC, e outras de interesse e necessidade dos catadores e catadoras. 

Também é momento de prestação de contas da Coopcent ABC, especialmente do Programa de Logística Reversa Dê a Mão para o Futuro, realizado por meio de parceria entre a Coopcent ABC e a Abihpec (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos), Abipla (Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Higiene, Limpeza e Saneantes) e Abimap (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados). Durante esse período de pandemia essas reuniões foram interrompidas.

Um breve relato histórico

Desde a sua criação em 2008 até 2015, a Coopcent ABC já recebeu apoio do Governo Federal e de diversas organizações e instituições, como a Petrobrás, Fundação Banco do Brasil, BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e do Projeto Brasil – Canadá. Foram apoios importantes, que contribuíram de forma decisiva para que esses grupos conseguissem os galpões, maquinários, equipamentos e quatro caminhões. Além de várias atividades formativas que contribuíram para a formação de lideranças e para a compreensão do ideal cooperativista, vinculado à economia solidária.

Em 2016, com o fim dos recursos dos editais, a Coopcent ABC teve que repensar suas práticas e organização. As despesas relacionadas à manutenção de duas funcionárias, do vigia noturno, da motorista e dos ajudantes, da manutenção da sede eram custeadas praticamente pelos recursos desses editais. Quando as dívidas começaram a se acumular, veio a possibilidade da Coopcent ABC, participar do Programa de Logística Reversa Dê a Mão para o Futuro. A Coopcent ABC apresentou um projeto e foi aprovado.

Por este programa, a Coopcent ABC receberia R$ 106,00 por cada tonelada comercializada com os compradores de seus materiais recicláveis, por meio de nota fiscal devidamente contabilizada. O compromisso da Coopcent ABC era fornecer à Abihpec notas fiscais que no somatório atingissem o montante de 500 toneladas/mês, durante 36 meses. Esse recurso deveria ser empregado na compra de máquinas e equipamentos como esteira, prensa, empilhadeiras, aparelhos eletrônicos e outros para viabilizar o funcionamento das cooperativas, e para a manutenção e reforma dos galpões e das máquinas e equipamentos. E, para ser utilizado como capital de giro, foi repassado o valor de R$ 260 mil, visando antecipar os pagamentos para as cooperativas dos compradores dos materiais recicláveis. A cooperativa vendia, lançava a nota fiscal, e a Coopcent ABC repassava o valor imediatamente aos grupos. O comprador, posteriormente, pagava para a Coopcent ABC, num procedimento que demorava cerca de 15 a 20 dias, e em algumas vezes até mais.

Mas para que este projeto pudesse avançar era necessário reestruturar a Coopcent ABC. Esses recursos da logística reversa não poderiam ser utilizados para custear a gestão administrativa, contábil e orgânica da cooperativa de segundo grau. Neste sentido, teve que ser aprovado por todos os grupos que a comercialização seria realizada 100% em rede, e do montante global arrecadado 5% seria destinado para a manutenção da estrutura da Coopcent ABC. A exigência para repasse à Coopcent ABC por parte dos grupos filiados de 5% para a sua manutenção já existia antes desse momento, mas os grupos repassavam apenas sobre alguns produtos. Agora era uma questão existencial, que todos os grupos com muita maturidade aprovaram e cumpriram. 

Até então, as pessoas que trabalhavam na Coopcent ABC, eram celetistas, por exigência dos editais. A partir dali, passaram a ser cooperados e cooperadas. Hoje a equipe possui duas cooperadas que atuam na comercialização coletiva, contabilidade, controle fiscal e bancário, além de um motorista e dois ajudantes.

Com o uso do capital de giro, alguns grupos que antes efetuavam as retiradas para seus associados à medida em que os compradores efetuavam os pagamentos, passaram a pagar no início do mês. Antes, alguns cooperados recebiam no dia 3, outros 5, 10 e assim por diante. Não dava para programar suas vidas financeiras. Portanto, o uso do capital de giro foi muito importante para conscientizar os cooperados sobre a necessidade do seu retorno. Hoje, em média, sabemos que não pode ultrapassar 15 dias, e exceto em raras ocasiões, não chega a 30 dias.

