Quando Ricardo Fritsch e outros dez agricultores começaram a vender seus alimentos em uma tenda à beira da BR-116, há 20 anos, eles provavelmente não imaginavam que estavam diante do início daquela que se tornaria uma das marcas mais conhecidas de orgânicos no país: a Coopernatural. E no meio disso tudo nasceu outra experiência única, a cerveja Stein Haus. Conversamos com Ricardo para entender melhor a história da Coopernatural e como a Stein Haus surgiu, tornando-se o que é hoje
Ao estudarmos Economia Solidária, aprende-se que ela possui – pelo menos – seis princípios básicos: autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo e consumo solidário. Unidos, elas criam as condições para que a Ecosol cumpra seu objetivo, que é organizar a produção, o consumo e a distribuição de riqueza focando na valorização do ser humano, e não do capital.
Mas existe um outro fator importante nesse processo, no entanto, igualmente essencial para qualquer Empreendimento Econômico Solidário que queira ter sucesso e longevidade: a organização. Sem ela, o empreendimento pode se perder em si mesmo e não conseguirá autossustentar nem a si, nem sua própria rede.
Quando há essa organização, porém, o EES consegue sobreviver às dificuldades iniciais, cresce e pode até se tornar, anos depois, em uma referência nem seu segmento – como é o caso da Coopernatural, localizada no pequeno município de Picada Café/RS. Ela nasceu a partir da iniciativa de 11 agricultores da região, entre eles Ricardo Fritsch, com quem a Alternativas Solidárias conversou.
“A Coopernatural surge em 2001, ainda como associação, por conta de duas demandas que existiam entre nós: ter uma produção agroecológica limpa e saudável, e comercializar o excedente das produções em um espaço, à beira da BR-116, todos os finais de semana e feriados. Na época, tinha bastante produtos in natura, frutas, legumes e folhosos. Éramos, na época, em sua maioria, agricultores integrados, que ou produziam frango para engorda, ou produziam leite para uma empresa que fornecia ração para animais, ou ainda faziam reflorestamento de Acácia”, explica.
Era um trabalho difícil, pois de acordo com Ricardo as integradoras prejudicavam demais o trabalho dos agricultores, porque tanto o frango quanto o leite já eram uma commodity nessa época, o que acarretava em muita desvalorização do trabalho. Além disso, ainda segundo ele, os agrotóxicos já estavam muito presentes na agricultura e prejudicavam bastante a qualidade do alimento.
Os primeiros anos
Entre 2001 e 2004, o grupo atuava na forma de associação, com o nome Associação Vida Natural. Isso pois apenas nesse ano foi possível reunir os 20 integrantes necessários para fundar uma cooperativa, que foi constituída em 21 de setembro com o nome Cooperativa Agropecuária de Produção e Comercialização Vida Natural, criada sob um modelo de gestão e produção definido após muitas visitas a outros agricultores agroecológicos, especialmente do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
“No início foi difícil pros agricultores, pois nem todos enxergavam todo o processo. Quando se trabalha com integradoras, só se enxerga parte dele. Alguns tinham dúvidas sobre se conseguiriam sustentar suas famílias e os seus negócios. Por isso foi importante visitar outros grupos, pois foi o que nos permitiu ter a confiança de que realmente era possível”, afirma.
A essa altura, segundo Ricardo, a tenda já não absorvia mais toda a produção dos agricultores, então foi necessário ter “criatividade” para escoar os produtos. “Nós tínhamos, por exemplo, uma lista de agricultores que promoviam eventos temáticos sobre agroecologia. Naquela época, falar de aproveitamento de folhas de cenoura ou beterraba não era tão comum assim, né? Aí eles convidavam os nossos agricultores para apresentar seus produtos”, diz. Além disso, a Coopernatural começava a se fazer presente em feiras agroecológicas, onde exibia não apenas seus produtos in natura como alguns agroindustrializados, que já eram produzidos desde 2003.
“A ideia de agroindustrializar foi uma forma de aproveitar melhor os produtos. Porque se nós levássemos a uva para a tenda e não vendesse em dois dias, por exemplo, no terceiro ela virava geleia, e assim a gente não perdia nada. Comprávamos os vidros e tampas coletivamente e assim passamos a ter outros produtos à disposição, fomos diversificando”, lembra.
Foi como Coopernatural que o grupo conseguiu seu primeiro cliente fora do estado, uma empresa de orgânicos de Campinas/SP, e também participou de sua primeira feira fora do estado, um evento de Economia Solidária em São Paulo/SP, no Ibirapuera, já em 2005.
“Foi um ótimo evento para nós, pois havia muita representatividade quilombola, bastante de grupos de mulheres, artesanato, mas muito pouco de agroindústria. Além disso, nos destacamos pelos nossos preços, pois fomos para a feira com a mentalidade de praticar um valor justo nas mercadorias. Vendemos todos os itens que levamos”, lembra,.
