Socialismo sem crescimento: mais que utopia, uma necessidade

“Não há riqueza a não ser a vida”

John Ruskin

Nessa seção, assim como na próxima, iremos refletir sobre a compatibilidade do socialismo com a ideia de crescimento infinito, e também sobre a necessidade de construirmos uma economia centrada na produção de valores de uso para a boa vida. A ideia de uma sempre crescente economia baseada no lucro tem origem no próprio capitalismo e, ao que tudo indica, dentro desse mesmo sistema irá se findar. Porém, há alternativa ao colapso – como demonstrará Guilherme Prado*, nesse texto

O marxismo é uma crítica da Economia Política. E, ao mesmo tempo, poderíamos sustentar: é uma teoria de uma Economia Política pela vida. Como ponto central nessa teoria crítica está a defesa da vida do trabalhador (DUSSEL, 2014), e em menor plano – se considerarmos os pensamentos de Marx em seu momento histórico -, também uma defesa de todo o necessário para que essa vida tenha seu pleno desenvolvimento. Sendo assim é também uma teoria que, desde então, já carregava componentes Ecossocialistas, como defende o recente livro de Kohei Saito (2021) “O Ecossocialismo de Marx”. Desta forma, nos cabe dizer que o marxismo, apesar de suas correntes produtivistas, nunca foi uma teoria para fazer mais, quantitativamente, daquilo que o capitalismo faz. Ou seja, o fato dessa teoria não versar sobre como crescer mais (e mais rapidamente) a economia, faz tal contradição se tornar ainda mais evidente em um momento onde o próprio crescimento econômico já atenta contra a vida na terra. 

Além dos dados que se empilham e mostram que a relação entre crescimento econômico e emissão de gases é muito próxima (ver Gráfico 1), já temos medidores o bastante que berram aos olhos quando nos mostram que precisamos migrar de uma economia mundial que tem como objetivo maior o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), para uma outra que distribua bem-estar reduzindo radicalmente seu impacto na biosfera. A crise da Covid-19 teve um curioso efeito de retração em nosso dano à vida: fez com que saíssemos do consumo de 1,75 planeta Terra no ano de 2019 para 1,6 em 2020. Porém,  já voltamos a consumir 1,7 planeta por ano em 2021, fazendo com que a economia mundial consumisse tudo aquilo que o planeta é capaz de renovar 3 semanas mais cedo que 2020. O dia de sobrecarga da Terra, portanto, voltou a ser 29 de julho (OVERSHOTDAY, 2021)

PIB – uma medida colonial

A própria ideia de crescer o Produto Interno Bruto (PIB) é uma ideia colonizadora criada por Simon Kuznets e adotada pelos EUA no pós-guerra para mostrar sua superioridade ante o eixo soviético que, aliás, antagonizava com o capitalismo ao não aceitar o princípio da expansão do lucro como meta, mas adotando o crescimento da produção como seu objetivo central. Se isso foi questionável à época, produzindo na URSS os rios mais poluídos do mundo por exemplo, hoje tal erro não pode se repetir. Aí devemos reforçar: a ideia de perseguição do crescimento econômico infinito e a qualquer custo é uma ideia colonial, não só porque foi imposta pelo imperialismo dos países do Norte – excluindo todas as outras formas de entender a prosperidade dos mais diferentes povos – , mas também porque é baseada na expansão dos valores de troca. Ele na verdade cresce quando um bem comum é expropriado dos trabalhadores, como no caso da privatização de um rio ou se o ar passasse a ser vendido, nessas condições o crescimento se acelera e os trabalhadores ficam mais pobres. Ou seja, o PIB  não é baseado em necessidades que só podem ser supridas por valores de uso. Assim, o crescimento, e o próprio decrescimento que falaremos adiante, nunca devem ser o fim, mas apenas uma consequência da “produção” (ou a decisão política por não produzir algo) de valores de uso que são finitos. 

Sendo assim, é preciso dizer também que o socialismo dificilmente pode fazer melhor o que o capitalismo faz, uma vez que boa parte daquilo que o socialismo se propõe a fazer (ou deveria) não só “consome” as riquezas produzidas (educação, cuidado com idosos, saúde preventiva, bicicletas que não movimentam a economia como carros), como não tem muito a ver com quantidade – uma vez que não se mede os prazeres da vida com números, já que são sensações qualitativas. 

É claro que devemos lembrar que muitas das necessidades humanas dependem de “quantidade de produção”, produção essa que, numa economia voltada aos valores de uso, não deveria refletir em crescimento contínuo, mas sim em um incremento de produção para produzir um tanto de valores de uso (alimentos, sapatos, livros) para um tanto finito de necessidades de um número definido de pessoas. O que buscamos dizer com isso é que não queremos que os países dependentes “decresçam deliberadamente”, pagando a conta do colapso ecológico criado pelos países do Norte. Afinal, como afirma o espanhol Carlos Taibo (2010), se a renda per capita de países como Mali ou Burkina Faso é 30 vezes menor que a de França ou Alemanha, não nos parece razoável que esses países reduzam seus níveis de consumo. Porém, estes países devem tomar nota dos problemas que o Norte gerou se desenvolvendo, chegando a um mau desenvolvimento baseado em um modo de vida imperial  (BRAND; WISSEN, 2021). 

Desta forma, sob o aspecto macroeconômico e social, a ideia por trás do movimento chamado decrescimento (e da ideia de um socialismo sem crescimento que defendemos aqui) é: ser indiferente ao PIB tendo em busca decrescer as atividades ruins tanto dos países imperialistas quanto dependentes (indústria automobilística, bélica, e do petróleo por exemplo) buscando crescer, ou melhor “incrementar”, as atividades necessárias para o bem-estar (produção de alimentos agroecológicos e energia limpa); eliminar o hiperconsumo e desperdício dos países ricos para suprir o subconsumo dos países dependentes; tudo isso sem esquecer do combate à riqueza e à pobreza extrema. 

Cabe uma última ressalva antes de vermos as origens e os motivos de pensar um outro tipo de socialismo: capitalismo sem crescimento é crise, desemprego  e fome. E os dados só mostram que as taxas de crescimento da economia desde os anos 1970 são decrescentes, mostrando a crise (ou colapso?) estrutural da qual estamos diante. O colapso climático também só mostra que essas taxas tendem a piorar, pois os impactos do aquecimento global trarão prejuízos que consumirão a riqueza de nossa sociedade. Temos como exemplo os EUA que só em 2016 gastaram US$ 46 bilhões em gastos com desastres climáticos e as estimativas que mostram que, quão maior o aquecimento, maior o impacto no crescimento econômico: com 3,7º de aquecimento haveria 551 trilhões de prejuízos, cifra muito maior do que a riqueza global existente hoje (WALLACE-WELLS, 2019, p. 41).

Sendo assim, é preciso pensar urgentemente um sistema econômico que saiba lidar com sua própria contração, já que a estagnação é uma realidade para boa parte dos países desenvolvidos e também para os dependentes, já que, se excluíssemos China e Índia dos dados veríamos que a situação é ainda mais alarmante. O Japão, não por falta de tentar é claro, é um exemplo de “Estado estacionário acidental”, já que não consegue retomar taxas de crescimento pujantes de forma alguma (ver gráfico 2), não consegue dar grandes impulsos consumistas à sua população, nem consegue tirar esse impulso a partir de obras públicas já que possui uma infraestrutura quase completa, e acaba mostrando os limites do Keynesianismo pensado sob o paradigma do crescimento. Que teoria econômica usar para sermos felizes quando já temos o bastante? Ou que teoria econômica usar para termos o bastante sem devastar o planeta? Governar sem crescimento é necessário socialmente e ecologicamente urgente.

Entropia, Estado Estacionário e Marxismo

Não são novas as correntes de pensamento fundadoras da economia ecológica e críticas à ideia de crescimento infinito. O grande nome dessa área do conhecimento foi e segue sendo o matemático e economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen (GR), o cérebro que ligou a ideia de entropia, presente na segunda lei da termodinâmica descoberta por Sadi Carnot, ao processo econômico.

“Como economista não ortodoxo que sou, eu acrescentaria que aquilo que entra no processo econômico consiste em recursos naturais de valor e o que é rejeitado consiste em resíduos sem valor. Essa diferença qualitativa está confirmada, embora em outros termos, por uma divisão particular e até mesmo singular da física conhecida pelo nome de termodinâmica. Do ponto de vista da termodinâmica, a matéria-energia absorvida pelo processo econômico o é num estado de baixa entropia e sai num estado de alta entropia”.(GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p.57)

O que é a entropia então? Do ponto de vista que nos interessa aqui, ela versa sobre a baixa entropia – energia “livre”, portanto útil ao interesse humano e quase totalmente passível de seu domínio, que tende a tornar-se alta entropia – energia “presa”, rumo à desordem e à inutilidade. Um pedaço de carvão possui menos energia que o mar, por exemplo. Porém a energia do carvão (baixa entropia) é livre e pode ser transformada em calor (pensem numa lareira) ou em trabalho mecânico (pensem numa termoelétrica e tudo que se move a partir dela), ambos úteis ao ser humano. Já o mar possui muita energia presa (alta entropia), mas não diretamente utilizável pelo homem; ele pode mover seu barco nas águas com o auxílio de uma vela por exemplo, ou de um motor, mas não manipulá-la como quer.

