A Educação libertadora que instrumentaliza a autogestão de pessoas 

Pensar a Educação como ferramenta libertadora de pessoas não deve ser um sonho intangível. Não só. Mais do que isso, a ação-reflexão no campo educacional é demanda ontológica e urgência civilizatória. Destacamos que, nesse conceito de civilização, fazemos referência a grupos sociais que olhem além de seus interesses restritos, que percebam a fundamental necessidade de pensar solidariamente o ser humano, que compreendam que humanismo é conhecimento, prática e método. Em tempos de ameaças sistêmicas e continuadas à cidadania brasileira, torna-se um imperativo ético pensar em práticas que priorizem tanto o senso comunitário – aliado à autogestão das pessoas – quanto a defesa da dignidade humana. É sobre isso, e muito mais, que falam Almir José da Silva* e Flávio Oliveira Roca** nesse texto

Educar implica em libertar

O Brasil atual é um celeiro doentio de mazelas e ódios, sobretudo contra pobres, pretos e periféricos. Mais do que uma infelicidade, é um projeto capitalista a combinação de aviltamento, alienação e opressão exercida diariamente contra estudantes, trabalhadores e famílias, que sofrem esse controle sufocante em escolas, casas, igrejas e fábricas. 

Enxergar essas amarras não é uma percepção espontânea; é tarefa que exige da pessoa atenção, conhecimento e autoconhecimento. E é nessa urgência no olhar que desponta o ambiente educacional: espaço que pode ser de libertação – quando impregnado do pensar libertador –, mas que também pode apertar ainda mais as amarras – quando burocrático e indiferente.

Fica claro que a prática da Economia Solidária exige que as pessoas que foram formadas no capitalismo sejam reeducadas. Essa reeducação tem de ser coletiva, pois ela deve ser de todos os que efetuam em conjunto a transição, do modo competitivo ao cooperativo de produção e distribuição. […] Essa visão não pode ser formulada e transmitida em termos teóricos, mas apenas em linhas gerais e abstratas. O verdadeiro aprendizado dá-se com a prática, pois o comportamento econômico solidário só existe quando é recíproco. (SINGER, 2005)

Como será abordada adiante, a estratégia cínica e alienante de muitos dos detentores do poder estatal, que questiona e achincalha sistematicamente o pensamento e a práxis de Paulo Freire, impõe-nos a necessidade urgente de buscar o “inédito viável” freireano, de sedimentar os alicerces de uma Educação que torne as pessoas solidárias e conscientes de seu poder social.

O mundo, agora, já não é algo sobre que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua Humanização. (FREIRE, 2013)

Sob essa perspectiva libertadora, a constituição de coletivos de Economia Solidária tem revelado a concretude de capacitar pessoas invisibilizadas ou desassistidas por políticas públicas, dando-lhes cidadania, cobertura e autonomia na gestão de suas vidas. A EcoSol mostra-se uma experiência efetiva na proposição de uma sociedade diferente, em que seus integrantes percebem que o engajamento coletivo em demandas e ações potencializa os bons resultados colhidos por todo o grupo.    

Exaltar o “eu” é uma armadilha neoliberal

Em um contexto político conturbado, como esse em que nos encontramos, é fundamental compreender as estratégias por trás dos jogos de poder e as intencionalidades das ações, pois são dessas que advêm os maiores perigos, por conta da natureza manipuladora que os objetivos individualistas exercem sobre sujeitos ou grupos. Assim, o fenômeno que experimentamos de desinteligência intencional, tem por característica um movimento bipolar, que não se encontra apenas na compreensão dos transtornos, mas na desestabilização psíquica e social. O movimento desta desinteligência é marcado por um compasso frenético de jogar ao público uma torrente de informações dúbias ou esmigalhadas com referências duvidosas, quando divulgadas. Em um trabalho orquestrado, outra tempestade acomete os meios de informação com novas teorias ou que contradizem parcialmente ou totalmente a versão anterior.

Essa estratégia gera algo muito valioso hoje: o engajamento. Contudo, não se encontra a compreensão sartreana de um processo em que o sujeito, em seu empenho ético e político no exercício livre de sua vontade, faz suas escolhas para a transformação de si e de seu mundo. O processo de engajamento que se encontra é uma subversão do sujeito, que deixa de ser protagonista em sua leitura de mundo e passa ao papel de mero consumidor de informação com falsas participações em escolhas já postas. Esse pretenso engajamento exige um pedágio: o acesso às informações que servirão para alimentar um ciclo perpétuo de demanda e consumo.

Ademais, a situação concreta de opressão demonstra uma dualidade existencial em que as pessoas hospedam em si mesmas uma combinação de revolta e alienação, pois sentem as consequências como vítimas do sistema e, ao mesmo tempo, não tomam para  si o processo de transformação de seu status quo. Decerto, a situação redunda em fatalismo e imprime uma sensação de impotência. Daí a necessidade de investimento em uma Educação para a emancipação, que ultrapasse componentes curriculares e saberes tecnicistas. O compromisso com a libertação comunga com a construção de uma sociedade que, em suas bases, declara a solidariedade e o bem comum como realizações da justiça. Faz-se necessária a superação de um contexto em que a disputa de poder é centro das ações políticas com forte teor individualista, em que grupos e corporações vendem a ideia neoliberal do triunfo do “eu”, que esmaga as ações coletivas, destruindo o espaço de civilidade.

A constituição da cooperativa Cipó

Tendo como motor elementar o fundamento de que a educação liberta, um conjunto de nove educadores da Baixada Santista organizou-se para pensar, estruturar e constituir a Cipó: uma cooperativa que transporta a concepção emancipadora de Economia Solidária para a pesquisa escolar. Nesse contexto, a Cipó realça a autogestão humana sobre a gestão de negócios; estuda a efetivação de currículos que libertem instituições e pessoas das amarras tecnicistas; colabora para a efetivação de uma gestão escolar democrática e, essencialmente, dá o testemunho para outros coletivos de que a Economia Solidária é viável, justa e necessária. 

Os cooperados da Cipó têm formações acadêmicas distintas, atuantes em diversas áreas do conhecimento, pesquisa educacional e segmentos das instituições escolares. Essa multiplicidade formativa é decisiva para a consecução dos trabalhos da cooperativa, uma vez que hierarquias e distinções são substituídas por partilha democrática de análises, opiniões e gestão de recursos. Os bons resultados são fruto de um trabalho coletivo e os reveses absorvidos de forma igualmente solidária, não existindo, portanto, culpados ou protagonistas. Assim pontua Paul Singer (2005):

De forma geral, há uma inversão completa de situação, quando alguém deixa de ser assalariado e torna-se cooperador. Enquanto assalariado, suas escolhas eram extremamente limitadas, reduzidas quase sempre a ficar ou deixar o emprego. […] Quando se torna cooperador, ele passa a ser membro de um coletivo, encarregado de tomar tais decisões.