Ricardo explica que essa mentalidade vinha da vivência acumulada em eventos como o Fórum Social Mundial e a feira de Santa Maria/RS, da Irmã Dulce, que era realizada em um espaço que não era cobrado. “Então ela sempre dizia: ‘pratiquem apenas um pequeno lucro para o combustível, mas deixem os produtos num valor justo para o pessoal conhecer’. Ela insistia muito nisso”, afirma.
A parceria com o Sebrae
Havia algo, porém, que precisava ser melhorado: a apresentação dos produtos, que não era tão “profissional”, segundo Ricardo: os rótulos eram impressos na impressora, com data de validade, escrita à caneta. Era necessário aperfeiçoar.
“Com o tempo, fomos encontrando os pontos onde era importante investir o nosso tempo e dinheiro para evoluir. Foi quando iniciamos uma parceria com o Sebrae, na forma de consultoria. Fizemos um planejamento estratégico, e tivemos a assessoria de um engenheiro de alimentos, um uruguaio chamado Álvaro Lopes. Ele nos ajudou muito a crescer em vários aspectos, desde a padronização até a própria produção. Isso aconteceu em um bom momento, pois em 2006 a nossa comercialização de agroindustrializados já tinha tomado uma dimensão tal que a tenda já tinha cumprido sua função”, explica.
Foram várias as ações da consultoria, mas Ricardo destacou algumas. Uma das mais importantes foi a transformação das cozinhas onde as geleias eram feitas em mini agroindústrias. “Quando o consultor veio aqui, constatou que não tinha dinheiro para uma fábrica. Então essa foi a solução que ele encontrou. Nós concordamos, e assim foi feito. Somente em 2010 nossa fábrica de geleias ficou pronta”, diz.
Outro ponto foi a contratação de empresas para padronizar os rótulos e construir um site. Medidas que ajudaram a melhorar a qualidade não apenas dos produtos, mas agregar valor aos mesmos.
A consultoria do Sebrae foi uma virada na história da Coopernatural. “Conforme fomos evoluindo, passamos a fazer parte de feiras inclusive no exterior, em países da Europa, da África, no Peru… em vários outros lugares. Fomos um pouco mais longe”, afirma Ricardo, rindo.
Questionamos a que ele atribui o crescimento e sucesso da cooperativa. A resposta foi simples, mas esclarecedora.
“Nós sempre fomos organizados, e rápidos, acho que isso nos ajudou. A cada cinco, seis horas, respondíamos todos os e-mails. E isso muitas vezes significou credibilidade, eficiência e confiança junto aos clientes, parceiros. Certos órgãos percebiam isso e apostavam na gente. Conseguimos presença em muitas feiras e eventos sendo subsidiados, por exemplo. Te diria isso”, diz.
A Stein Haus
E como a cerveja entrou no caminho da Coopernatural?
“Eu estudei na Alemanha em 1989 e 1990, e fiz um curso que aqui no Brasil se interpretaria como ‘Técnico em Agropecuária’, ou algo do tipo. E durante o curso, visitei umas cinco cervejarias. Mas era algo ainda muito distante para nós no Brasil, tanto é que naquela época o processo de produção da cerveja era diferente de hoje”, lembra.
“Mas o tempo passou, e em 2012 ou 2013, com a ascensão da cerveja artesanal no Brasil, resolvemos estudar a possibilidade. Nós já estávamos trabalhando com alguns grãos, e fomos verificar se havia alguém no Brasil que produzia cevada agroecológica. Encontramos um, mas ele produzia para o trato animal, não para comercializar. Precisamos conversar com ele, e em 2014 fizemos uma proposta para ele plantar cevada. Ele concordou”, afirma Ricardo.
A cevada foi colhida apenas em 2015, mas ainda faltava uma etapa: a malteação. Somente depois de muita pesquisa, Ricardo encontrou alguém que fizesse o processo: um professor chamado Rodolfo Heitor Vargas Rebelo, que possuía uma malteria em Blumenau/SC. “Conhecemos ele em um curso, e depois de conversarmos ele se dispôs a maltear um pouco de cevada para nós. A partir daí, tudo andou: em maio a nossa cevada foi malteada, fizemos os testes e três meses depois nós já tínhamos o registro junto do Ministério da Agricultura para a produção de cerveja”, recorda.
Foi graças à organização que, novamente, um desafio para a cooperativa que poderia ser muito complexo acabou não sendo. “O MAPA fez a auditagem na nossa unidade em agosto, antes de iniciarmos a produção. Desde o início empoderamos o fiscal de informações, para evitarmos ao máximo qualquer contestação. E assim aconteceu”, afirma.
