Associativismo e cooperativismo no meio audiovisual: um caminho necessário
O cinema é uma linguagem artística que envolve espaço (projeção de imagem em uma superfície) e tempo (movimento e ritmo), como afirmou o italiano Ricciotto Canudo em seu Manifesto das Setes Artes (1923), ao declarar em seu sistema que o cinema seria a sétima arte. Mas além disso, o cinema também é um dos elementos do audiovisual, um conceito que abrange tudo o que envolve elementos visuais e sonoros, como conteúdos televisivos, videoclipes, entre outros. E quem produz todas essas obras, muitas vezes, acaba sendo vítima de um cenário cada vez mais precarizado e de desrespeito ao profissional e seus direitos. Nesse texto, Eduardo Ferreira* e Vitória Felipe** falam sobre essa realidade, e sobre como a associação e a cooperação entre trabalhadores podem ser um caminho possível para mudá-la.
Para a produção de um filme publicitário, um filme de ficção ou documentário, um videoclipe, uma novela ou um vídeo para um canal do YouTube; é necessário o trabalho de uma equipe. Por isso é possível afirmar que o audiovisual só acontece coletivamente, a partir do trabalho de várias pessoas: produtores, roteiristas, fotógrafos, elenco, editores, diretores, entre muitas outras funções necessárias para o processo criativo.
No entanto, ainda que seja muito poética a visão da arte do coletivo, o dia a dia do mercado é composto por muita hierarquia, longas jornadas de trabalho e um cenário marcado por freelances, pejotização, contratos precários, individualização e precarização das relações de trabalho. A cultura, de um modo geral, vem sendo disputada pelo perigoso discurso do empreendedorismo. Mas a economia solidária vem se apresentando como um importante contraponto a esse modelo de relação de trabalho, especialmente por respeitar as relações coletivas que são a base do audiovisual!
O atual cenário do audiovisual no Brasil
O setor audiovisual brasileiro movimenta mais de R$ 25 bilhões por ano e tem um crescimento anual aproximado de 8,8% de acordo com a Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Isso inclui desde pequenas produções até longas-metragens, que podem envolver o trabalho de dezenas de profissionais para a sua realização, muitas vezes em jornadas diárias de mais de 8 horas.
Não é difícil de imaginar que muitos desses profissionais, mesmo com a forte atuação dos sindicatos, tenham seu trabalho explorado e muitas vezes mal remunerado. Para além da remuneração, outra questão recente vem contribuindo para a escalada da precarização da força de trabalho dos profissionais de audiovisual, sempre sob a justificativa de “minimizar custos”: a famosa “pejotização”, onde os profissionais são “convidados” a abrir suas MEIs (Micro Empreendedor Individual) e prestar serviço como pessoa jurídica.
Ou seja, para receber seus cachês, o profissional que passa a ser contratado por empreitada, mesmo em projetos de longa duração, precisa emitir nota fiscal. Dessa forma, a produtora contratante passa a pagar menos encargos trabalhistas e, de quebra, se sente livre para impor a esses profissionais jornadas de trabalho nos sets de filmagem que podem chegar a 12 horas por dia, seis dias na semana – ou mesmo mais que isso. A produtora contratante ganha, pois economiza no orçamento e seus profissionais trabalham mais, porém o profissional perde duplamente, pois além da exploração diária no trabalho para o qual foi contratado, fica alheio a muitos dos direitos que teria se fosse contratado via CLT. Para piorar, essa prática o condena a sempre depender de um próximo projeto para voltar a ter uma remuneração, o que a médio e longo prazo o força a ter que aceitar condições de trabalho e cachês ainda mais precarizados.
É uma realidade totalmente oposta ao que se vende no mercado a respeito, contrastante com a ideia totalmente romantizada da “pejotização”. Nela, o profissional se tornaria um empreendedor, e nessa condição ele teria maiores chances de “vender” seu serviço no mercado, atendendo a diversas produtoras diferentes, e assim se reinventando e crescendo com sua própria empresa. Mas essa ideia ignora o fato de que um bom profissional nem sempre será um bom empreendedor, e que isso não muda com a simples obtenção de um CNPJ.