É particularmente reconfortante verificar que ainda há espaço para criticidade, reflexão e engajamento social em um cenário predatório como o da administração de escolas e recursos educacionais. É fundamental acreditar que o sucesso de um estudante ou de uma instituição não reside apenas em critérios de desempenho ou ranqueamentos. Isso é pouco e é ofensivo à cidadania. Desde sua criação, a cooperativa EcoSol Cipó concebe a verdadeira Educação como dinâmica, libertadora, solidária e merecedora de contínuos e criteriosos estudos. 

A Educação como libertação

É urgente reconhecer a escola como um espaço social de primeira grandeza, terreno fértil para fomentar uma visão de humanidade mais justa e solidária. Enxergar a instituição escolar como simples depósito de gente e saberes estáticos presta-se mais à ideologia neoliberal de alienação e exploração humana.            

Ao tecer a relação entre o campo do fazer educação com o da condução da própria existência, esse saber torna-se a própria realidade; a presença da dicotomia entre o pensar e a  vida desaparece e a proximidade com a libertação autêntica descobre-se como um fazer permanente. A vida sugere muito mais do que uma simples adesão a projetos, mas uma participação engajada de todos os sujeitos que escrevem a história.

É difícil responder completamente às inúmeras indagações que surgem quando nos propusemos a discutir uma Educação libertadora e a autogestão de pessoas. Regressamos às bases teóricas e tratamos o contexto por meio de uma leitura panorâmica, embora o caminho nos exigisse uma jornada mais longa e amparada por inúmeros pensadores e atores sociais que atuaram e ainda o fazem em suas redes sociotécnicas. Acreditamos ser necessário ir além, mas, nesse mundo provável e rico de possibilidades, cabe-nos instigar e propor o debate franco a partir da realidade concreta, escapando da inércia e dos dogmatismos infrutíferos. Desse modo, poderemos crer (ou esperançar) que nossas ações ulteriores contribuirão para o traçado de um futuro sustentável, solidário e diferente do atual.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 54 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.SINGER, Paul. A Economia Solidária como ato pedagógico. In: KRUPPA, Sonia (org). Economia Solidária e Educação de Jovens e Adultos. Brasília: Inep, 2005.

* Almir José da Silva:  professor de Filosofia, pedagogo . Integra a cooperativa Cipó Educação, integrante dos FESBS (Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista) e coletivos Ecosol da Baixada Santista.Pesquisador – grupo de estudos Filosofia e Educação no Espaço Monica Aiub. Filosofia, Arte e Cultura;

** Flávio Oliveira Roca:  professor de Química e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Integra a cooperativa Cipó Educação, o mandato coletivo Santos Progressista (Partido dos Trabalhadores) e coletivos EcoSol da Baixada Santista e do Estado de São Paulo. 

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Associativismo e cooperativismo no meio audiovisual: um caminho necessário

O cinema é uma linguagem artística que envolve espaço (projeção de imagem em uma superfície) e tempo  (movimento e ritmo), como afirmou o italiano Ricciotto Canudo em seu Manifesto das Setes Artes (1923), ao declarar em seu sistema que o cinema seria a sétima arte. Mas além disso, o cinema também é um dos elementos do audiovisual, um conceito que abrange tudo o que envolve elementos visuais e sonoros, como conteúdos televisivos, videoclipes, entre outros. E quem produz todas essas obras, muitas vezes, acaba sendo vítima de um cenário cada vez mais precarizado e de desrespeito ao profissional e seus direitos. Nesse texto, Eduardo Ferreira* e Vitória Felipe** falam sobre essa realidade, e sobre como a associação e a cooperação entre trabalhadores podem ser um caminho possível para mudá-la.

Para a produção de um filme publicitário, um filme de ficção ou documentário, um videoclipe, uma novela ou um vídeo para um canal do YouTube; é necessário o trabalho de uma equipe. Por isso é possível afirmar que o audiovisual só acontece coletivamente, a partir do trabalho de várias pessoas: produtores, roteiristas, fotógrafos, elenco, editores, diretores, entre muitas outras funções necessárias para o processo criativo.

No entanto, ainda que seja muito poética a visão da arte do coletivo, o dia a dia do mercado é composto por muita hierarquia, longas jornadas de trabalho e um cenário marcado por freelances, pejotização, contratos precários, individualização e precarização das relações de trabalho. A cultura, de um modo geral, vem sendo disputada pelo perigoso discurso do empreendedorismo. Mas a economia solidária vem se apresentando como um importante contraponto a esse modelo de relação de trabalho, especialmente por respeitar as relações coletivas que são a base do audiovisual!

O atual cenário do audiovisual no Brasil

O setor audiovisual brasileiro movimenta mais de R$ 25 bilhões por ano e tem um crescimento anual aproximado de 8,8% de acordo com a Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Isso inclui desde pequenas produções até longas-metragens, que podem envolver o trabalho de dezenas de profissionais para a sua realização, muitas vezes em jornadas diárias de mais de 8 horas. 

Não é difícil de imaginar que muitos desses profissionais, mesmo com a forte atuação dos sindicatos, tenham seu trabalho explorado e muitas vezes mal remunerado. Para além da remuneração, outra questão recente vem contribuindo para a escalada da precarização da força de trabalho dos profissionais de audiovisual, sempre sob a justificativa de “minimizar custos”: a famosa “pejotização”, onde os profissionais são “convidados” a abrir suas MEIs (Micro Empreendedor Individual) e prestar serviço como pessoa jurídica. 

Ou seja, para receber seus cachês, o profissional que passa a ser contratado por empreitada, mesmo em projetos de longa duração, precisa emitir nota fiscal. Dessa forma, a produtora contratante passa a pagar menos encargos trabalhistas e, de quebra, se sente livre para impor a esses profissionais jornadas de trabalho nos sets de filmagem que podem chegar a 12 horas por dia, seis dias na semana – ou mesmo mais que isso. A produtora contratante ganha, pois economiza no orçamento e seus profissionais trabalham mais, porém o profissional perde duplamente, pois além da exploração diária no trabalho para o qual foi contratado, fica alheio a muitos dos direitos que teria se fosse contratado via CLT. Para piorar, essa prática o condena a sempre depender de um próximo projeto para voltar a ter uma remuneração, o que a médio e longo prazo o força a ter que aceitar condições de trabalho e cachês ainda mais precarizados.

É uma realidade totalmente oposta ao que se vende no mercado a respeito, contrastante com a ideia totalmente romantizada da “pejotização”. Nela, o profissional se tornaria um empreendedor, e nessa condição ele teria maiores chances de “vender” seu serviço no mercado, atendendo a diversas produtoras diferentes, e assim se reinventando e crescendo com sua própria empresa. Mas essa ideia ignora o fato de que um bom profissional nem sempre será um bom empreendedor, e que isso não muda com a simples obtenção de um CNPJ.