Da mesma forma, ocorreu a certificação da cerveja como orgânica. “Deixamos as autoridades cientes de todas as etapas, com todas as documentações em dia e bem explicadas. Já tínhamos um bom relacionamento com a Rede Acolhida no estado, e também com o Núcleo Serra. Além disso, os produtores da cevada já eram certificados e bem conhecidos na região e no meio da agroecologia, isso facilitou. O último passo foi certificar a malteação, mas levamos um fiscal até Blumenau para fazer essa auditagem, analisar o processo e conhecer o espaço, para garantir que tudo estaria dentro dos parâmetros da produção orgânica. Ele foi aprovado e assinou um termo de compromisso e, até hoje, todo o processo dentro da malteria é gravado, exceto as etapas onde existe algum segredo industrial – mas mesmo essas partes foram auditadas”, explica.
Então, em novembro de 2015, a Coopernatural lançou a cerveja Stein Haus Doppel Weizenbier, primeira orgânica e sustentável produzida no país. “Stein Haus”, em alemão, significa “Casa de Pedra”. É um nome que faz alusão ao local onde ela é produzida, um prédio construído com pedra basalto. “Construímos com esse material não por causa da cerveja, mas do vinho, que produzimos lá também, e para o vinho é conveniente a temperatura interna do local seja mantida”, afirma. Segundo Ricardo, algumas pedras na construção pesam mais de 100 quilos, e todas foram retiradas ali, do entorno das plantações. “Os construtores foram verdadeiros artesãos. Eles removeram as pedras da roça e as esculpiam manualmente até ficar razoavelmente retangular. Além disso, elas são apenas rejuntadas, não há massa entre elas, pois o próprio peso da pedra é o que sustenta a construção”, detalha.
Hoje, a carta de cervejas da Stein Haus tem 21 variedades. “É preciso de vários maltes especiais para isso. Com o tempo a malteria de Blumenau foi se desenvolvendo e hoje ela produz cerca de oito motos especiais. Assim fomos incrementando nossa carta de cervejas. Além disso, temos nosso grupo o Tiago Genehr, que já foi foi cervejeiro de uma pequena marca conceituada de cerveja. Ele saiu dela quando a empresa foi vendida e hoje está conosco, construindo receitas. Ele simpatiza muito com nossa causa”, conta.
Atualmente, a Stein Haus conta com a produção de grãos (cevada, trigo, centeio e aveia) em Santo Antônio do Palma/RS, e segue com a malteação em Blumenau, sempre no início de janeiro. As vendas ocorrem para todo o Brasil, mas segundo Ricardo cerca de 70% se concentra na região Sudeste e no Distrito Federal.
Os desafios da pandemia
Ricardo conta que os agricultores se preocuparam com a pandemia do coronavírus, no seu início, pois temiam que as vendas parassem. Por isso, procurou amigos agricultores que manteve, da época em que estudou na Alemanha, para saber como eles haviam passado pelos momentos de crise, meses antes. E se aliviou.
“Eles me disseram para não me preocupar, pois muitos alemães passaram a cozinhar de casa, e a demanda por alimentos havia aumentado por lá. Então acreditavam que aqui não seria diferente. Eu tive um cenário muito antecipado de como tudo foi, então peguei essa cartilha e coloquei debaixo do braço. Nos preparamos para ter alimento para mais pessoas, e não menos, e deu certo, pois crescemos mais de um dígito desde o início de tudo”, afirma.
O único produto afetado, diz ele, foi um que estava em estudo: o chope artesanal, que chegou a ser apresentado em algumas feiras regionais, mas foi inviabilizado pela pandemia.
A comunidade e a natureza
Picada Café fica na encosta da Serra Gaúcha, a 90 km de Porto Alegre. Possui cerca de 5500 habitantes, mas quando a cooperativa começou tinha cerca de 2400, segundo Ricardo. É muito conhecida pelas indústrias de couro e calçadista, tendo mais população durante a semana que nos finais de semana.
“Por causa disso, a Coopenatural acaba ainda não sendo conhecida por todos os habitantes aqui, mas realizamos nossas ações com a comunidade. Realizamos palestras, e campanhas nas escolas, como uma de reciclagem que foi promovida durante alguns anos. Também já fomos fornecedores de alimentos para a merenda escolar da rede municipal, e temos um espaço no Parque Municipal Jorge Kuhn onde comercializamos nossos produtos. Além disso, dentre a parte da população que nos conhece, contamos com grande apoio e adeptos, sem falar no apoio de todas as legislações do município”, detalha.
Os aprendizados foram muitos desde o início da Coopernatural. Segundo Ricardo, o futuro se mostra muito promissor para os 75 cooperados e agricultores parceiros. E o que fica, de tudo que já viveram, é a forma como todos passaram a se relacionar com a natureza:
“O agricultor agroecológico aprendeu a se comunicar com a natureza. Isso é muito importante, ele conseguir se comunicar e saber interagir com e a favor da própria natureza, e saber responder àquilo que ela tenta lhe dizer para conseguir produzir. Alguns têm esse conhecimento acumulado de outras gerações, outros adquirem com os ensinamentos dos próprios cursos que participamos. São essenciais para que façamos bem nosso trabalho”, finaliza.