Essa descoberta mostrou inclusive a limitação do argumento de economia circular e renovável, uma vez que, para reciclar uma lata de alumínio gasta-se mais matéria-energia do que para produzir uma nova. Sim, é preciso lembrar: os processos de reciclagem não tornam útil novamente 100% do material submetido ao processo. Ou seja, tudo tende à alta entropia, ou à inutilidade em outras palavras. Haveria uma flecha do tempo onde tudo ruma à desorganização, tornando o estoque de baixa entropia, que é nossa riqueza comum de energia e recursos necessários para a boa vida, algo mais e mais escasso.

Ao aplicar a lei da entropia à economia, considerando não só energia mas também recursos materiais, em última instância, GR descobriu que a vida é, em si, um processo entrópico. Toda vida acelera tal processo no sentido de transformar baixa entropia (energia e recursos úteis) em alta entropia (energia e recursos inúteis). Nós mesmos somos seres entrópicos que, para vencer na batalha da vida, precisamos nos alimentar de recursos externos (baixa entropia) para subsistir: “a verdade é que todo organismo vivo procura somente manter constante sua própria entropia” e “o faz extraindo baixa entropia em seu próprio ambiente a fim de compensar o aumento da entropia à qual o seu organismo está sujeito, como qualquer outra estrutura material.” (GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p. 61)

Com essas conclusões, GR se tornou um “outsider” da economia política, alijado dos grandes debates, principalmente pelo fato de ter percebido que o crescimento econômico não poderia durar para sempre num sistema com baixa entropia limitada. Sugeriu assim que a economia era apenas um subsistema da biosfera, sendo a Ecologia – e não a Economia – a ciência principal, postulando também que o decrescimento para uma bioeconomia seria uma solução mais viável para a humanidade . Mas seu legado seguiu com outros parceiros de ideias como o escritor do clássico texto “The Economics of the Coming Spaceship Earth”, Kenneth Boulding que proferiu a famosa frase “qualquer um que acredite em crescimento infinito num planeta finito, ou é louco ou é economista”. Além dele, tivemos o seu aluno mais brilhante, Herman E. Dally, que criou a teoria dos Estados estacionários, onde teríamos uma macroeconomia que iria considerar as entradas e saídas de recursos para manter-se estável e de fato sustentável, ou seja, uma economia que não teria o objetivo de crescer infinitamente:

“Proposições impossíveis são a própria base da ciência. Na ciência, muitas coisas são impossíveis: viajar mais rápido do que a velocidade da luz; criar ou destruir matéria-energia; construir uma máquina de movimento perpétuo, e assim por diante. Respeitando o teorema da impossibilidade,nós evitamos gastar recursos em projetos que estão sujeitos a falhar. Economistas deveriam, por conseguinte, estar muito interessados no teorema da impossibilidade, especialmente aquele demonstrado aqui: isto é, que é impossível sair da pobreza e da degradação ambiental através do crescimento econômico mundial. Em outras palavras, crescimento sustentável é impossível.”(DALY, 1989)

Foi assim que Herman Daly afirmou que o termo “desenvolvimento sustentável” só faz sentido se for entendido como “desenvolvimento sem crescimento”, um modelo que se baseia na melhora qualitativa dos processos econômicos mantendo um Estado estacionário alimentado por uma gama de recursos e energia que estejam dentro das capacidades regenerativas do Sistema Terra.  Apesar de não ser um crítico resoluto do capitalismo em si, centrando-se mais na crítica à economia de mercado, Daly percebeu que só assim poderíamos resolver o problema ecológico e o social ao mesmo tempo. Daly, inclusive, abriu espaço para pensar um necessário e ainda inexplorado “Keynesianismo sem crescimento”, um campo necessário de ser explorado uma vez que as ferramentas de esquerda são quase sempre keynesianas – como afirmou Giorgos Kallis no texto anterior desta revista.

Nessas lutas do século passado, ainda em grande parte ignoradas por uma porção da esquerda hoje, podemos também citar o movimento ecossocialista que se formava nos anos 1970, com destaque as críticas radicais de Andre Gorz em obras como “Ecologia e Liberdade” e a militância intelectual de Michael Lowy, que trouxe de volta ao debate Walter Benjamin como um dos poucos marxistas que viram os perigos do progresso, especialmente quando popularizou a passagem famosa abaixo:

“Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se  apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência” (Benjamin citado por Lowy, 2005, págs. 93-94).

Outra obra essencial da construção dessa Economia crítica foi o relatório “Limites do Crescimento” de 1972, que com ajuda de cálculos de computadores já previa os limites da atual economia “os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial” (BEHRENS et al, 1972, p.20)

Por que lutamos por um Socialismo sem crescimento?

Mas o que seria necessário para uma economia socialista? É verdade que, em tese, uma economia do Estado Estacionário pode ser capitalista ou socialista, como defende Giorgos Kallis. Mas no caso do capitalismo seria uma sociedade bem feia de se viver, já que o excedente que vira mais-valia (lucro) para o capitalista, teria que ser feito apoiado em maior taxa de exploração para enriquecer os ricos, uma vez que o excedente seria limitado. Por isso a ideia de crescimento é tão aceita: ela pode contemplar com migalhas os mais pobres e com altos lucros os de cima, mitigando a luta de classes. É por isso, também, que tal ideia é tão imbricada com o capitalismo: ela está fortemente ligada à ideia de acumulação.

O crescimento dificilmente se descolará da ideia de exploração, pois ele consiste em expropriar parte do que os trabalhadores produzem para ser reinvestido em uma maior capacidade de produção no futuro. Alguns poderiam argumentar que, com a economia e os meios de produção nas mãos dos trabalhadores, eles poderiam decidir democraticamente por não consumir (agora ou no futuro) todo o produto de seu trabalho para reinvestir em uma maior capacidade produtiva. Porém, isso se assemelharia a um socialismo da opulência, que não seria muito diferente do capitalismo quando colocássemos as próximas gerações no debate democrático, uma vez que não há crescimento da produção sem crescimento da extração de riquezas naturais e emissão de gases. Como já falamos aqui, ambos aceleram a entropia, tirando a capacidade de ser feliz das gerações futuras – além de no presente já destruir as condições de vida dos seres não humanos.

Além disso, para os países extrativistas e dependentes, pouco importa se um país decidiu (democraticamente ou não) pilhar suas riquezas comuns e naturais. Na Economia-Mundo capitalista, que é também uma Ecologia-Mundo como defende Jason W. Moore, o desenvolvimento de um país implica no subdesenvolvimento de outro como apontou Andre Gunder Frank: a maior concentração de excedente ou mesmo tecnologia avançada e limpa em uma região do sistema-mundo implica em menor concentração de excedente em outras regiões do sistema, além do empurrar de atividades econômicas sujas e com maior taxa de exploração para países periféricos ou semiperiféricos. Tais fatos revelam que a solidariedade internacional ainda é a maior escolha.

É bom salientar que um sistema econômico sem crescimento será uma proposta ruim se, por exemplo, o paradigma de determinada sociedade que adotá-lo, ainda se basear na capacidade de entregar um sempre crescente nível de produção para satisfazer uma sempre crescente gama de desejos dos trabalhadores. Aqui é bom lembrar porém, que as necessidades dos trabalhadores se mantêm estáveis na história (comer, beber, comunicação, etc.), o que mudam são os satisfatores (antes um telefone fixo saciava a necessidade de comunicação, depois precisamos de um celular com SMS, depois um celular com internet, depois um celular com 3G, depois com 4G, 5G e com uma bateria que dure muito). Nesse modelo, de desejos individuais opulentos e sem fim, saciados por satisfatores que mudam – e quebram – com cada vez mais velocidade, a falta de crescimento muito provavelmente será um problema!

Com todos esses desafios colocados, além da eliminação da acumulação e da mais-valia, entendemos que a ideia de um sistema econômico sem crescimento é mais plausível para os socialistas, pois ela demandaria também a eliminação de todo o excesso e produção acima do necessário, algo já feito por várias cadeias de circuitos curtos de alimentos como o Livres, e de roupas como a Justa Trama por exemplo. Outro critério necessário também, seria o de nenhum excedente ser reinvestido em mais produção, o que (claro) não inclui a transferência do que já é investido em uma atividade ruim (agrotóxicos) em outra necessária para a boa vida (produção de alimentos agroecológicos). Caberia também lembrar que um “excedente de estoque”, em nossa crítica, não cabe como excedente para acumulação, pois será consumido pelos trabalhadores em algum momento. Seria um modelo de zero acumulação e zero investimento líquido. Porém o grande desafio está em como trabalhar os princípios da autossuficiência e dos sonhos coletivos. Mas isso é papo para outra hora. 