Necessidades e possibilidades – o caso Cooperpires

O critério utilizado para aplicar os recursos do Programa de Logística Reversa em compra e manutenção de máquinas e equipamentos e reforma dos galpões foi o da necessidade e da possibilidade. Na realidade alguns grupos necessitam de mais recursos do que outros. E quase que em sentido contrário, os grupos que mais contribuíam com as toneladas disponibilizadas por meio das notas fiscais eram aqueles que menos necessitavam e os que menos contribuíam eram os que mais necessitavam. Como solucionar esta questão? 

Foi realizado um planejamento estratégico inicial por parte da Coopcent ABC, onde foram levantadas as necessidades de cada grupo. Nesse momento se constatou a afirmação acima, de que quem menos contribuía com as toneladas era quem mais precisava. 

Havia grupos, que também estavam no Programa Dê a Mão para o Futuro em outros territórios, que pensavam diferente, e usavam os recursos de acordo com as toneladas ofertadas. Mas dessa forma, os grandes continuavam a ser grandes, e os pequenos a ser pequenos. Nosso argumento principal era de que deveríamos atuar de acordo com os princípios e objetivos da economia solidária, e então considerar as prioridades de acordo com a necessidade. Esse argumento venceu, e os grupos passaram a decidir sobre a aquisição de máquinas e equipamentos, reforma e manutenção do galpão e das máquinas e equipamentos a partir das prioridades.

A título de exemplo vamos citar o caso da Cooperpires, que é a cooperativa de catadores de Ribeirão Pires. O galpão da cooperativa está localizado praticamente no meio do mato. Um dos maiores problemas eram as invasões e furtos que vinham acontecendo, praticamente diariamente. Os cooperados cogitavam encerrar as atividades, pois não valia a pena continuar trabalhando e os ladrões levando tudo que eles produziam. Não tinha muro e era muito fácil entrar e saquear os bens existentes.

Diante dessa situação, foi aprovado que deveria ser construído um muro alto, colocado concertina sobre o muro para evitar invasões, circuito interno de câmera monitorado remotamente e cobertura de um telhado no espaço de chegada dos materiais coletados, que ficavam descobertos. Essa medida foi muito importante pois, em dias de chuva, grande parte dos materiais eram danificados e iam para rejeito, prejudicando todo o esforço despendido com a coleta seletiva.

O montante total destinado à realização de obras para todos os grupos da Coopcent ABC relacionado ao Programa Dê a Mão para o Futuro era de cerca de R$ 350 mil. O orçamento para realizar todos esses serviços na Cooperpires atingia cerca de R$ 100 mil. Ou seja, quase um terço do total, sendo que das 500 toneladas mensais produzidas a Cooperpires contribuía com cerca de 15, ou apenas 3% do total. Mesmo assim, não houve nenhum questionamento em contrário. Todos os grupos concordaram que esse investimento era necessário e o aprovaram, iniciando as obras nesta cooperativa.

Esse conceito foi aplicado também em relação aos demais grupos. Na Cooperlimpa, foi colocado cobertura no local da chegada dos materiais, que antes ficava descoberto e se chovesse ocorria a perda de quase 70% dos materiais, com o aproveitamento total apenas do plástico. Foi realizada reforma da esteira que estava bem danificada, adquirido diversos produtos e equipamentos e colocado câmeras de segurança. Na Cooperluz, foi fabricada uma esteira para subir os materiais para a esteira principal, o que ajudou muito eles. Foi comprado uma empilhadeira a gás, produtos de informática, escritório e cozinha. Para a Reluz, foram compradas prensa, ventiladores, e produtos de informática, escritório e cozinha. Na Coopercata, foi trocada a correia da esteira, grades para evitar invasões, baias para vidros e plásticos, produtos de informática, escritório e cozinha. E a Nova Conquista recebeu várias melhorias, além dos produtos de informática, escritório e cozinha. 

Ou seja: todos os grupos foram beneficiados, tendo por critério os conceitos, princípios, fundamentos e práticas da economia solidária.

Os desafios da autogestão e as perspectivas futuras

Possibilitar em um empreendimento solidário como uma cooperativa de catadores o controle efetivo dos meios de produção de forma democrática e transparente, promovendo relações humanas de produção, de forma solidária e participativa é sem dúvida um dos maiores desafios internos dos grupos que formam a Coopcent ABC.