Entender essa situação é relevante, pois para que possamos compreender a importância dos empreendimentos autogestionários é necessário entender como muitos profissionais decidiram subverter a lógica capitalista, deixando de prestar serviços de forma explorada para grandes produtoras e passando a investir em seus empreendimentos, trabalhando como coletivos, pequenas sociedades e cooperativas. Vale lembrar, como dito anteriormente, que agora grande parte desses profissionais já são pessoas jurídicas, logo, porque não unir o útil ao agradável?

As alternativas para além do mercado: exemplos que vêm da Baixada

Logo após compreender essa realidade, a grande dúvida deve ser: ao optar por ser um pequeno empreendimento de audiovisual, dificilmente será possível produzir um filme, atender agências de publicidade ou até mesmo produzir conteúdo diversificado nas redes sociais, certo? Na verdade, não é bem assim!

É claro que um pequeno empreendimento, sendo ele autogestionário ou não, não terá acesso a fundos de financiamento como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), por exemplo. Mas é possível produzir começando de baixo: primeiro se estruturando, depois se planejando e se desenvolvendo – o crescimento é consequência. Dessa forma, sim, um pequeno empreendimento audiovisual, sendo ele autogestionário ou não, pode produzir um longa-metragem, uma série para plataformas de streaming, conteúdos diversificados para as redes sociais, filmes publicitários e até mesmo programas de TV.

Na Baixada Santista, temos exemplos disso. Um deles é o coletivo audiovisual autogestionário Noise Coletivo, da cidade de São Vicente. Fabiano Keller, integrante do grupo, falou um pouco sobre o empreendimento:

Durante um curso de cinema, juntamos um pessoal e formamos o coletivo, com ideia de realizarmos produções autorais, onde as funções seriam exercidas em sistema de rodízio, ou seja, em cada projeto os membros atuariam em funções diferentes, para exercitar o conhecimento e pegarmos experiência em diversas áreas. Hoje, cerca de 9 anos depois, algumas pessoas se afastaram, outras chegaram agregando, e continuamos com esse ideal de coletividade em todos os projetos em que nos envolvemos”, afirma.

Outra experiência de empreendimento autogestionário, também da cidade de São Vicente, é a Tumulto Rec, que teve seu início após o videomaker Andrey Haag, que trabalhava em uma produtora audiovisual de casamentos, ser convidado para produzir um fashion film e um videoclipe.

Depois desse videoclipe eu comecei a receber várias mensagens, como por exemplo ‘Nem parece que foi o primeiro!’, o que achei muito bom… muitas pessoas querendo que eu trabalhasse com elas… e (ali) eu acho que eu consegui entender com que eu quero trabalhar, pra onde eu quero ir”, diz Andrey.

Apesar de ter se encontrado, Andrey continuou trabalhando na produtora audiovisual de casamentos, realizando suas produções em paralelo, mas como a forma de contratação era por trabalho realizado e rendimento, ao focar nos videoclipes, o rendimento de Andrey despencou na produtora de casamentos e no fim veio a notícia. “Aí um belo dia minha chefe me chamou e falou assim: ‘Você já foi um funcionário que agregou ideia nova, você pesquisou coisa nova, só que é isso, agora a sua produção está caindo, você não tá mais conseguindo mais dar conta’, e no meio disso ela me soltou: ‘Sabe por que você não vai crescer na vida? Porque você não gosta de coisa certa, você gosta de tumulto’”.  

Foi nesse momento que Andrey percebeu que era isso que precisava, desse “tumulto”, de ter algo com a sua cara e se dedicou integralmente ao seu empreendimento que veio a se chamar Tumulto Rec, hoje em parceria de Fê Góis, onde atuam de forma autogestionária e atuando em projetos de impacto social com grande relevância na Baixada Santista.

O trabalho desses coletivos ainda é importante por mostrar que empreendimentos audiovisuais autogestionários não precisam necessariamente produzir somente conteúdo autoral. A Noise Coletivo, por exemplo, define seu objetivo profissional da seguinte forma: ”Atuar em todas as áreas do audiovisual, desde projetos autorais que ainda desenvolvemos, quanto videoclipes, institucionais, e conteúdo para redes sociais. Temos uma preferência por projetos que tenham algum apelo social, pois acreditamos na força do audiovisual como ferramenta de conscientização e transformação. O coletivo hoje é formado por 4 integrantes, onde todos têm total liberdade de expressão e a mesma força de decisão. Quando chegam novos projetos, nos reunimos para avaliar e criar em conjunto”.

A experiência do Coletivo Catarse em Porto Alegre

Nos distanciando da Baixada Santista, conhecemos o Coletivo Catarse, uma cooperativa de comunicação localizada em Porto Alegre, que trabalha com projetos audiovisuais e podcasts. O empreendimento, segundo suas próprias palavras, ”desenvolve seus trabalhos a partir de uma perspectiva de comunicação integrada, transdisciplinar e com características de produção e compartilhamento de conhecimento, fomento de redes e formação com caráter articulador e mobilizador”.

O Coletivo Catarse se destaca por ser um exemplo de iniciativa oficialmente formalizada como cooperativa. Seu caso foi inspiração para a mudança na Política Nacional do Cooperativismo, que em 2012, legalmente liberou a formação de cooperativas de trabalho com apenas sete associados, pela Lei N°12.690/2012.  

Com 11 cooperados e um currículo com mais de 500 curtas, médias, longas metragens, videoclipes, reportagens, cobertura de eventos e outras produções, o Coletivo se mostra como uma alternativa dentro do mercado audiovisual que conseguiu ter sustentação financeira e produzir trabalhos autorais, seguindo um modelo autogestionário.

A autogestão é uma alternativa

A autogestão dentro de coletivos audiovisuais é recorrente, tendo em vista que há um circuito cinematográfico independente resistindo há décadas. Mas o engajamento dentro da Economia Solidária, de modo a reconhecer e adotar seus princípios é menos comum dentro da área. É um cenário que deve mudar, pois a Ecosol é uma solução sob medida para o profissional de audiovisual que quer valorizar seu trabalho, e construir projetos coletivamente.

Essa é uma importante reflexão, pois, como já dito, mesmo diante de uma produção coletiva, ainda há exploração nas relações de trabalho no mercado tradicional, realidade que se aprofunda na atual conjuntura e sob um governo neoliberal e autoritário. Mas o cooperativismo, que propõe uma relação equânime baseada na autogestão e na humanização nos seus ambientes, nos permite eliminar as cadeias tóxicas dessa corrente. 

Contar com cada vez mais profissionais e empreendimentos audiovisuais dentro das redes de Economia Solidária Brasil afora é a melhor maneira que temos de tirar o trabalhador da invisibilidade, proporcionando participação coletiva na tomada de decisões e criação – uma premissa básica para conteúdos inovadores  e críticos. Além disso, para criar outra economia será preciso criar também um setor de audiovisual autogestionário. Essa transição é, portanto, necessária!