Um bom marxista a essa altura já se deu conta de algumas aproximações entre entropia e uma visão antissistêmica da economia: viver é tornar valores de uso em valores não úteis, ou não valores, algo que Enrique Dussel foi um dos poucos teóricos de esquerda a perceber. Dussel, aliás, postula um projeto de “baixa entropia em comunidade”. Socialismo, portanto, ao elevar a democracia à sua plenitude, não pode versar sobre como acelerar o processo entrópico, mas sim sobre como desacelerar radicalmente esse processo, considerando o bem-estar das próximas gerações, trazendo a todas e todos a boa vida agora! 

Ainda assim, a maioria concorda que a eliminação da mais-valia é necessária para construir o socialismo. Mas isso não é suficiente. Em outras palavras, Socialismo não é apenas sobre como os trabalhadores se apropriam de seus excedentes e riquezas, sem que essa apropriação seja literal, pois é necessário que um Estado Estacionário fortemente redistributivo faça com que as empresas cooperativas do trabalhadores mais rentáveis não produzam trabalhadores ricos, enquanto as menos rentáveis não produzam trabalhadores pobres – o que já é óbvio para muitos. 

Mas o Socialismo é também sobre como decidir coletivamente sobre os gastos da sociedade – porém ele não pode ser só sobre quantos painéis solares e ferrovias construímos, como diz Giorgos Kallis. Esse outro sistema versa sobre como os trabalhadores decidem coletivamente também sobre a destruição de seus excedentes (com esportes, festa, lazer, etc.), além de como preservar seus “recursos” comuns para as próximas gerações. O socialismo, nesse sentido, tem mais a ver com a sociedades indígenas, onde as inovações resultavam em mais tempo livre e não em mais produção, seja ela verde, marrom ou vermelha.

Porém, a ideia de um socialismo “crescimentista” encontra-se sólida na cabeça da esquerda, e a ideia de que um crescimento socialista “pode ser mais verde” ainda paira sobre as cabeças de muitos intelectuais. Todavia, o ecossocialismo será aquele que “conscientemente decide, e planeja” sobre “como viver com o necessário; e também aquele que coletivamente elimina o excedente de sua produção, removendo-se do circuito do crescimento” (KALLIS, p. 94, 2016). A ideia de Socialismo sem Crescimento é extremamente apropriada para a época onde mais “mais produção significa menos segurança” como disse Luiz Marques. É uma ideia, portanto, para uma prática marxista de sobrevivência ao Capitaloceno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAND, U.; WISSEN, M. Modo de Vida Imperial. São Paulo: Elefante, 2021.

BEHRENS, III W. Willians; MEADOWS, H. Donella; MEADOWS, L. Dennis; RANDERS, Jorgen. The Limits to growth: A report for the club of rome’s Project on the predicament of mankind. Nova Iorque: Universe Books, 1972.

DALLY, H. Crescimento Sustentável? Não, obrigado. 1989. Disponível em: <

https://www.scielo.br/j/asoc/a/pfNnSzdTMRHVS5sdJ3rpnTs/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 11 de novembro de 2021.

DUSSEL, Enrique. 16 Tesis de Economia Política –Interpretación filosofica. Mexico, Argentina: Siglo XXI, 2014.

GEORGESCU-ROEGEN, N. In: JACQUES, G.; IVO, R. (Orgs). O Decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Editora Senac, 2012.

KALLIS, Giorgos. In Defense of Degrowth: opinions and minifestos. Aaron Vansintjan. 2016.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin-. Aviso de Incêndio: Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

OVERSHOOTDAY. 100 Days of Possibility. Disponível em: https://www.overshootday.org/. Acesso em: 25 de outubro de 2021..

SAITO, Kohei.O Ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2021.

TAIBO, Carlos. Decrescimento, Crise, Capitalismo. Compostela: Estaleiro, 2010.

WALLACE-WELLS, D. A Terra Inabitável – uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

* Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), coordenador da Livres Coop Baixada Santista e militante do PSOL.

Leia Mais

Por uma Educação Solidária e Autogestionária

Quando discutimos alternativas sistêmicas, é comum, em consequência, discutirmos alternativas  de e até ao desenvolvimento, centrando geralmente em questões econômicas. O contexto, porém, deve ser visto de forma mais ampla: tais mudanças não podem ser atingidas sem uma nova mentalidade, que virá por meio da educação. Quem aponta como alternativa um projeto de desenvolvimento autogestionário para educação é Alcielle dos Santos *

Os desafios da escola da atualidade têm sido debatidos por todos os atores sociais nas mais diferentes instâncias. Isso se dá devido à falta de um projeto nacional consistente e articulado, que priorize a Educação com políticas públicas de amplo acesso e, simultaneamente, de atendimento da qualidade educacional. A ausência de tais políticas já promove danos sociais visíveis a todas as camadas sociais e, portanto, torna-se pauta de debate contínuo. 

Por outro lado, apesar de ser pauta dos editoriais nacionais em todos os veículos de comunicação, a discussão de um projeto nacional de Educação ainda é vaga e, pode-se afirmar, secundária, pois também falta ao nosso país um projeto nacional de formação do cidadão brasileiro. Além disso, é urgente a ruptura com um modelo educacional que segue a atender ao capitalismo, e que condena qualquer avanço humanitário frente às mazelas que promove. Diante deste cenário e citando Paul Singer, em seu texto “A Economia Solidária como Ato Pedagógico”, podemos afirmar que “a Economia Solidária é um ato pedagógico em si mesmo, na medida em que propõe nova prática social e um entendimento novo dessa prática”. 

Orientados por esse entendimento, em novembro de 2020, já na conjuntura da pandemia da Covid-19, o Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista (FESBS) promoveu uma live com o título “Educação e Construção da Solidariedade Humana” e propôs às participantes, professoras Helena Singer e Maria Leite, a seguinte questão: como a educação pode contribuir para construir a solidariedade entre os seres humanos, inclusive envolvendo a família, em um sistema em que somos bombardeados diariamente para seguirmos um comportamento individualista, de competição?

Esta pergunta surgiu no FESBS, pois entendia-se como necessário educar para a solidariedade, e, para tanto, havia que se contestar um modelo de sociedade que incentiva o comportamento de consumidor e do empreender solitário e competitivo, ou, ainda, que defende a meritocracia, a absurda crença de que basta esforço para se obter sucesso pleno, desconsiderando-se a desigualdade e a opressão do sistema capitalista.

Não obstante a esse desafio hercúleo, a live do FESBS, buscou discutir um projeto nacional de “homo solidarius”, inspirando-se no revolucionário cubano Che Guevara, que, dentre seus escritos, propôs uma pedagogia para crianças e adultos fundamentada na construção desse homem solidário, o cidadão cubano que denominou como “Homem Novo”. Ou seja, o FESBS, como movimento, apontava que um projeto nacional de Educação precisa conciliar um projeto de homem e um projeto de sociedade, assim como não se pode visar à construção social de forma apartada da dimensão política e de pertencimento social a uma coletividade, uma nação.

O papel do Estado na Educação

Retomando o processo histórico educacional brasileiro no século XX, mais precisamente o período subsequente ao que foi denominado Revolução de 30, intelectuais brasileiros como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles, além de outros dezenove, lançaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação, texto que convocava o Estado Brasileiro a garantir a Educação Pública de forma ampla e equitativa. Esta defesa ensejou, na linha do tempo da educação brasileira, a inclusão do Artigo 205 na Constituição Federal de 1988 que veio a sedimentar a educação como direito de todos e dever do Estado, a ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.

Outros dispositivos legais, no campo da Educação, também foram imprescindíveis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que passou a zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Garantidos, o direito à Educação e os direitos humanos inegociáveis para crianças e adolescentes, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) também tiveram papel crucial, ao incluírem, no plano nacional, as juventudes, em sua diversidade, dando amplitude maior à questão do trabalho.

Tomando-se como ponto de partida para o projeto nacional de Educação a formação cidadã e a qualificação para o trabalho, tem-se duas questões importantes a se destacar: a necessidade de uma formação política que possibilite o entendimento de mundo e a atuação consciente em sociedade, e a emancipação que se dá pelo trabalho. Assim, assume-se um projeto nacional de propósito educacional, mas ainda não se qualifica a pessoa humana, os atores desse processo, considerando seus valores e um projeto humanista de sociedade.

Logo, a lacuna do âmbito da ética da sociedade brasileira permanece sem resposta: qual projeto nacional de Educação é necessário para de fato promover a emancipação, de forma colaborativa, de todos, estudantes e educadores, que compõem a escola?