Entender essa situação é relevante, pois para que possamos compreender a importância dos empreendimentos autogestionários é necessário entender como muitos profissionais decidiram subverter a lógica capitalista, deixando de prestar serviços de forma explorada para grandes produtoras e passando a investir em seus empreendimentos, trabalhando como coletivos, pequenas sociedades e cooperativas. Vale lembrar, como dito anteriormente, que agora grande parte desses profissionais já são pessoas jurídicas, logo, porque não unir o útil ao agradável?
As alternativas para além do mercado: exemplos que vêm da Baixada
Logo após compreender essa realidade, a grande dúvida deve ser: ao optar por ser um pequeno empreendimento de audiovisual, dificilmente será possível produzir um filme, atender agências de publicidade ou até mesmo produzir conteúdo diversificado nas redes sociais, certo? Na verdade, não é bem assim!
É claro que um pequeno empreendimento, sendo ele autogestionário ou não, não terá acesso a fundos de financiamento como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), por exemplo. Mas é possível produzir começando de baixo: primeiro se estruturando, depois se planejando e se desenvolvendo – o crescimento é consequência. Dessa forma, sim, um pequeno empreendimento audiovisual, sendo ele autogestionário ou não, pode produzir um longa-metragem, uma série para plataformas de streaming, conteúdos diversificados para as redes sociais, filmes publicitários e até mesmo programas de TV.
Na Baixada Santista, temos exemplos disso. Um deles é o coletivo audiovisual autogestionário Noise Coletivo, da cidade de São Vicente. Fabiano Keller, integrante do grupo, falou um pouco sobre o empreendimento:
“Durante um curso de cinema, juntamos um pessoal e formamos o coletivo, com ideia de realizarmos produções autorais, onde as funções seriam exercidas em sistema de rodízio, ou seja, em cada projeto os membros atuariam em funções diferentes, para exercitar o conhecimento e pegarmos experiência em diversas áreas. Hoje, cerca de 9 anos depois, algumas pessoas se afastaram, outras chegaram agregando, e continuamos com esse ideal de coletividade em todos os projetos em que nos envolvemos”, afirma.
Outra experiência de empreendimento autogestionário, também da cidade de São Vicente, é a Tumulto Rec, que teve seu início após o videomaker Andrey Haag, que trabalhava em uma produtora audiovisual de casamentos, ser convidado para produzir um fashion film e um videoclipe.
“Depois desse videoclipe eu comecei a receber várias mensagens, como por exemplo ‘Nem parece que foi o primeiro!’, o que achei muito bom… muitas pessoas querendo que eu trabalhasse com elas… e (ali) eu acho que eu consegui entender com que eu quero trabalhar, pra onde eu quero ir”, diz Andrey.
Apesar de ter se encontrado, Andrey continuou trabalhando na produtora audiovisual de casamentos, realizando suas produções em paralelo, mas como a forma de contratação era por trabalho realizado e rendimento, ao focar nos videoclipes, o rendimento de Andrey despencou na produtora de casamentos e no fim veio a notícia. “Aí um belo dia minha chefe me chamou e falou assim: ‘Você já foi um funcionário que agregou ideia nova, você pesquisou coisa nova, só que é isso, agora a sua produção está caindo, você não tá mais conseguindo mais dar conta’, e no meio disso ela me soltou: ‘Sabe por que você não vai crescer na vida? Porque você não gosta de coisa certa, você gosta de tumulto’”.
Foi nesse momento que Andrey percebeu que era isso que precisava, desse “tumulto”, de ter algo com a sua cara e se dedicou integralmente ao seu empreendimento que veio a se chamar Tumulto Rec, hoje em parceria de Fê Góis, onde atuam de forma autogestionária e atuando em projetos de impacto social com grande relevância na Baixada Santista.