* Eduardo Ferreira: Diretor Audiovisual da Orvalho Filmes. Produziu e dirigiu inúmeros curtas-metragens selecionados em festivais nacionais e internacionais, dentre eles os premiados Pique-Esconde e Anseios que permeiam meus tempos de paz; além de dirigir diversos comerciais e filmes institucionais;

** Vitória Felipe: Formada em Licenciatura em História pela Universidade Católica de Santos (Unisantos), onde pesquisou sobre Patrimônio Negro. Cursou Cinema nas Oficinas Querô, onde iniciou seu contato com audiovisual e dirigiu o curta-metragem “ANA”. Atualmente é cooperada da Livres Coop.

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Rede Livres:  Empreendimento Econômico Solidário para além do crescimento

Uma rede de produção e consumo, baseada em valores de uso, e não valores de troca, tornando-se interessante como modelo de empreendimento econômico solidário, fundamentado nos conceitos de decrescimento ou mesmo de um “socialismo sem crescimento” e voltado a recolocar a economia sob os limites da biosfera, focando em redistribuição radical de riquezas com paralela regeneração ecológica. Esse é o Livres, uma Rede agroecológica explicada nessa matéria por Daniel Keppler* e Guilherme Prado**. 

Neste momento a Rede Livres formaliza um de seus braços como cooperativa e reconfirma seu compromisso em impulsionar um modelo econômico que não se baseie no lucro, mas na boa vida com a paralela regeneração de nossa biosfera. A, agora, Livres Coop – Rede Agroecológica de Produção e Consumo, nasceu a partir da destruição ecológica de uma planta da Shell em Paulínia que impactou a vida de milhares de pessoas na região.

Assim, podemos dizer que o nascimento da Rede Livres se origina da base do Sindicato dos Químicos de Campinas e Região que propuseram, de alguma forma, uma prática de decrescimento tático: “que decresça a economia envenenada do agrotóxico, para que cresça a economia agroecológica”. Mais tarde, o movimento se expande para outros lugares como São Paulo, Porto Alegre e Baixada Santista. E foi precisamente em Santos que se aprofundou como mais que um Empreendimento Econômico Solidário (EES), tornando-se uma plataforma solidária. 

Atualmente, a Livres Coop planeja democraticamente seu circuito solidário – desde a semente até a entrega. Dispondo de cerca de 170 consumidores conscientes com cestas semanais, quinzenais ou mensais, o projeto é um sucesso e uma prova de que há outras maneiras de se apropriar de alimentos saudáveis sem que seja através do dito “livre mercado”. Mas, ter a solidariedade em seu cerne e não a ideia de lucro, não é o único critério que torna a Rede Livres um EES necessário para uma economia do decrescimento ou do socialismo sem crescimento. A Rede é necessária na busca por uma bioeconomia, pois é toda voltada a abastecer necessidades dos atores e atrizes que nela se envolvem, preenchendo uma série de critérios éticos, não buscando meramente o escalar de suas atividades econômicas. 

Planejamento democrático da produção em comunidade

Nas experiências do dito Socialismo Real, por vários motivos, mas principalmente por limitações do imaginário, da conjuntura política e econômica ou de dispositivos tecnológicos apropriados, o paradigma da expansão da produção prevaleceu em detrimento do paradigma da redistribuição radical focada no todo necessário para a boa vida, além da preservação dela no planeta, seja para os seres humanos ou não humanos. 

Isso, claramente, é menos complexo de ser buscado em experiências de movimentos sociais. Mas é justamente o que o Livres pratica: uma produção planejada democraticamente a partir das necessidades de sua comunidade, baseada no mínimo de desperdício possível, nos preços mais acessíveis possíveis para seus consumidores conscientes, junto da maior segurança econômica para os agricultores e produtores locais. Tudo isso sem impactar negativamente a natureza, e quando possível, regenerando-a, perseguindo a relocalização das atividades econômicas por meio de circuitos curtos e sem explorar ninguém.

Com esses objetivos em mente, a tarefa era dificílima, mas só seria viabilizada com um ferramenta tecnológica que não acharíamos no mercado, evitando planilhas intermináveis. A tecnociência solidária desenvolvida cooperativamente por aqueles que levariam o projeto adiante em Santos e região; com muita participação de seus agricultores, e em especial Breno Almeida, agricultor de Pedro de Toledo. Sua colaboração  foi essencial para o desenvolvimento da ferramenta de operação do “Comboio Agroecológico”, o sistema de gestão das comunidades da Livres Coop. 

Tal ferramenta foi tornada realidade principalmente pela ousadia e capacidade de “fuçar” de Henderson Mele, um dos cooperados da Livres Coop que colocou a mão na massa para desenvolver o sistema. “O Comboio Agroecológico opera de uma forma única. Utilizar ferramentas prontas disponíveis no mercado limitaria a experiência dos consumidores. Não ter um sistema automatizado inviabilizaria a escala necessária para o modelo. O desafio foi, e continua sendo, conciliar as aulas de programação, o trabalho do dia-a-dia e o desenvolvimento de um sistema próprio ao mesmo tempo que o Livres é construído”, afirma o programador solidário. E assim foi se consolidando a Rede: por meio de militantes que se movimentam centralmente pelo Livres, ou nas suas horas sem tarefas de suas vidas pessoais e profissionais, para construir outra economia possível.

Alimentos mais acessíveis para a comunidade sem amassar o agricultor

O  sistema que tínhamos em mãos depois de meses de discussões, então, permitiu-nos avançar para além dos famosos CSA’s: decidimos mapear um consumo mínimo de cada consumidor consciente, que poderia complementá-lo com outros alimentos extras durante a semana de retirada de cesta. Esse consumo mínimo, de cestas semanais, quinzenais ou mensais,  seria fixo por três meses e depois seria repactuado. Esse critério de uma economia democraticamente planificada foi essencial tanto para trazermos alimentos mais acessíveis para os consumidores conscientes associados, que possuem margens de cerca de 15% de desconto, quanto para a produção mais previsível dos agricultores, que agora podiam visualizar uma demanda garantida de forma cristalina. Dessa forma, se fundamentou novamente uma economia dos valores de uso, que de alguma forma atualiza um critério muito presente nas economias de nossos povos originários: estabeleceu-se a reciprocidade entre agricultor e consumidor, onde o primeiro, dispondo de mais segurança econômica, passou a retribuir com preferência na colheita e preços mais acessíveis aqueles que consomem pela Livres Coop.