Atentos a essa questão colocada em reflexão junto ao histórico educacional brasileiro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, nº 9.394/96, e o Plano Nacional de Educação – PNE, Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, tiveram como missão legislar sobre o “como” buscar definir diretrizes nacionais de forma a qualificar a Educação brasileira. Esses dispositivos definiram critérios para o processo de ensino e aprendizagem e apresentaram escolhas didático-metodológicas, fazendo indicações para as escolas públicas e privadas. Em continuidade, e rompendo com a proposta de estabelecimento de “parâmetros nacionais”, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), promulgada como lei federal em 2017, passou a indicar “o que” e “como” construir as práticas pedagógicas da escola, adotando a metodologia de ensino por competências e habilidades. 

Os desafios recentes na formação do cidadão brasileiro

Neste cenário de muitas mudanças, de âmbito estrutural e pedagógico, e frente ao vexatório processo político recente, que incluiu um golpe jurídico parlamentar, o campo da Educação brasileira passou a ser composto por correntes de concepções políticas diversas e concorrentes. Disputas de interesse e de poder entre os atores e influenciadores da Educação nos âmbitos da formação e gestão pública têm produzido ainda mais complexidade. Assim, não se tem uma identidade de cidadão brasileiro, e, em decorrência, também não há um acordo da sociedade sobre que educação, qual projeto tem que ser construído e fortalecido nas escolas do país.

Não bastasse tudo isso, como ingrediente cruel, também a serviço da manutenção do status quo, a pauta de costumes invadiu o cenário da Educação, apontando, entre educadores e projetos de educação, vilões indecorosos que “desviam”, ou mesmo “deturpam”, valores familiares em plena sala de aula. Assim, desafiados por um currículo de formação inicial que não atende às necessidades de sala de aula, por falta de condições de trabalho que incluem salários precários e ausência de recursos em muitas das escolas em que atuam, os professores brasileiros se tornaram alvo de fundamentalistas. Já estes, passaram a ouvir camadas da sociedade negligenciada pelo enfraquecimento dos movimentos de base, o que abriu avenidas para uma atuação tão nefasta à Educação que não se imaginaria possível.

Somando mais um desafio ao cenário atual, a Educação foi exposta à pandemia da Covid-19, sem o mínimo de preparação estrutural e humana, além da absoluta ausência de articulação nacional, via Ministério da Educação. O ensino emergencial remoto, acionado como opção pelas redes educacionais, requereu que os mesmos professores, sob os quais as mais insanas suspeitas foram levantadas, assumissem a responsabilidade de acessar seus alunos, fosse por meio digital, aplicativos de conversa por celular, ou mesmo de porta em porta. Da mesma forma, a estrutura nacional, que inclui até mesmo escolas sem banheiro e a maioria dos estudantes da Educação Básica sem acesso à Internet e a computadores, teve que ser testada do fechamento ao ensino remoto, deste ao modelo híbrido (presencial + remoto) e, recentemente, frente à necessidade de reabertura, a uma onda acusatória, de perdas educacionais.

Testada ao limite e diante do aumento da evasão escolar que se soma a todos os desafios aqui enumerados, a Educação brasileira precisa resgatar-se como um projeto. E se tal projeto educacional visa a formar para a emancipação pelo trabalho, que trabalho estamos a defender? O trabalho explorado, precarizado e desumano serve à nossa sociedade? A Educação é o campo de mudança de chave, aquele que não pode desconsiderar o processo histórico de luta de classes, mas que, assumindo isso, precisa ser o espaço de diálogo e reconstrução nacional para uma nova cultura do trabalho, como menciona Cláudio Nascimento, em artigo em que apresenta uma pedagogia da autogestão.

Como alternativa ao descaminho, o que se propõe é que o alicerce do projeto educacional brasileiro seja a educação para a solidariedade e para autogestão, que tenha a colaboração como valor. Ou seja, não basta uma proposta curricular, há que se ter um projeto humanista que oriente o currículo das escolas não apenas na dimensão do conhecimento, mas também para a transformação da sociedade. Os valores da Economia Solidária – autogestão, cooperação, democracia, solidariedade, respeito à natureza e valorização e promoção da dignidade do trabalho humano – assim como os princípios que a fundamentam, devem ser vistos como pilares de um projeto de educação humanista. A manutenção do modelo capitalista excludente que divide a sociedade em exploradores e explorados é o que orienta a não adoção de um projeto nacional que eduque, de fato, a população para a emancipação pelo conhecimento e pelo trabalho, para uma vida cidadã plena.

Exemplo recente desse posicionamento político do Estado brasileiro se deu no veto à Economia Solidária no currículo das escolas, no texto final aprovado da Lei Paul Singer (Lei nº 17.587, de 26 de julho de 2021), que instituiu o Marco Regulatório Municipal da Economia Solidária na capital paulista. O veto à difusão dos princípios da Economia Solidária na Educação Básica, assim como do georreferenciamento de suas iniciativas, dificulta a criação de oportunidades de se romper com o modelo hegemônico imposto na base da sociedade. Quando isso se dá em São Paulo-SP, tem-se a sinalização de qual deve ser a exigência dos movimentos sociais. “Tudo passa pela educação”, ensinamento do bairro educador de Heliópolis/São Paulo-SP, repassado pelo educador Braz Nogueira, liderança local que dirigiu a EMEF Presidente Campos Salles, é claro para todos aqueles que promovem e/ou influenciam a Educação em nosso país. E para nós, integrantes dos movimentos sociais, essa pauta também está clara? 

Paulo Freire 

A Educação precisa deixar de ser um território de disputa para se tornar um lugar de convergência, ao menos em princípios. Para tanto, há que se realizar audiências públicas, assembleias nas comunidades, abrir fóruns populares e outras ações que possibilitem a discussão de um projeto solidário para a Educação em nosso país.  Só assim evitaremos que se eternize o modelo denunciado por Freire: “o homem novo, ao superar a contradição, através da transformação social, se torna um engodo, mais um opressor de novos oprimidos”: atualmente, o modelo glamourizado pelo discurso do empreendedorismo.

O desvelar da opressão se dá por meio da compreensão crítica, e deve ocorrer simultaneamente nas escolas (Educação formal) e nas comunidades e movimentos sociais (Educação não-formal). Assim, em abordagem dialógica, com altos níveis de participação e representatividade e tendo as escolas como centros de conhecimento e articulação social, seremos capazes de promover a educação do homem novo. Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia da Esperança”, explica como o processo educativo é capaz de reverter a realidade em que vivemos: “a fraqueza dos oprimidos se vai tornando força capaz de transformar a força dos opressores em fraqueza”. 

Ou seja, só o processo educativo é capaz de romper o modelo de educação que forma para o sonho do sucesso individual, sem a conscientização necessária para o entendimento do pertencimento coletivo da vida em sociedade. A compreensão de que estamos em um mesmo planeta e que, como seres humanos, somos semelhantes que precisam ser solidários para continuar a existir, é condição necessária para a formação de indivíduos que atuem para a transformação do cenário atual, em prol da justiça social. 

Precisamos, assim como Paulo Freire nos ensinou, nos mover com essa esperança, mas construindo-a no movimento, como propôs Paul Singer, rumo à utopia, a cada passo, no cotidiano. 

* Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC/SP; mestre em Educação: Formação de Formadores, também pela PUC/SP. Pós-graduada em Aprendizagem Cooperativa e Tecnologia Educacional pela Universidade Católica de Brasília; Licenciada em Pedagogia; também possui graduação em Direito e em Administração de Empresas. Atualmente é Presidenta da Cooperativa de Professores Cipó Educação e atua como formadora e consultora educacional junto à rede pública, privada e terceiro setor

Leia Mais

Metalcoop: quando os trabalhadores tomam nas mãos o próprio futuro

Uma empresa tradicional, referência em seu segmento mas a ponto de falir; dezenas de trabalhadores desiludidos, a ponto de perderem a esperança no próprio futuro; um ultimato impensado, que adianta uma transformação na história de todos. Três partes de uma história que resultou na criação da Metalcoop, uma cooperativa de destaque no mercado, graças ao uso da tecnologia de forjamento a frio de metais em seu processo produtivo. Conheça a fantástica história desse empreendimento, através das palavras do diretor Cláudio Domingos da Silva *

A Economia Solidária é um universo que precisa ser continuamente explorado, por ser, pelo menos, tão vasta quanto o tamanho do que conhecemos por “economia” e seus segmentos.. Um desses, que ainda não havia sido explorado aqui na Revista Alternativas Solidárias, é aquele no qual trabalhadores de empresas em crise financeira (ou já falimentar) tenham a possibilidade de manter os próprios postos de trabalho, assumindo a gestão das mesmas. São as chamadas Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores, ou ERT’s. 