O trabalho desses coletivos ainda é importante por mostrar que empreendimentos audiovisuais autogestionários não precisam necessariamente produzir somente conteúdo autoral. A Noise Coletivo, por exemplo, define seu objetivo profissional da seguinte forma: ”Atuar em todas as áreas do audiovisual, desde projetos autorais que ainda desenvolvemos, quanto videoclipes, institucionais, e conteúdo para redes sociais. Temos uma preferência por projetos que tenham algum apelo social, pois acreditamos na força do audiovisual como ferramenta de conscientização e transformação. O coletivo hoje é formado por 4 integrantes, onde todos têm total liberdade de expressão e a mesma força de decisão. Quando chegam novos projetos, nos reunimos para avaliar e criar em conjunto”.
A experiência do Coletivo Catarse em Porto Alegre
Nos distanciando da Baixada Santista, conhecemos o Coletivo Catarse, uma cooperativa de comunicação localizada em Porto Alegre, que trabalha com projetos audiovisuais e podcasts. O empreendimento, segundo suas próprias palavras, ”desenvolve seus trabalhos a partir de uma perspectiva de comunicação integrada, transdisciplinar e com características de produção e compartilhamento de conhecimento, fomento de redes e formação com caráter articulador e mobilizador”.
O Coletivo Catarse se destaca por ser um exemplo de iniciativa oficialmente formalizada como cooperativa. Seu caso foi inspiração para a mudança na Política Nacional do Cooperativismo, que em 2012, legalmente liberou a formação de cooperativas de trabalho com apenas sete associados, pela Lei N°12.690/2012.
Com 11 cooperados e um currículo com mais de 500 curtas, médias, longas metragens, videoclipes, reportagens, cobertura de eventos e outras produções, o Coletivo se mostra como uma alternativa dentro do mercado audiovisual que conseguiu ter sustentação financeira e produzir trabalhos autorais, seguindo um modelo autogestionário.
A autogestão é uma alternativa
A autogestão dentro de coletivos audiovisuais é recorrente, tendo em vista que há um circuito cinematográfico independente resistindo há décadas. Mas o engajamento dentro da Economia Solidária, de modo a reconhecer e adotar seus princípios é menos comum dentro da área. É um cenário que deve mudar, pois a Ecosol é uma solução sob medida para o profissional de audiovisual que quer valorizar seu trabalho, e construir projetos coletivamente.
Essa é uma importante reflexão, pois, como já dito, mesmo diante de uma produção coletiva, ainda há exploração nas relações de trabalho no mercado tradicional, realidade que se aprofunda na atual conjuntura e sob um governo neoliberal e autoritário. Mas o cooperativismo, que propõe uma relação equânime baseada na autogestão e na humanização nos seus ambientes, nos permite eliminar as cadeias tóxicas dessa corrente.
Contar com cada vez mais profissionais e empreendimentos audiovisuais dentro das redes de Economia Solidária Brasil afora é a melhor maneira que temos de tirar o trabalhador da invisibilidade, proporcionando participação coletiva na tomada de decisões e criação – uma premissa básica para conteúdos inovadores e críticos. Além disso, para criar outra economia será preciso criar também um setor de audiovisual autogestionário. Essa transição é, portanto, necessária!
* Eduardo Ferreira: Diretor Audiovisual da Orvalho Filmes. Produziu e dirigiu inúmeros curtas-metragens selecionados em festivais nacionais e internacionais, dentre eles os premiados Pique-Esconde e Anseios que permeiam meus tempos de paz; além de dirigir diversos comerciais e filmes institucionais;
** Vitória Felipe: Formada em Licenciatura em História pela Universidade Católica de Santos (Unisantos), onde pesquisou sobre Patrimônio Negro. Cursou Cinema nas Oficinas Querô, onde iniciou seu contato com audiovisual e dirigiu o curta-metragem “ANA”. Atualmente é cooperada da Livres Coop.