A demanda agregada pelo sistema após o preenchimento do “carrinho comunitário” pelos consumidores conscientes nos auxiliou tanto a planejar com os agricultores quanto a ver o perfil de consumo de cada consumidor. O sistema passou a nos ajudar na montagem de cestas, contabilidade, carências produtivas e outros problemas e desafios. Pouco a pouco, vimos novos alimentos aparecendo, o que gerou nossa primeira safra de tomates, por exemplo. A cooperada Milena Savini, responsável pelo setor financeiro da Livres Coop Baixada Santista, relembra: “A felicidade de poder entregar aos consumidores conscientes um alimento que, no mercado convencional, é um dos que carrega a maior quantidade de veneno, é imensa. É uma alegria e um alívio muito grande. Nós como cooperativa agroecológica queremos entregar vida, e não morte como o agronegócio entrega”, conta.

O processo também impactou na expansão produtiva dos agricultores, como Geraldo Júnior, que pôde avançar na produção principalmente do amado brócolis ramoso e outras variedades. “Com o crescimento da demanda dos consumidores pudemos expandir a área plantada, arrendando um terreno vizinho, o que proporcionou aumento de produção e geração de emprego e renda no campo”, lembra.

Interação, abastecimento dos consumidores e a entrega cooperada

Os consumidores, aos poucos, passaram a entender as dificuldades do campo e a luta necessária para diversificar a produção. A Rede se expandia, com ela se expandiam as parcerias com empresas dos trabalhadores e cooperativas da Economia Solidária, tais como a Coopernatural, a COOPEG, o MST e a Terra Viva. O sistema foi essencial para garantirmos uma diversidade maior, pois ele ajudava a mapear alimentos que ainda não eram produzidos pela Rede, mas que tiveram o volume de sua demanda já mapeado para quem quisesse produzi-los. Isso, todavia, ainda não é capaz de resolver tudo: ainda há carências na regularidade e diversidade de algumas frutas, já que o projeto evita a compra de atravessadores, preferindo o estímulo direto aos agricultores.

Os consumidores conscientes mais antigos, portanto, conseguiram ver a expansão do projeto e os impactos positivos. Tiveram seu processo de consciência ambiental e política aprofundado, ajudaram em vaquinhas na mudança do projeto para outro endereço, sugeriram dicas para melhorar o sistema solidário, e são partícipes das atividades da comunidade, como festas, eventos e celebrações, sem falar das nossas queridas Feiras de Economia Solidária. Além disso, trocam receitas, dicas de consumo para PANCs, e alguns até passaram a produzir biofertilizante e húmus por meio da compostagem, fornecendo o entreposto da Rede com tal produção, que passou a ser redistribuída nas cestas dos consumidores que queriam deixar suas plantas “mais felizes”.

Muitos desses biofertilizantes agroecológicos chegam às casas dos consumidores pelas mãos, ou melhor, pelas panturrilhas dos e das ecociclistas Livres. O conceito de entregas via ecociclistas sempre fez parte do projeto Livres, pois além de ser a etapa final de um ciclo que se inicia na produção dos alimentos, é o que colabora decisivamente para a conexão de uma razoável parte da rede de consumidores com o empreendimento – processo esse que se intensificou com a pandemia do novo coronavírus, que fez com que, durante meses, todas as cestas de consumo da comunidade tivessem que ser entregues via delivery. Ou seja, um processo que começa solidário, não poderia terminar de forma terceirizada ou explorada: tinha que terminar também de forma solidária.

“Na verdade, o processo de realizar entregas começou antes mesmo de o Livres operar como empreendimento, mas sim quando seus membros trabalhavam em conjunto com os produtores, nas feiras de produtos orgânicos de Santos”, lembra Lucas Gonçalves, um dos ecociclistas há mais tempo presente na equipe. 

Com o crescimento do Livres, e o consequente aumento da demanda de pedidos – e também de entregas -, a autogestão dos ecociclistas precisou ser aperfeiçoada – um processo que jamais deixou de acontecer. Lucas explica: “No início do Livres, o método de trabalho consistia em preparar as rotas de entrega logo após a montagem das cestas de consumo, no próprio dia da logística de entrega. Mas com mais entregas por fazer, foi necessário reorganizar esse método, e atualmente preparamos as rotas com antecedência. Dessa forma, os ecociclistas conseguem se organizar previamente e se dividem melhor nos dias de operação, para que todos na equipe façam uma quantidade parecida de entregas,e assim serem remunerados também de forma parecida”.

Atualmente, a equipe de ecociclistas Livres conta com seis pessoas, que realizam entre 100 e 120 entregas toda semana para consumidores de quatro cidades da Baixada Santista.

E como remunerar o trabalho em outra economia?

O processo de autogestão foi se tornando mais complexo e interligado entre os diversos setores da Rede. Os e as ecociclistas recebem por entrega, ficando com 100% do valor delas, concentrando no seu centro de custos os pagamentos das entregas e guardando 20% dele para despesas de manutenção e bem-estar. Porém, na parte “interna” a questão parecia mais complexa, pois as tarefas a cumprir eram muito diferentes, e muitas vezes despendiam tempo e esforço diferentes, também. Como resolver essa equação?

Aos poucos as peças foram se encaixando. Foram definidas uma série de atividades baseadas nas “Ecohoras”, que são lastreadas em um valor considerado digno e possível de ser pago pela cooperativa, dando origem ao “Ecoholerite”. Esse documento é preenchido semanalmente pelos cooperados e é essencial para o pagamento da equipe. 

Todavia, as tarefas mais “operacionais”, com início, meio e fim, bem demarcados no tempo, eram mais fáceis de ser mensuradas e de se chegar a um consenso. Chegamos ao ponto, então, de valorizar tarefas de gestão e de maior responsabilidade com um valor um pouco maior. Isso pode até ser entendido como um ponto de desigualdade dentro das cooperativas – como até mesmo Paul Singer discute, no livro “Introdução à Economia Solidária”. Mas o próprio professor acaba dizendo que esse fator é importante para o sucesso da empresa, pois ali estão algumas das atividades onde se exige mais e onde os erros têm maior impacto para todos os trabalhadores.

Apesar disso, temos a cultura de distribuir as responsabilidades, por isso não entendemos exatamente como uma desigualdade se de fato tais responsabilidades são maiores e demandam mais. Afinal de contas, o que aprendemos na Economia Solidária é que nem todos podem querer maiores responsabilidades. Alguns irão contribuir em menor grau, mas devem ser pagos justamente por isso, ao mesmo tempo que estimulados a terem seu desenvolvimento humano pleno.

Agriculturas Alternativas para sobrevivermos ao Capitaloceno

Não é só pela capacidade de produzir valores de uso  “sob demanda” em face das necessidades da comunidade que faz a Rede Livres ser uma experiência interessante para uma economia mais além do crescimento. É também por estimular relações de produção e de organizar a natureza para além do Capitalismo.