Levantamento feito em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada revelou que, na época, havia 67 ERT’s no Brasil, com quase 12 mil trabalhadores a elas vinculados. Boa parte delas (45%) eram do ramo da metalurgia, e nada menos que 85% delas optou por adotar a forma jurídica de cooperativa ao se formalizarem.

Trata-se de um movimento recente no Brasil, onde a Cooperativa de Extração de Carvão Mineral dos Trabalhadores de Criciúma (Cooperminas), recuperada em 1987, foi uma das experiências pioneiras. A partir de então, foram vários os exemplos bem sucedidos – incluindo, aí, o que iremos conhecer a partir de agora: a Metalcoop, recuperada em 2002 e localizada em Salto.

Entendendo o passado

Para entendermos o contexto de surgimento da Metalcoop, é necessário falar sobre a empresa que existia antes: a Picchi, uma indústria metalúrgica. Foi ela que, em 1986, contratou Cláudio como funcionário. 

“A Picchi era muito conhecida, uma referência, pois atuou 53 anos no mercado. Ela atuava basicamente na produção de peças para a indústria bélica e também para o segmento agrícola. Mas com os anos, e principalmente após o fim da Guerra Irã-Iraque (1988), a empresa começou a ter dificuldades, e precisou buscar outros mercados, como o automotivo”, explica.

O problema é que, no meio dos altos e baixos, os funcionários geralmente eram os mais prejudicados. Nos anos de crise, eram frequentes os atrasos de salário e o não-cumprimento de garantias trabalhistas, o que gerava insatisfação. Cláudio observava tudo atentamente, pois fazia parte do movimento sindical, e buscava organizar os trabalhadores na luta pelos seus direitos.

Após a segunda metade dos anos 1990, porém, a situação foi indo de mal a pior. “O faturamento da empresa despencou, e fomos descobrindo uma série de problemas e irregularidades: quase todos os funcionários tinham férias vencidas; o fundo de garantia estava há anos sem depósitos; e até mesmo fornecedores estavam sem receber. A gota d’água foi quando descobrimos que nem mesmo a companhia de luz era paga. Como uma fábrica vai trabalhar sem energia?”, questiona. 

A essa altura, a empresa havia escalado um diretor apenas para comparecer à fábrica e prestar contas a uma comissão de trabalhadores que foi criada. “Mas as reuniões com esse diretor eram inúteis. Os números que ele apresentava só estavam no papel, não eram reais. E no final, ele sempre afirmava que a empresa não tinha dinheiro para pagar os salários, então simplesmente dividia o que dizia ter para todos. Mas isso não agradava ninguém, pois esse valor nunca chegava perto de um salário mínimo sequer. Para quem recebia pouco, o prejuízo até era menor, mas quem recebia mais ficava revoltado, e com razão”, conta. 

Até que, um dia, tudo mudaria. “Me atrasei para uma dessas reuniões, e quando cheguei, ela já havia acabado. Mas conversamos, e durante a conversa eles me questionaram sobre o que a gente queria. E eu respondi, sem pensar: queremos a fábrica! A primeira reação deles foi de desdém. Me perguntaram quem seria o presidente, o que faríamos com a fábrica. Então o presidente, que nesse dia estava lá, me chamou de canto, perguntou se era sério, e após eu dizer que sim, pediu alguns dias”, lembrou.

Eles realmente responderam alguns dias depois: informaram que fechariam a fábrica e demitiriam todos os funcionários, sem pagar nada a ninguém. Para muitos, seria um alívio, pois poderiam buscar outra colocação. “Mas insistimos na ideia, e fizemos uma proposta: arrendar a fábrica, e seus equipamentos. Eles poderiam se livrar dos funcionários e das responsabilidades, e nós seguiríamos produzindo naquele espaço, agora por conta própria. A Picchi aceitou”, revela. 

Tudo foi oficializado em agosto de 2002. A Metalcoop foi fundada no dia 25, o dia em que todos os desafios começariam a ser enfrentados: a cooperativa começava com 89 pessoas, uma fábrica sem luz elétrica, uma dívida superior a R$ 500 mil, e praticamente sem faturamento, pois mal tinha clientes.

Construindo a própria credibilidade

Não foi fácil para a Metalcoop se estabelecer no mercado. Primeiro, pois havia um grande desafio inicial, e tudo dependia dele: a conta com a fornecedora de energia. “A antiga empresa já havia feito um acordo para pagar a dívida, e não estava pagando nem o acordo nem as faturas seguintes”, conta Cláudio. Mas depois de muito esforço, os trabalhadores conseguiram negociar o débito, e enfim puderam iniciar os trabalhos.

Então surgiu o segundo desafio: retomar os laços com antigos fornecedores e clientes da Picchi. Por conta da má gestão da empresa, sobretudo nos seus anos finais, muitos haviam se afastado. E quando a Metalcoop abordava essas empresas, a primeira reação era negativa. “Alguns perguntavam sobre ex-diretores da Picchi, pois não entendiam que a gestão era nossa, agora. Outros nem queriam nos atender, devido a dívidas que não foram honradas”, afirma. 

Em uma das primeiras negociações, Cláudio lembra que a própria Metalcoop arcou com a matéria-prima da peça encomendada. A empresa ainda não tinha a inscrição estadual, e todo o acordo foi verbal: o cliente confiaria que a peça seria feita, e a Metalcoop confiaria que receberia o pagamento após a entrega. Ao final, tudo deu certo, e quando a cooperativa se regularizou e passou a emitir nota fiscal, a primeira foi para esse cliente, que segundo Cláudio ainda encomenda peças com eles.

Outro grande passo da cooperativa foi a conquista, em 2004, do certificado ISO 9001. “Era uma certificação fundamental para que a gente entrasse em um mercado muito importante, o automobilístico. Tínhamos vários clientes à espera apenas de que a gente tivesse essa certificação. Com muito trabalho e ajuda, principalmente do Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores), conseguimos contratar uma consultoria. Eles queriam 14 meses para concluir o trabalho, mas houve muito esforço e em seis meses tudo foi feito”, relembra. 

O resultado foi espantoso: após a certificação, em junho, o número de encomendas explodiu, e o faturamento da Metalcoop subiu de R$ 300 mil naquele mês para mais de R$ 750 mil em setembro. Hoje, eles também contam com o ISO/TS 16949, uma especificação ISO que alinha as normas dos sistemas de qualidade automotiva existentes – brasileira, americana, alemã, francesa e italiana – dentro da indústria automotiva global.

A cooperativa seguiu crescendo ao longo dos anos, e atualmente possui uma carteira de clientes sólida e é bem estabelecida no mercado. Apenas recentemente, com a pandemia, a fábrica ficou parada por alguns meses, segundo Cláudio. “Optamos por deixar os trabalhadores em casa, mas seguimos pagando a todos. Retornamos com as atividades em setembro, depois que definimos todos os cuidados sanitários a tomar: máscaras, álcool em gel, distanciamento, entre outros. Mas quando alguém tem suspeita de covid, a pessoa é afastada, assim como quando alguém na família é contaminado”, afirma. Graças a esses cuidados, de acordo com ele, apenas duas pessoas foram contaminadas até o momento, nenhuma delas de forma grave.

A busca pela justiça nos ganhos

A Metalcoop tem uma política de retirada por funções, e um princípio firmado desde o início: a retirada mais alta nunca pode ser superior a cinco vezes a retirada mais baixa. É uma maneira, segundo Cláudio, de garantir que todos possam receber um bom valor mensalmente, mas ainda assim garantir que o empreendimento não perca para o mercado aquelas pessoas que cumprem funções mais especializadas.

Hoje, a Metalcoop conta com 33 cooperados, e segundo Cláudio ninguém retira menos de R$ 3500, complementados por previdência social, tanto via pessoa jurídica como física, auxílio alimentação, plano de saúde e outros benefícios. “Se considerarmos que temos, entre nós, funcionários com muito pouca instrução, é um ganho muito maior do que poderiam ter lá fora, em outras empresas”. No entanto, o inverso é verdadeiro: os mais qualificados acabam por receber menos do que a média do mercado.

Mas por que, então, essas pessoas continuam na cooperativa? Para Cláudio, a resposta é simples. “Aqui, trabalhamos um pouco pela nossa retirada, sim, mas um pouco também pela ideologia, e por tudo que o nosso trabalho gera, para nós mesmo e para a comunidade. É o que nos motiva”, complementa. 

O desafio de ser cooperado

Cláudio lembra de uma passagem, no início da existência da Metalcoop, que ilustra bem como pode ser desafiador conscientizar trabalhadores acostumados com uma lógica de mercado capitalista, baseada na carteira de trabalho assinada e na garantia de direitos trabalhistas, a se tornarem “donos” da própria empresa.