Somos educados na sociedade capitalista, em que vivemos geralmente para o individualismo e a competitividade. As escolas preparam seus alunos para serem patrões ou empregados, não para trabalhar em empreendimentos associados, democráticos e solidários. Esses espaços são ignorados pela educação formal e isso influencia muito o comportamento das pessoas que estão atuando em cooperativas, como os catadores e catadoras de materiais recicláveis.

Ao ingressar em uma cooperativa de catadores, os novos associados geralmente estranham o fato de não ter uma figura como a de um patrão que determina o que cada um deve fazer. Por mais que se repete que ali é uma cooperativa e todos são responsáveis pela gestão do espaço, isso não é compreendido de forma tranquila. Existe uma certa desconfiança e ao mesmo tempo um receio dos novos cooperados se exporem e passarem a atuar levando em consideração a autogestão.

A Coopcent ABC entende que esse aspecto é importante para o desenvolvimento de uma cooperativa e procura sempre praticar a democracia e a transparência em suas ações, estimulando para que os grupos filiados façam o mesmo. Todos os grupos realizam pelo menos uma assembleia mensal onde são realizadas as prestações de contas a fim de democratizar as informações quanto à produção, comercialização, cálculo da hora trabalhada e respectivas retiradas. Além desses momentos de prestação de contas, todas as vezes que existem impasses que necessitam de decisões coletivas, os grupos são estimulados a realizar assembleias para encaminhar as decisões de forma coletiva.

Enquanto isso, pensando no futuro e diante dos desafios dos novos tempos, a Coopcent ABC vem buscando desenvolver novos modelos de negócios para garantir sua sobrevivência. Atualmente, faz a gestão de resíduos recicláveis no Shopping Tamboré, no município de Barueri. Uma de suas filiadas, a Cooperluz, faz a gestão de resíduos no maior shopping de São Bernardo do Campo, desde abril de 2019, com a participação da Coopcent ABC. São iniciativas importantes, para que as cooperativas de catadores e catadoras ampliem seus campos de trabalho, e dinamizem sua atuação na sociedade.

O mais importante é sempre garantir que os princípios da economia solidária estejam presentes em nosso meio, com os grupos atuando com autogestão e que a exploração e dominação do homem pelo homem não se faça presente em nosso universo. Com essa prestação de serviços, os recursos adquiridos são utilizados para contribuir com a manutenção da Coopcent e promover melhorias nos grupos.

Colaborando com a organização da economia solidária

Atualmente, a Coopcent ABC participa ativamente do Fórum Estadual de Economia Solidária – FOPES, bem como do Fórum Regional de Economia Solidária do Grande ABC e do Conselho Municipal de Economia Solidária de Mauá, onde atua com uma representante da entidade na presidência nesse período de 2021. Entendemos que é importante essa participação, para que haja o fortalecimento e desenvolvimento da economia solidária no país. 

Os fundamentos da economia solidária são muito sólidos e nos possibilitam inferir que este é um caminho que pode estruturar uma nova sociedade justa, democrática e solidária. Mas precisamos ampliar os horizontes pautados atualmente na economia solidária, para que consigamos convencer a sociedade e a militância, de forma consistente, do seu potencial transformador. Sair do microeconômico, ou seja, da instância dos empreendimentos, que na maioria das vezes reflete a economia de subsistência de forma precarizada, e passarmos a estruturar a concepção macroeconômica da economia solidária, ou seja a nível de país. 

Importa construir um projeto de sociedade a partir dos fundamentos da economia solidária especificando o papel das instituições nessa nova proposta. Como deve ser o Estado, enquanto objetivos fundamentais, conceito e estrutura de nação, os governos, o sistema financeiro, educacional, tributário, trabalhista, previdenciários; enfim, um novo ponto de chegada. Esse é um dos grandes desafios que a militância da economia solidária tem que enfrentar, fundamentar e estruturar, se o objetivo é a construção de uma nova sociedade. E a Coopcent ABC estará presente nesse debate, colaborando com o que for possível e necessário.