A agroecologia e a agricultura sintrópica possuem a capacidade de reduzir o processo “entrópico” da economia capitalista, ou seja, mitigam o processo que torna, com maior velocidade, as coisas úteis para a vida em coisas inúteis. A agricultura convencional, nesse sentido, exaure ecossistemas, impacta o clima, a biodiversidade, etc. Como Jason Hickel defende, a agricultura é afetada pelo clima tanto quanto o afeta. Nesse outro sentido, a Rede constrói uma colcha de retalhos de alternativas de produção.

A mais avançada delas provavelmente é o modelo sintrópico de agricultura, uma forma de organizar a natureza de modo a criar no próprio território um ecossistema complexo onde seus próprios “detritos”, como folhas e matéria orgânica, enriquecem o solo demandando cada vez menos insumos que, na maioria das vezes, precisariam vir do outro lado do planeta para permitir a produção. O resultado é um tipo de “agrofloresta” muito produtivo e pouco “insumista”, permitindo produzir mais aproveitando as potencialidades da natureza e o consórcio de plantas que se fortalecem quando combinadas. Nesse sentido, a experiência da Livres Coop – Porto Alegre é exemplar: lá, o agricultor sintrópico Vicente Guindani confirma as potencialidades desse modo de produção.

Além disso, Vicente produz do lado da capital, em Viamão, fortalecendo a relocalização da economia, conceito sempre presente no movimento do decrescimento.

Relocalizando a economia: já somos uma plataforma solidária?

Em agosto de 2020, houve um convite para participar em uma aula do curso de extensão “Autogestão e Economia Solidária” realizada pela Universidade Aberta da Economia Solidária (UAES) da Unifesp. Foi ali, provavelmente, que nos demos conta de forma mais “científica” de que a Rede já extravasava seu projeto inicial. O responsável por nosso convite para participar da aula, o professor Egeu Esteves, foi quem nos alertou, afirmando: “Toda relação econômica começa no consumo (não na produção), sendo possível constituir plataformas que reúnam produtores e consumidores, furando o capitalismo – como é o caso do Livres!”.

 E isso de fato estava acontecendo: a complexidade das relações econômicas e baseadas em solidariedade e reciprocidade dentro de nosso circuito só se acentuava. Nossos consumidores conscientes, também produtores de bens e serviços, passavam a comercializar entre si, diretamente através da Rede ou não, enquanto usavam os serviços dos ecociclistas em várias oportunidades para a entrega de suas vendas. Passamos a, por exemplo, fornecer por nossos canais os queijos veganos da produtora Magali, a cerveja artesanal Nosotros produzida em São Vicente (cidade vizinha de Santos), a comprar os quitutes da confeitaria Simone Garcia para nossos eventos, e a entregar os cosmésticos veganos do pequeno empreendimento Bruma Cosméticos Naturais, dentre outros.

Nesse momento também passamos a discutir com mais força que, apesar de termos criado um complexo ecossistema solidário, ainda circulávamos toda nossa produção com os meios de pagamento do sistema capitalista. Isso fazia nossos recursos escoarem e irem para os bolsos dos mesmos exploradores. Ou seja, toda vez que usávamos cartões e maquininhas com as bandeiras dos capitalistas financeiros, algo entre 3 e 5%, ou às vezes até mais que isso, era desviado para fora da rede. “Toda água deságua no mar”, como diz Joaquim Mello, criador do Banco Palmas.

A conclusão era óbvia: era preciso criar o Banco Solidário Livres! A iniciativa se encontra em andamento e envolve todos os braços geográficos da Rede: São Paulo, Baixada Santista, Campinas e Região, além de Porto Alegre. 

O caminho se faz ao caminhar…

O poeta espanhol Antonio Machado afirmava aos caminhantes que “não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. E em meio a crise sistêmica que vivemos, essa que nos demanda “impensar” tudo o que concebemos, talvez a premissa venha bem a calhar. As esquerdas na maioria das vezes se guiam pautadas sob conceitos eurocêntricos como o de Maquiavel, entendendo que os fins justificam os meios. Talvez isso valha para muitas coisas, mas tem seus limites para realizarmos outra economia possível.

A concepção que Enrique Dussel defende, inspirando-se em nossos povos originários, aquela de poder obediencial, talvez nos traga uma nova inspiração. A economia a se fazer terá que se inspirar mais no Zapatismo, onde só mandam os que obedecem, do que no difusionismo burocrático dos técnicos que, após a revolução, rapidamente perdem o gosto pela ousadia e criatividade que só os trabalhadores em posse dos meios de produção, por menos complexos que sejam, possuem. As esquerdas terão que recuperar sua admiração pela ousadia de experimentar outros arranjos econômicos e sociais possíveis.

A Rede Livres, com todos seus avanços e imensos limites, nos ensina que, pelo menos em tese, é possível trocar o paradigma de crescimento infinito – seja do lucro, seja da produção -, pelo paradigma de redistribuição radical em busca da boa vida na terra por muito tempo. Apesar de tal paradigma ser possível em tese, nada garante que as elites capitalistas, burocráticas e até partidárias, sejam elas de esquerda ou de direita, concordem e aceitem o fato de que teremos que diminuir o tamanho de nossa economia, por bem ou por mal, para sobreviver em um planeta cada vez mais hostil. Sem aderir a tal projeto rapidamente, as mudanças tenderão a ser cada vez mais autoritárias, tornando a guinada “Ecofascista” um próximo passo possível para as direitas conservadoras.

A experiência da Rede Livres com sua prática de Ecossocialismo Real tem, no mínimo, a virtude de nos mostrar que é possível realizar tal projeto de forma radicalmente democrática, e que a Economia Solidária será essencial para pensarmos em um socialismo sem crescimento!

* Jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista;

** Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), coordenador da Livres Coop Baixada Santista e militante do PSOL.

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Socialismo sem crescimento: mais que utopia, uma necessidade

“Não há riqueza a não ser a vida”

John Ruskin

Nessa seção, assim como na próxima, iremos refletir sobre a compatibilidade do socialismo com a ideia de crescimento infinito, e também sobre a necessidade de construirmos uma economia centrada na produção de valores de uso para a boa vida. A ideia de uma sempre crescente economia baseada no lucro tem origem no próprio capitalismo e, ao que tudo indica, dentro desse mesmo sistema irá se findar. Porém, há alternativa ao colapso – como demonstrará Guilherme Prado*, nesse texto

O marxismo é uma crítica da Economia Política. E, ao mesmo tempo, poderíamos sustentar: é uma teoria de uma Economia Política pela vida. Como ponto central nessa teoria crítica está a defesa da vida do trabalhador (DUSSEL, 2014), e em menor plano – se considerarmos os pensamentos de Marx em seu momento histórico -, também uma defesa de todo o necessário para que essa vida tenha seu pleno desenvolvimento. Sendo assim é também uma teoria que, desde então, já carregava componentes Ecossocialistas, como defende o recente livro de Kohei Saito (2021) “O Ecossocialismo de Marx”. Desta forma, nos cabe dizer que o marxismo, apesar de suas correntes produtivistas, nunca foi uma teoria para fazer mais, quantitativamente, daquilo que o capitalismo faz. Ou seja, o fato dessa teoria não versar sobre como crescer mais (e mais rapidamente) a economia, faz tal contradição se tornar ainda mais evidente em um momento onde o próprio crescimento econômico já atenta contra a vida na terra. 