“Não foi fácil para todos entenderem o que era cooperativismo, e o que significava ser cooperado. Alguns não conseguiam associar a ideia de que os ganhos só viriam mediante trabalho, e que se em um mês não houvesse trabalho, por exemplo, também não haveria retirada. Eu ouvia coisas como ‘mas no mês seguinte recebemos dobrado então, certo?’” – lembra-se, rindo – “E eu explicava que não funcionava assim. Alguns desistiram no início por isso, por não entenderem ou não acreditarem mesmo.”

Além disso, implementar a disciplina que um cooperado deve ter também foi um desafio. Cláudio aprendeu na pele que certos hábitos não poderiam ser abandonados, pelo bem do dia-a-dia da cooperativa.

“Eu sempre tive um sonho: que os trabalhadores nunca mais tivessem que marcar cartão. Era algo que sempre quis poder fazer por eles. Então, quando criamos a Metalcoop, pensei: finalmente, vou poder realizar esse sonho”, lembra.

Mas as coisas não ocorreram exatamente como ele esperava: os trabalhadores, desacostumados com a ideia, não cumpriam com os horários. “Eles diziam que agora também eram donos, então podiam trabalhar quando quisessem, e eu pensava: entenderam tudo errado! Pois o dono deve dar exemplo, ser o primeiro a chegar. Então infelizmente tive que enterrar o sonho, e até hoje marcamos o cartão aqui”, afirma.

Foi algo complicado para os trabalhadores entenderem: dormir como empregado, e acordar como sócio do próprio negócio. E como, então, essa mentalidade foi modificada? Segundo Cláudio, com conscientização, e muitas reuniões.

“Temos que contar uns com os outros. Fazemos as assembleias regularmente e procuramos manter toda a transparência, para que eles vejam o resultado do próprio trabalho e entendam como é importante a dedicação de todos. Precisamos manter essa mentalidade, senão a cooperativa não anda, e a gente não pode parar”, conclui.

* Texto redigido por Daniel Keppler. Jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista

Leia Mais

Uma tecnologia solidária e emancipatória é possível?

Por muito tempo, um dos paradigmas centrais da esquerda era o de “desenvolvimento das forças produtivas”. Mas que forças produtivas? Forças que produzem o que, para quem e como? O fato é que diante de imensos “progressos” tecnológicos, a fome segue e o colapso ambiental se acelera. Contra as chamadas “forças destrutivas” do Capital, Sandra Rufino nos diz que a tecnologia não é neutra, e que a tecnologia social e a tecnociência solidária podem ser alternativas para o empoderamento dos trabalhadores na construção de outra economia.

Por Sandra Rufino *

A ciência e a tecnologia avançaram muito nos séculos XX e XXI, muitas conquistas no âmbito da saúde, telecomunicação, indústria, serviços, agricultura, entre outros. Entretanto, mesmo com tantos avanços, ainda não fomos capazes de acabar com a fome e a desigualdade. Os impactos negativos sociais e ecológicos gerados por um modelo convencional de produção são insustentáveis. Estamos nesse modelo matando e extinguindo os diversos tipos de vida no planeta, inclusive a nossa.

A ciência, com o termo originado do latim scientia (conhecimento), significa um conjunto de saberes sistematizados e aprofundados sobre algo ou alguma coisa. Já a tecnologia, oriunda do grego antigo tékhnē (técnica, arte ou ofício) e lógos (estudo), significa o estudo de conjunto de técnicas. Ao resgatarmos a essência dos dois termos, é possível perceber que tanto a ciência quanto a tecnologia não são exclusivas da academia e empresas, e sim de toda a sociedade. Mas que, ao passar dos séculos, foram sendo apossadas e, talvez por isso, temos dificuldades de reconhecer que os povos africanos, indígenas e tradicionais tenham sido capazes de grandes feitos.

A ciência está intimamente ligada com a tecnologia; boa parte dos avanços de uma foram alcançadas por meio da outra. Portanto, nosso propósito aqui é propor uma reflexão sobre que tipo de tecnociência produzimos e nos indagar: para que ela serve, para quem, como e por que ela é criada?

Os primeiros estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) com o objetivo de avaliar os impactos que a tecnociência pode trazer à sociedade datam do final dos anos de 1960 e início dos anos 1970. A motivação desses estudos e movimento foram as preocupações com a natureza e com o desenvolvimento de bombas químicas e nucleares. Criticando a crença de resultados positivos e a neutralidade da ciência e da tecnologia.

Muitos movimentos (acadêmicos e da sociedade civil) criticam o modo de produção hegemônico e buscam construir coletivamente alternativas tecnológicas que atendam às demandas sociais dos mais vulneráveis, buscando assim equidade, justiça social e desenvolvimento sustentável. 

O movimento da tecnologia apropriada (TA) começou, ou pelo menos se inspirou, na experiência da Índia na década de 1920, liderada por Gandhi com o resgate do uso das rocas tradicionais como resistência e enfrentamento a dominação inglesa em seu país (Dagnino; Brandão; Novaes, 2004). A TA, de modo geral, transfere soluções tecnológicas desenvolvidas nos países centrais para os países da periferia, oferecendo-as em versões simplificadas: de baixo custo e de fácil construção, operação e/ou manutenção (Thomas, 2009). Esse movimento só chegou na América Latina na década de 1960, mas a fome e miséria não desapareceram e as soluções de tecnologias “prontas e adaptadas” não respondiam a todas as problemáticas na América Latina. Então, houve, em meados da década de 1990, o ressurgimento de iniciativas para mitigar os problemas e para transformação social, as quais foram chamadas de tecnologia social (TS) (Thomas, 2009).

No Brasil, a TS surge no final da década de 1990 e início dos anos 2000 a partir da articulação de várias instituições (movimentos sociais, sindicatos, ONGs, universidades, gestores públicos) e que valorizavam a perspectiva popular e democrática. A tecnologia social é o conjunto de: produtos (artefatos ou serviços), técnicas e/ou metodologias reaplicáveis e transformadoras, o qual deve ser desenvolvido e aplicado na interação com a comunidade e apropriado por ela, representando efetivas soluções para a inclusão social e melhoria das condições de vida (ITS, 2004). O Instituto de Tecnologia Social define os seguintes parâmetros para o desenvolvimento da TS:

1: Quanto à sua razão de ser: visa à solução de demandas sociais concretas, vividas e identificadas pela população; 

2: Em relação aos processos de tomada de decisão: usa formas democráticas de tomada de decisão, a partir de estratégias especialmente dirigidas à mobilização e à participação da população; 

3: Quanto ao papel da população: há participação, apropriação e aprendizagem por parte da população e de outros atores envolvidos; 

4: Em relação à sistemática: há planejamento, aplicação ou sistematização de conhecimento de forma organizada; 

5: Em relação à construção de conhecimentos: há produção de novos conhecimentos a partir da prática; 

6: Quanto à sustentabilidade: visa à sustentabilidade econômica, social e ecológica; 

7: Em relação à ampliação de escala: gera aprendizagens que servem de referência para novas experiências. Gera, permanentemente, as condições favoráveis que deram origem às soluções, de forma a aperfeiçoá-las e multiplicá-las.

Uma das bases importantes para a TS é desenvolver uma solução tecnológica que tem como princípio o diálogo e a valorização dos diferentes conhecimentos (integração entre conhecimento acadêmico e saber popular). Busca contribuir para a emancipação das classes populares, por meio da apropriação do processo de desenvolvimento e uso das tecnologias.

No uso da tecnologia social, há o pressuposto da construção de soluções de modo coletivo pelos que irão se beneficiar dessas soluções. Tais agentes atuarão com autonomia, não sendo apenas usuários de soluções importadas ou produzidas por equipes especialistas, como acontece com as tecnologias apropriadas. O impacto da TS se dá no indivíduo e no coletivo. Com objetivo de apropriação do conhecimento, desde a concepção a implementação da tecnologia social demandada pelo local, podemos considerar quatro grandes impactos: 1) apropriação do conhecimento; 2) sentimento de partilha com o desenvolvimento da tecnologia e em seus resultados; 3) exercício da democracia; 4) a emancipação do indivíduo e da comunidade que poderá, não só multiplicar as tecnologias desenvolvidas, mas também ter a capacidade de desenvolvimento de outras.

O caminho até as novas tecnologias

Muitos ainda podem se questionar o quão distante as tecnologias sociais estão das chamadas novas tecnologias ou hightech. Considerando que a tecnologia social é a construção coletiva de artefatos (produtos), e/ou métodos/ técnicas que permitam impulsionar processos de empoderamento de trabalhadores e comunidades como alternativas de desenvolvimento, ela não está distante (e nem poderia) das novas tecnologias. O que vai depender dessa proximidade ou não é a necessidade dos trabalhadores e comunidades envolvidas. 

Na Comunidade de Deus, no Rio de Janeiro, por exemplo, foi necessário o desenvolvimento de TS para rádio e portal de internet comunitários. Já para a população do conjunto Palmeiras da periferia de Fortaleza que utiliza moedas sociais, o banco Palmas, para obter maior alcance dessas moedas (utilizadas nos bancos comunitários), fez-se o uso de aplicativo em rede com outros bancos comunitários para o uso da moeda social em formato digital: e-dinheiro.