* Economista e Jornalista, Membro da Coordenação Executiva do Fórum Paulista de Economia Solidária (Fopes) e assessor da Cooperativa Central de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Grande ABC (Coopcent ABC)

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Relatos do campo: em busca da sintropia

Em um mundo que vê seus recursos naturais se esvairem com rapidez nunca antes vista, são cada vez mais necessários métodos inovadores de lidar com o solo, a água e todas as formas de vida. Por isso, o surgimento da Agricultura Sintrópica como método de cultivo agroflorestal representou uma verdadeira transformação. A criação do suíço Ernst Götsch vem inspirando milhares de pessoas Brasil afora, entre elas um professor de Gravataí/RS, que mudou seu estilo de vida e a forma como analisa nossa existência nesse planeta. É esse “neorrural” que conta um pouco mais sobre esse método revolucionário.

Vicente Guindani *

Escrever foi, por muito tempo, mais do que um hábito: era uma atividade militante. Mas era algo resumido a jornais, panfletos, alguns documentos teóricos e teses. Participei dos movimentos estudantil e depois sindical, integrei fileiras de organizações de esquerda marxistas e trotskystas e fui dirigente do sindicato dos Correios. Então era natural ter opinião e sugerir linhas políticas para diversos assuntos.

Mas desde que me afastei da militância organizada, mesmo quando estive em sala de aula por quatro anos, escrever foi deixando de ser algo natural. Fui ficando com mais dúvidas, mais criterioso e silencioso, o que se acentuou após a pandemia e a vinda para o sítio. Só que não resisti à chance de falar sobre esse tema tão importante para mim.

Um mundo novo

Morar no campo e ser agricultor nunca foi um sonho meu. Até meus 30 anos eu sequer cogitava essa hipótese. Vivi em Porto Alegre/RS até 2019, quando minha rotina fora de casa se dividia entre dar aulas e fazer música com meus amigos da banda Expresso Livre. Sou pai de dois filhos e sempre encarei as rotinas e o lazer urbanos com naturalidade, como jogar bola na pracinha, ou juntar a galera para um jantar musical. Mas isso mudaria em breve.

Em meados de 2018, quando dava aula para o sétimo ano sobre geografia do Brasil, notei que minhas pesquisas sobre agronegócio e agricultura familiar me provocavam maior interesse, ao mesmo tempo em que alguns estudos pessoais e imersões em contextos místicos colocaram a mim e minha família em contato com culturas da floresta amazônica, práticas e ensinamentos que desse universo provém. Não demorou até conhecermos o conceito de Agrofloresta e, mais especificamente, o sistema de Agricultura Sintrópica desenvolvido por Ernst Gotsh. Nos inscrevemos, então, em um curso sobre o tema, com um dos alunos e discípulo de Ernst, Namastê Messerschimidt. E dali para a frente, não paramos mais.

Mas afinal, o que é a Agricultura Sintrópica?

O método desenvolvido por Gotsh desenvolve uma forma genuína, potente e maravilhosa de nos relacionarmos com o solo, com a água e todas as formas de vida. Coloca a perspectiva da abundância, da soberania alimentar e da dignidade do trabalho em confluência não só com a preservação, mas com a implantação, a multiplicação e a edificação de novas florestas – provavelmente a maior tarefa histórica que nossa geração tem pela frente. E poder construir florestas enquanto se gera renda e alimento saudável, poder misturar o plantio de árvores nativas e de lenha, espécies de reflorestamento, junto com árvores exóticas de valor comercial, como banana, bergamota, abacate e hortaliças diversas, é muito mais atrativo e, principalmente, viável.

O método de manejo é muito interessante, baseado em um conjunto de princípios gerais, mas não restrito a determinadas receitas ou desenhos específicos de plantio. O solo deve estar sempre coberto, seja por cobertura morta ou culturas vivas verdes, como capins e feijões e outras espécies de grande biomassa. Os recursos materiais que produzem energia e promovem a complexificação do sistema vivo estão dentro do próprio local de plantio e manejo. As podas das árvores e a roçada de capins e outras plantas de cobertura são acumuladas nas linhas de plantio em forma de cobertura morta, o que deixa o solo mais úmido e mais vivificado pela presença de diversas formas de microvida (fungos, bactérias, minhocas, formigas). É daí que surge o conceito de Sintropia, em contraste com a lógica e a lei da entropia, que mensura e explica a capacidade que as coisas têm de perder energia e se reorganizar a partir da desordem. A Sintropia seria, ao contrário, o fenômeno e a capacidade que as coisas têm de se complexificarem, e cooperarem para evolução e o aumento da presença de vida e energia a partir da interação de uma diversidade de elementos em um espaço.