Além dos dados que se empilham e mostram que a relação entre crescimento econômico e emissão de gases é muito próxima (ver Gráfico 1), já temos medidores o bastante que berram aos olhos quando nos mostram que precisamos migrar de uma economia mundial que tem como objetivo maior o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), para uma outra que distribua bem-estar reduzindo radicalmente seu impacto na biosfera. A crise da Covid-19 teve um curioso efeito de retração em nosso dano à vida: fez com que saíssemos do consumo de 1,75 planeta Terra no ano de 2019 para 1,6 em 2020. Porém,  já voltamos a consumir 1,7 planeta por ano em 2021, fazendo com que a economia mundial consumisse tudo aquilo que o planeta é capaz de renovar 3 semanas mais cedo que 2020. O dia de sobrecarga da Terra, portanto, voltou a ser 29 de julho (OVERSHOTDAY, 2021)

PIB – uma medida colonial

A própria ideia de crescer o Produto Interno Bruto (PIB) é uma ideia colonizadora criada por Simon Kuznets e adotada pelos EUA no pós-guerra para mostrar sua superioridade ante o eixo soviético que, aliás, antagonizava com o capitalismo ao não aceitar o princípio da expansão do lucro como meta, mas adotando o crescimento da produção como seu objetivo central. Se isso foi questionável à época, produzindo na URSS os rios mais poluídos do mundo por exemplo, hoje tal erro não pode se repetir. Aí devemos reforçar: a ideia de perseguição do crescimento econômico infinito e a qualquer custo é uma ideia colonial, não só porque foi imposta pelo imperialismo dos países do Norte – excluindo todas as outras formas de entender a prosperidade dos mais diferentes povos – , mas também porque é baseada na expansão dos valores de troca. Ele na verdade cresce quando um bem comum é expropriado dos trabalhadores, como no caso da privatização de um rio ou se o ar passasse a ser vendido, nessas condições o crescimento se acelera e os trabalhadores ficam mais pobres. Ou seja, o PIB  não é baseado em necessidades que só podem ser supridas por valores de uso. Assim, o crescimento, e o próprio decrescimento que falaremos adiante, nunca devem ser o fim, mas apenas uma consequência da “produção” (ou a decisão política por não produzir algo) de valores de uso que são finitos. 

Sendo assim, é preciso dizer também que o socialismo dificilmente pode fazer melhor o que o capitalismo faz, uma vez que boa parte daquilo que o socialismo se propõe a fazer (ou deveria) não só “consome” as riquezas produzidas (educação, cuidado com idosos, saúde preventiva, bicicletas que não movimentam a economia como carros), como não tem muito a ver com quantidade – uma vez que não se mede os prazeres da vida com números, já que são sensações qualitativas. 

É claro que devemos lembrar que muitas das necessidades humanas dependem de “quantidade de produção”, produção essa que, numa economia voltada aos valores de uso, não deveria refletir em crescimento contínuo, mas sim em um incremento de produção para produzir um tanto de valores de uso (alimentos, sapatos, livros) para um tanto finito de necessidades de um número definido de pessoas. O que buscamos dizer com isso é que não queremos que os países dependentes “decresçam deliberadamente”, pagando a conta do colapso ecológico criado pelos países do Norte. Afinal, como afirma o espanhol Carlos Taibo (2010), se a renda per capita de países como Mali ou Burkina Faso é 30 vezes menor que a de França ou Alemanha, não nos parece razoável que esses países reduzam seus níveis de consumo. Porém, estes países devem tomar nota dos problemas que o Norte gerou se desenvolvendo, chegando a um mau desenvolvimento baseado em um modo de vida imperial  (BRAND; WISSEN, 2021). 

Desta forma, sob o aspecto macroeconômico e social, a ideia por trás do movimento chamado decrescimento (e da ideia de um socialismo sem crescimento que defendemos aqui) é: ser indiferente ao PIB tendo em busca decrescer as atividades ruins tanto dos países imperialistas quanto dependentes (indústria automobilística, bélica, e do petróleo por exemplo) buscando crescer, ou melhor “incrementar”, as atividades necessárias para o bem-estar (produção de alimentos agroecológicos e energia limpa); eliminar o hiperconsumo e desperdício dos países ricos para suprir o subconsumo dos países dependentes; tudo isso sem esquecer do combate à riqueza e à pobreza extrema. 

Cabe uma última ressalva antes de vermos as origens e os motivos de pensar um outro tipo de socialismo: capitalismo sem crescimento é crise, desemprego  e fome. E os dados só mostram que as taxas de crescimento da economia desde os anos 1970 são decrescentes, mostrando a crise (ou colapso?) estrutural da qual estamos diante. O colapso climático também só mostra que essas taxas tendem a piorar, pois os impactos do aquecimento global trarão prejuízos que consumirão a riqueza de nossa sociedade. Temos como exemplo os EUA que só em 2016 gastaram US$ 46 bilhões em gastos com desastres climáticos e as estimativas que mostram que, quão maior o aquecimento, maior o impacto no crescimento econômico: com 3,7º de aquecimento haveria 551 trilhões de prejuízos, cifra muito maior do que a riqueza global existente hoje (WALLACE-WELLS, 2019, p. 41).

Sendo assim, é preciso pensar urgentemente um sistema econômico que saiba lidar com sua própria contração, já que a estagnação é uma realidade para boa parte dos países desenvolvidos e também para os dependentes, já que, se excluíssemos China e Índia dos dados veríamos que a situação é ainda mais alarmante. O Japão, não por falta de tentar é claro, é um exemplo de “Estado estacionário acidental”, já que não consegue retomar taxas de crescimento pujantes de forma alguma (ver gráfico 2), não consegue dar grandes impulsos consumistas à sua população, nem consegue tirar esse impulso a partir de obras públicas já que possui uma infraestrutura quase completa, e acaba mostrando os limites do Keynesianismo pensado sob o paradigma do crescimento. Que teoria econômica usar para sermos felizes quando já temos o bastante? Ou que teoria econômica usar para termos o bastante sem devastar o planeta? Governar sem crescimento é necessário socialmente e ecologicamente urgente.

Entropia, Estado Estacionário e Marxismo

Não são novas as correntes de pensamento fundadoras da economia ecológica e críticas à ideia de crescimento infinito. O grande nome dessa área do conhecimento foi e segue sendo o matemático e economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen (GR), o cérebro que ligou a ideia de entropia, presente na segunda lei da termodinâmica descoberta por Sadi Carnot, ao processo econômico.