As tecnologias sociais são desenvolvidas para as necessidades mais latentes das comunidades, e seus objetivos são de difusão, sem fins lucrativos, para outras comunidades necessitadas. Buscam o objetivo de bem comum e uso de todos daquela comunidade. Os valores que regem as tecnologias sociais estão ligados à cooperação e à solidariedade. Vimos em muitas comunidades, durante a pandemia, o desenvolvimento de métodos ou técnicas que podem ser consideradas tecnologias sociais, por terem como objetivo ajudar os que mais sofriam/sofrem com a pandemia e o agravamento das crises que já existiam nesses locais. A rede de mapeamento, comunicação e apoio da comunidade do Morro do Preventório, por meio de um banco comunitário no Rio de Janeiro, o Banco Preventório, e outros exemplos vinculados ao movimento das favelas, podem ser considerados exemplos desse enfrentamento e de como as tecnologias sociais podem ajudar as comunidades nas várias crises, não apenas na pandemia.

Os resultados positivos do desenvolvimento e da transformação social se tornaram visíveis e, por isso, o tema TS passou a compor como pauta para fortalecer as políticas públicas de geração de trabalho e renda a fim de atender trabalhadores(as) dos grupos populares (rurais, autônomos, informais, de empreendimentos de economia solidária (ECOSOL), povos e comunidades tradicionais entre outros).

Nos últimos 20 anos, a Fundação Banco do Brasil conseguiu criar um banco de dados sistematizando e promovendo premiações para tecnologias sociais em todo território nacional em diversos temas: alimentação, educação, energia, habitação, meio ambiente, recursos hídricos, saúde, entre outros. 

A Tecnociência Solidária

Muitas ações de TS estão vinculadas à ECOSOL, que é composta por formas de organização econômica – produção, comercialização, finanças e consumo – construídas com base nos valores e princípios como: do bem viver em equilíbrio e com respeito a natureza e a vida; da autogestão e da democracia; da cooperação e da solidariedade; da prática do comércio justo e do consumo solidário; do reconhecimento do lugar fundamental da mulher e do feminino na construção de um novo modo de produção; e da justiça a distribuição dos resultados.(Singer, 2002; FBES, 2021)

As pessoas se unem e cooperam de maneira solidária, formando os Empreendimentos Econômicos Solidários. Se organizam coletivamente, porque desta forma se tornam mais fortes para enfrentar as diversas crises (econômica, social, ambiental, saúde, educação etc.). A ECOSOL, apesar de muitas vezes crescer nas crises por ser a única opção que resta aos trabalhadores/as, é um modo de produção que emancipa a todos e todas. A ECOSOL permite a produção e reprodução da vida, o desenvolvimento sustentável, a equidade e a justiça social, além da paz. É um movimento centrado na valorização das pessoas e na luta contra as desigualdades sociais.

Na união da TS com a ECOSOL surge a tecnociência solidária. Entretanto, segundo o autor Renato Dagnino (2020), esse termo deveria substituir o de tecnologia social e de outros aparentemente semelhantes como as tecnologias de base, sustentável, responsável, inclusiva, frugal, além da inovação social, entre outros com a mesma postura política de criação de uma ciência e tecnologia alternativas. Para o autor, não devemos separar em desenvolvimento de ciência e tecnologia, pois sempre construiremos os dois conjuntamente. Sendo a construção da tecnociência solidária baseada nos valores e princípios da ECOSOL, isso permitirá a ela o desenvolvimento de uma tecnociência que busque verdadeiramente uma transformação social.

Referências

DAGNINO, Renato. Tecnociência Solidária: um manual estratégico. Lutas Anticapital. Marília, 2ª edição, 2020. 161 p.

DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: LASSANCE Jr. et al. (ed.) Tecnologia social: Uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. p. 15- 64

FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: https://fbes.org.br/

INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL (ITS). Caderno de debate tecnologia social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Raiz, 2004.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. 127p. 

THOMAS, H. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales. Conceptos / estrategias / diseños / acciones. Primeras Jornadas de Tecnologías Sociales.Programa consejo de la demanda de actores sociales – MINCyT. Buenos Aires, 2009.

* Sandra Rufino é professora associada do depto. de engenharia de produção da UFRN. Possui mestrado e doutorado em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Tecnologias Sociais pela Université Catholique de Louvain – UCL. É membro fundadora da Rede de Engenharia Popular Osvaldo Sevá (REPOS),  conselheira dos Engenheiros Sem Fronteiras – ESF Brasil, orientadora ESF Natal  e ENACTUS UFRN.

Leia Mais

O desenvolvimento local costurado pela Justa Trama

A Justa Trama conecta mais de 500 trabalhadoras e trabalhadores espalhados por cinco estados – Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rondônia e Rio Grande do Sul, atuando em rede na cadeia de processamento do algodão, gerando trabalho, renda e regeneração ambiental em seus territórios. Por meio dela, plantio, fiação, tecelagem, coleta de sementes para confecção de botões e adornos, serigrafia, bordado e tingimento formam um circuito solidário por fora da lógica capitalista desde a semente até nossos guarda-roupas. A Justa Trama mostra que costurar outra economia baseada em desenvolvimento local – diferente daquele que só extrai, impacta e desagrega – é possível.

Por Nelsa Nespolo *

Não há dúvida que a Economia Solidária (Ecosol) é uma estratégia de desenvolvimento, especialmente no século XXI e na conjuntura em que vivemos, com um governo genocida que debocha da vida humana. Agravando esse quadro, um tempo de pandemia que já matou mais de 400 mil brasileiras e brasileiros que estavam cheios de vida. A consequência disso são os mais de 14 milhões de pessoas desempregadas e 6 milhões que desistiram de procurar trabalho, os 27,2 milhões de brasileiros (as) na miséria absoluta, vivendo com menos de R$ 8,20 por dia e, também, a explosão no número de bilionários do mundo – cerca de 660 novos super-ricos, que totalizam 2755 pessoas possuidoras de mais de 1 bilhão de dólares no mundo.

A Ecosol tem uma trajetória ainda curta de vida, porém se fortalece especialmente a partir da década de 1990, quando haviam cerca de 869 empreendimentos econômicos solidários (EES). Em 2020 pulamos para quase 20 mil empreendimentos. A Ecosol cresceu não só no Brasil, mas na América Latina, surgindo com uma influência forte da Igreja Católica, especialmente da Teologia da Libertação, e se fortalece sobretudo com governos populares e suas políticas públicas.

Apesar das várias experiências de políticas públicas, majoritariamente a nível dos municípios, em âmbito nacional a Ecosol surge com força a partir de 2002 com a eleição do presidente Lula, um trabalhador metalúrgico que tem conhecimento da Ecosol e do cooperativismo e cria a partir da demanda do movimento, uma Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES). Foi um período de fortes discussões, com dificuldades de lidar com o novo cenário em dois aspectos: de um lado está na gestão pública, que em alguns momentos se sente no controle das definições, e do outro lado está o movimento querendo fazer valer suas posições.

Apesar de muitas vezes as discussões serem acirradas, tal fato reflete também o bom debate. Não foram poucos os momentos de confronto e do não consenso como por exemplo a definição das organizações que comporiam o Conselho Nacional de Economia Solidária, ou na dinâmica do primeiro encontro nacional de EES e até mesmo a proposta de inclusão ou não do artigo 7º na nova lei das cooperativas de trabalho. Tarefa difícil.

Por que? Será que temos interesses diferentes? Ou será que temos visões diferentes? O papel do Estado é visto diferente por quem esta na gestão em relação aos que estão na ação?

A construção

A busca de fazer valer uma outra Economia acontecer nos trouxe ao encontro das políticas públicas, frente que veio com força nos últimos 20 anos também na América Latina, especialmente com a eleição de governos populares em seus países. A maioria das constituições ou leis destes países não contemplam a Ecosol, e a formação das equipes de governo nem sempre estão convencidas quanto a Economia Social e Solidária.

Quem ocupa esses postos na gestão pública geralmente são pessoas que com muita força e boa vontade abrem caminhos para o fortalecimento da Economia Solidária, encontrando dificuldades para construir políticas de fomento direto aos EES, tais como: fundos de Economia Solidária, programas de compra de equipamentos e compras públicas, construção de infraestrutura e capital de giro. Na maioria das vezes se prioriza políticas de convênios de formação e articulação com entidades e Universidades. Com isso temos muitos processos de formação, e que muitas das vezes ficam aquém da prioridade dos EES que necessitam produzir, comercializar, representar, administrar, articular e ainda participar de momentos de formação. Essa formação geralmente ou quase nunca acontece dentro dos EES e esses precisam se deslocar. Isso não contribui para uma formação dos vários trabalhadores e trabalhadoras, restringindo tais iniciativas a um ou mais associados, além de também não ajudar trazendo a entidade ou universidade para mais perto da realidade de cada EES.