A Sintropia coloca a cooperação em destaque e procura agir a partir dessa dimensão de leis presentes na natureza, sobretudo em florestas e ecossistemas biodiversos, através de um número infinito de interações entre seres vivos

Com isso, a Agricultura Sintrópica se caracteriza pela crescente acumulação de matéria orgânica e a formação de solo vivo ao longo do tempo, enquanto as árvores crescem perto umas das outras, com todos os andares desse espaço ocupados pelas espécies de diferentes tamanhos e necessidade de luz. A Estratificação das Árvores, o arranho e distribuição das baixas, médias, altas, de sol ou sombra, como se relacionam e cooperam no espaço, estão também se comunicando na dimensão do tempo, uma vez que em uma mesma linha de 20 metros se planta espécies, com diferentes tempos de amadurecimento. A consequência disso é a qualificação da saúde, proteção e informação de vitalidade para as espécies cultivadas.

Quando estamos plantando couve, cenoura, alface, rúcula, berinjela, ao lado de bananeiras, laranjeiras, abacateiros, ipê roxo, canjerana, araucária, eucalipto, cedro, jerivá, pitangueira, goiabeira, ou quando estamos plantando roça de aipim abóbora, feijão e milho ao lado de crotalária, feijão de porco, bananeiras, chacronas e guapuruvu, na verdade estamos erguendo uma nova floresta, onde antes havia um pasto degradado.

A regeneração, ou seja, a melhoria de um solo degradado por meio do trabalho e de um manejo comprometido com a vida acima de tudo, acaba se tornando fruto de um trabalho que é o acúmulo de experiências e verdades que encontramos fazendo agrofloresta. Trabalhar no sol, mas também na sombra, com frutas variadas, madeira, com rotação de culturas anuais em diversidade e consorciamento, tudo isso chega à mesa e enriquece o espírito do agricultor e agricultora. É o resultado do trabalho feito após uma grande reflexão: se precisamos plantar florestas, como fazer com que isso se torne atrativo e, principalmente, viável? Como fazer do plantio de árvores uma atividade que não seja apenas uma iniciativa ambiental voluntariosa de grande valor, mas também, um negócio interessante para empreendimento, de modo que seja cada vez mais replicável?

O método desenvolvido por Ernst solucionou essa questão de maneira competente, nos dando a possibilidade e o conhecimento prático para plantar as árvores para reflorestamento em alta densidade, e essas por meio das podas irão alimentar a vida no solo onde estão nossas frutíferas. Os gastos menores (rumo ao zero) com adubação e irrigação e a maior variedade e colheita pagam o reflorestamento, porque as árvores e seu manejo é que são os adubos. É como se fosse uma adubação cognitiva entre as plantas, uma transmitindo informações de crescimento ou obsolescência às outras.

É uma ferramenta profundamente transformadora e com potenciais múltiplos, especialmente diante do desafio de levar soberania alimentar a toda a população brasileira. A cultura da abundância e da diversidade, são alicerces da dignidade e boa autoestima tanto para quem produz o alimento quanto para quem o consome.

Florestaria Tarumim: comercialização e redes

A Florestaria Tarumim é um espaço de agricultura familiar, localizada em um sítio de família em Gravataí/RS, onde desenvolvemos estudos práticos em agroecologia, com foco na implantação de sistemas agroflorestais com frutíferas, lenhas e hortaliças. Iniciamos a comercialização de pequenas cestas de hortaliças no outono de 2019, e atualmente temos uma feira no centro da cidade, além de manter nossa rede de entregas em domicílio duas vezes por semana.

Graças aos cultivos de ciclos curtos, a geração de renda é acelerada. Usando a bergamota como exemplo, não precisamos aguardar por anos uma boa colheita de um pomar só dessa fruta, pois ao plantarmos a mesma com outras árvores, a roça e a horta, beneficiamos todas as frutíferas por meio de ciclo de hortaliças e adubação verde e conseguimos obter renda mais cedo.