Muitas vezes, os conceitos aprofundados nos momentos de formação não são aplicados na prática do dia a dia, pois o sistema capitalista nos coloca sempre em contradição, inclusive no momento do consumo. E neste sentido está a maior contradição: consumir da Ecosol, do orgânico, do agroecológico. Enfim, não é uma prática fácil.
Política de Estado ou Política de governo?

A Ecosol consolidou um conceito: “precisamos de políticas de Estado para ter continuidade pois as políticas de governo se acabam quando troca de governo”. Quem já não ouviu esta afirmação? Será ela contraditória? Seria tal afirmação verdadeira?

As políticas de governo se apresentam em formato de programas, as políticas de Estado se apresentam em formato de leis. Portanto, cabe aos trabalhadores (as) lutar pela conquista das leis, lutar pela aplicação e lutar pela manutenção. Lutar e lutar sempre, pois a garantia de essas políticas acontecerem é se tivermos governos comprometidos com as causas dos trabalhadores, as causas da Ecosol. E ainda assim, devemos continuar lutando, já que esta é a diferença entre as conquistas e as derrotas. Depois desta caminhada, podemos afirmar que a Ecosol, para se consolidar e avançar, precisa de políticas de Estado e de governos populares. É esse encontro que faz a diferença e promove o desenvolvimento que a Economia Solidária defende.

Uma Justa Trama construindo economia e vida

A caminhada da Ecosol fortaleceu o conceito de organização. Só conseguiremos avançar para esta estratégia de desenvolvimento se nos articularmos em redes ou cadeias. Redes são o encontro desses EES que estão em uma mesma área ou setor econômico atuando: como é uma rede de artesanato, ou de costura ou mesmo de bancos comunitários. Cadeia é quando juntamos todos os elos em processo de produção: podem ser locais, como é a cadeia do mel, ou podem ser nacionais, como é a cadeia do algodão. Contudo, o que queremos com essa estratégia é fortalecer a Ecosol, e este modelo de desenvolvimento que não concentra renda, que produz cuidando do planeta e da vida.

Neste conceito temos a Justa trama: a cadeia do algodão agroecológico que surgiu a partir da experiência de produzir de forma coletiva 60 mil sacolas para o Fórum Social Mundial (FSM) em 2005. A Justa Trama, assim, amadureceu nos espaços da Unisol Brasil e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.

Participam mais de 500 trabalhadores do Nordeste, Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil. Portanto, o algodão é plantado no Ceará e Mato Grosso do Sul, de forma consorciada e ecológica. Sem uso de agrotóxicos no plantio, toda a preservação é feita por meio de defensivos orgânicos, compostagens e com produtos naturais como o Nim. Os plantios agroecológicos consorciados são compostos por multiculturas como o gergelim, milho e o feijão, preservando o meio ambiente e a sustentabilidade dos agricultores. Paralelo a isso, nos últimos três anos o Governo Federal já liberou mais de 1100 agrotóxicos que antes eram proibidos e recusados em vários lugares do mundo.

Assim preservamos a vida e o planeta, já que o algodão convencional é responsável por 25% dos agrotóxicos do mundo aplicados nas plantações. Esse processo de preservação é feito também na fiação e tecelagem em Minas Gerais e na confecção no Rio Grande do Sul, mantendo os cuidados com o produto para que não se contamine com o convencional, além de serem aproveitados todos os retalhos. As sementes da Amazônia de Rondônia, que são nossos adereços e botões, são beneficiadas ecologicamente.

Não há intermediário ou atravessador nesta cadeia solidária e, portanto, todos recebem de forma justa, ou seja, desde o agricultor até a costureira todos ganham acima do que o mercado convencional paga. Assim, todas e todos que estão na cadeia fazem acontecer a distribuição de renda. O preço final de comercialização tem um valor agregado para garantir a sustentabilidade da cadeia, e no final do ano realizamos o balanço, onde parte das sobras são divididas entre os cinco elos, reforçando o desenvolvimento local das cinco regiões.

A Justa Trama é uma rede cooperativa de segundo grau formada por associações e cooperativas da Ecosol que realizam as várias etapas. A Justa Trama também é a marca das roupas, desde camisetas, saias, blusas, calças, bermudas, vestidos e colares, bonecas, bichos e adereços.

Resumindo, os principais valores desta cadeia é adquirir um produto que não tem agrotóxicos, com uma tecnologia limpa em todo o processo, diminuindo o uso dos já citados 25% de agrotóxicos que são jogados no planeta através do algodão convencional. Outro valor primordial é não ter atravessadores, o que permite que, desde o agricultor até a costureira, todas e todos ganhem de 50 a 100% pelo seu trabalho em relação ao valor de mercado. Assim, chegamos ao consumidor final em um valor justo e possível de ser adquirido inclusive pelos que estão no processo produtivo.

Precisamos do compromisso de cada um com a vida, a sua e a de todas e todos, pois só haverá ampliação do plantio do algodão agroecológico se todos optarem por uma forma de vestir ecologicamente correta, e só haverá consciência ecológica se também houver os que preconizam e construam consciência crítica sobre seu consumo. Precisamos intensificar as campanhas de informação ao consumidor, informando-o sobre quais são as fontes de onde vem o que ele vai vestir, assim formando um ciclo que transforma vidas.

São seis os elos dessa cadeia que forma a rede de desenvolvimento local da Justa Trama: Associação Adec, conjunto de quatro municípios do sertão do Ceará que cultivam o algodão; a Associação – AEFAF, dois núcleos de Assentamentos do Mato Grosso do Sul que cultivam o algodão rubi; a Coopertextil, cooperados por onde passa todo o acabamento dos tecidos, de Pará de Minas/MG; a Cooperativa Univens, costureiras que confeccionam, bordam, tingem e serigrafam as peças em série e fica em Porto Alegre/RS; a Cooperativa Açaí, artesãos que beneficiam as sementes e botões que são aplicados nas peças, e produzem bonecas de pano em Porto Velho/RO; e o Coletivo Inovarte, que produz os bichos de pano e jogos pedagógicos, também no Rio Grande do Sul.

Porque não fazemos todas as cadeias curtas e locais? Porque muitas vezes não existem empreendimentos no local para as várias etapas de produção dos produtos que consumimos, e na maioria das vezes nos falta o total conhecimento da tecnologia e mesmo os recursos de investimento para implantar todas as etapas próximas.
Essa caminhada da Ecosol já não deixa dúvida que não são as distâncias que inviabilizam, nem os custos de logística. As maiores dificuldades geralmente se localizam em nossa capacidade de articulação, investimentos e garantia de comercialização. A Justa Trama percorre 5 mil quilômetros do Brasil, e remunera de forma justa todos os processos, e mesmo assim, conforme pesquisa da PUC do Rio Grande do Sul, pratica o menor valor de venda de roupas de marcas orgânicas.

Na Ecosol, a grande maioria dos empreendimentos não têm domínio sobre as várias etapas: realizam a etapa inicial da cadeia como é o caso dos EES que estão na agricultura, e depois o mercado ganha realmente com a transformação e comercialização. Outro exemplo são os empreendimentos urbanos que geralmente estão na ponta final da cadeia e sofrem todo o tipo de dificuldade, já que a agregação de valores se concentrou nas etapas onde estão empreendimentos capitalistas, como é o caso da confecção, da construção civil e da alimentação.

A Ecosol, que hoje tem mais de 20 mil empreendimentos da Economia Solidária em quase todos os setores econômicos, urge construir uma estratégia de aproximação para esta outra economia, – a nova economia -, a que distribui renda, melhora a vida do povo, garante direitos, gera desenvolvimento local e preserva o meio ambiente. A economia gerada pelas pessoas e para as pessoas. A economia que respira vida. Que anseia pelo Bem Viver, pois como diria Paul Singer:

“A Economia Solidária se constrói nos interstícios que as crises inerentes ao capitalismo deixam desocupados. São empresas em crise “tomadas” pelos seus empregados e transformadas em cooperativas; terra deixada improdutiva que via reforma agrária é entregue a trabalhadores, que a cultivam em empreendimentos solidários; é o lixo que infesta as cidades que é reciclado por cooperativas de catadores, etc. O maior desafio é motivar e resgatar a multidão deixada à margem, fazendo-a ver que sua emancipação seja possível, desde que se tornem protagonistas dela.”

* Nelsa Inês Fabian Nespolo é costureira, militante da Economia Solidária, diretora presidente da Cooperativa Univens, da Justa Trama, da Unisol RS, sócia fundadora do banco comunitário Justa Troca e escritora dos livros Tramando Certezas e Esperanças e as Tramas da Esperança.

Leia Mais
Abrir Chat
Fale Conosco!