Além disso, desde o início foi muito importante e saudável estabelecer parcerias com outros produtores da rede agroecológica local. Assim aumentamos a variedade de produtos que oferecemos e acrescentamos bastante qualidade à rede de consumo, beneficiando a todos. Esse também é o propósito da parceria com o Livres, um coletivo que fomenta a agroecologia na cidade, auxiliando o produtor rural a escoar sua produção, facilitando a operação e logística de entrega diretamente ao consumidor. Iniciativas como essa demonstram o potencial da pauta agroecológica diante do atual momento histórico que vivemos.

Transições, esquinas geracionais

Aqui dentro do sítio, todos aprendemos todos os dias com a própria natureza, uns com os outros, com cada colheita, com cada perda. A convivência no trabalho é apimentada por um refinado choque geracional e que também revela o quanto a agroecologia, e sobretudo a Sintropia, entram em rota de colisão com muitos dos esquemas de pensamentos que herdamos de um modo de vida não sustentável e de uma forma de se relacionar com a terra pautado por uma agricultura dependente de insumos. Isso revela o quanto o método de Ernst difere não apenas do agronegócio exportador e da agricultura de monocultura, mas também, de certa forma, da agricultura familiar convencional, tão cara aos nossos pais, tios, avós, primos, funcionários e colegas.

Nesse sentido, a Agricultura Sintrópica permite uma interessante troca: aprendemos o tradicional com os que vieram antes de nós, e ao mesmo tempo ensinamos métodos e manejos novos. Por isso, atos como cobrir o solo, plantar capim, misturar culturas, não matar formiga, são coisas bastante difíceis de se introduzir em alguns contextos, mesmo entre quem quer realmente produzir alimento sem veneno. Até porque a Sintropia permite ir além disso: os alimentos também ganham valor nutricional e sabores oriundos dos processos que acontecem em um solo vivo – um benefício singular e que faz tudo valer a pena.

Solos vivos ou a morte desertificada

Se “nós somos aquilo que o solo faz de nós”, como ensinou a mestre Ana Primavesi, então tudo passa pela forma como nos relacionamos com o solo, com sua regeneração e conservação: o pão, o dinheiro, a água, a vida em si, toda a culpa, o perdão, as lutas, a resistência, a esperança, a memória, os sonhos sonhados aqui na Terra…

Portanto, somos espelho do que fazemos no solo. Toda dor do tamanho de uma pandemia, todo respeito à ciência e toda fé, tudo passa pela regeneração e conservação do solo fértil. O Inferno é o solo desertificado. Na floresta, as mortes alimentam a vida. Sempre é possível enxergar na morte a possibilidade de fortalecer a vida. Mas num deserto que era floresta, as mortes se tornam em vão, vazias. E as mortes não deveriam nunca ser em vão.

Acredito que nossa existência aqui na Terra depende da nossa luta para que ela seja um lugar melhor. E para que após a pandemia tenhamos algum aprendizado e evolução, temos urgentemente que olhar para a terra com mais atenção, respeito e consciência, a começar pela certeza de que sem floresta em pé não existe sequer a luta por justiça, saúde e liberdade.

A Sintropia não é a única ferramenta e nem o único método ou linha de agricultura ecológica, obviamente. Como diz o professor Fernando Rabello, a melhor agricultura é toda aquela que caminha para o aumento da vida, e o solo sempre é o critério de verificação desse melhoramento. Mas independente dos vários métodos existentes, aqui foi a Sintropia que nos despertou a vontade e a disposição de botar a mão na terra e plantar milhares de árvores.

Nela colocamos muita fé, foco e trabalho. Através dela, tenho conseguido entender e reunir as diferentes etapas da minha vida até aqui, a militância social, a arte e o amor pela natureza e seus mistérios. O sentido de futuro e a construção de sonhos alcançáveis vão se consolidando a cada dia de trabalho, e isso é nutrição e saúde para a nossa mente e nossa alma. Afinal, como afirmou um dia o genial Namastê Messerschmidt, “A Revolução será Agroflorestal”!

* Vicente Guindani é professor, músico e agricultor familiar, entusiasta da agricultura familiar e sintrópica. Responsável pela Florestaria Tarumin, em Gravataí/RS.

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