“Como economista não ortodoxo que sou, eu acrescentaria que aquilo que entra no processo econômico consiste em recursos naturais de valor e o que é rejeitado consiste em resíduos sem valor. Essa diferença qualitativa está confirmada, embora em outros termos, por uma divisão particular e até mesmo singular da física conhecida pelo nome de termodinâmica. Do ponto de vista da termodinâmica, a matéria-energia absorvida pelo processo econômico o é num estado de baixa entropia e sai num estado de alta entropia”.(GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p.57)

O que é a entropia então? Do ponto de vista que nos interessa aqui, ela versa sobre a baixa entropia – energia “livre”, portanto útil ao interesse humano e quase totalmente passível de seu domínio, que tende a tornar-se alta entropia – energia “presa”, rumo à desordem e à inutilidade. Um pedaço de carvão possui menos energia que o mar, por exemplo. Porém a energia do carvão (baixa entropia) é livre e pode ser transformada em calor (pensem numa lareira) ou em trabalho mecânico (pensem numa termoelétrica e tudo que se move a partir dela), ambos úteis ao ser humano. Já o mar possui muita energia presa (alta entropia), mas não diretamente utilizável pelo homem; ele pode mover seu barco nas águas com o auxílio de uma vela por exemplo, ou de um motor, mas não manipulá-la como quer.

Essa descoberta mostrou inclusive a limitação do argumento de economia circular e renovável, uma vez que, para reciclar uma lata de alumínio gasta-se mais matéria-energia do que para produzir uma nova. Sim, é preciso lembrar: os processos de reciclagem não tornam útil novamente 100% do material submetido ao processo. Ou seja, tudo tende à alta entropia, ou à inutilidade em outras palavras. Haveria uma flecha do tempo onde tudo ruma à desorganização, tornando o estoque de baixa entropia, que é nossa riqueza comum de energia e recursos necessários para a boa vida, algo mais e mais escasso.

Ao aplicar a lei da entropia à economia, considerando não só energia mas também recursos materiais, em última instância, GR descobriu que a vida é, em si, um processo entrópico. Toda vida acelera tal processo no sentido de transformar baixa entropia (energia e recursos úteis) em alta entropia (energia e recursos inúteis). Nós mesmos somos seres entrópicos que, para vencer na batalha da vida, precisamos nos alimentar de recursos externos (baixa entropia) para subsistir: “a verdade é que todo organismo vivo procura somente manter constante sua própria entropia” e “o faz extraindo baixa entropia em seu próprio ambiente a fim de compensar o aumento da entropia à qual o seu organismo está sujeito, como qualquer outra estrutura material.” (GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p. 61)

Com essas conclusões, GR se tornou um “outsider” da economia política, alijado dos grandes debates, principalmente pelo fato de ter percebido que o crescimento econômico não poderia durar para sempre num sistema com baixa entropia limitada. Sugeriu assim que a economia era apenas um subsistema da biosfera, sendo a Ecologia – e não a Economia – a ciência principal, postulando também que o decrescimento para uma bioeconomia seria uma solução mais viável para a humanidade . Mas seu legado seguiu com outros parceiros de ideias como o escritor do clássico texto “The Economics of the Coming Spaceship Earth”, Kenneth Boulding que proferiu a famosa frase “qualquer um que acredite em crescimento infinito num planeta finito, ou é louco ou é economista”. Além dele, tivemos o seu aluno mais brilhante, Herman E. Dally, que criou a teoria dos Estados estacionários, onde teríamos uma macroeconomia que iria considerar as entradas e saídas de recursos para manter-se estável e de fato sustentável, ou seja, uma economia que não teria o objetivo de crescer infinitamente:

“Proposições impossíveis são a própria base da ciência. Na ciência, muitas coisas são impossíveis: viajar mais rápido do que a velocidade da luz; criar ou destruir matéria-energia; construir uma máquina de movimento perpétuo, e assim por diante. Respeitando o teorema da impossibilidade,nós evitamos gastar recursos em projetos que estão sujeitos a falhar. Economistas deveriam, por conseguinte, estar muito interessados no teorema da impossibilidade, especialmente aquele demonstrado aqui: isto é, que é impossível sair da pobreza e da degradação ambiental através do crescimento econômico mundial. Em outras palavras, crescimento sustentável é impossível.”(DALY, 1989)

Foi assim que Herman Daly afirmou que o termo “desenvolvimento sustentável” só faz sentido se for entendido como “desenvolvimento sem crescimento”, um modelo que se baseia na melhora qualitativa dos processos econômicos mantendo um Estado estacionário alimentado por uma gama de recursos e energia que estejam dentro das capacidades regenerativas do Sistema Terra.  Apesar de não ser um crítico resoluto do capitalismo em si, centrando-se mais na crítica à economia de mercado, Daly percebeu que só assim poderíamos resolver o problema ecológico e o social ao mesmo tempo. Daly, inclusive, abriu espaço para pensar um necessário e ainda inexplorado “Keynesianismo sem crescimento”, um campo necessário de ser explorado uma vez que as ferramentas de esquerda são quase sempre keynesianas – como afirmou Giorgos Kallis no texto anterior desta revista.

Nessas lutas do século passado, ainda em grande parte ignoradas por uma porção da esquerda hoje, podemos também citar o movimento ecossocialista que se formava nos anos 1970, com destaque as críticas radicais de Andre Gorz em obras como “Ecologia e Liberdade” e a militância intelectual de Michael Lowy, que trouxe de volta ao debate Walter Benjamin como um dos poucos marxistas que viram os perigos do progresso, especialmente quando popularizou a passagem famosa abaixo:

“Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se  apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência” (Benjamin citado por Lowy, 2005, págs. 93-94).

Outra obra essencial da construção dessa Economia crítica foi o relatório “Limites do Crescimento” de 1972, que com ajuda de cálculos de computadores já previa os limites da atual economia “os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial” (BEHRENS et al, 1972, p.20)

Por que lutamos por um Socialismo sem crescimento?

Mas o que seria necessário para uma economia socialista? É verdade que, em tese, uma economia do Estado Estacionário pode ser capitalista ou socialista, como defende Giorgos Kallis. Mas no caso do capitalismo seria uma sociedade bem feia de se viver, já que o excedente que vira mais-valia (lucro) para o capitalista, teria que ser feito apoiado em maior taxa de exploração para enriquecer os ricos, uma vez que o excedente seria limitado. Por isso a ideia de crescimento é tão aceita: ela pode contemplar com migalhas os mais pobres e com altos lucros os de cima, mitigando a luta de classes. É por isso, também, que tal ideia é tão imbricada com o capitalismo: ela está fortemente ligada à ideia de acumulação.

O crescimento dificilmente se descolará da ideia de exploração, pois ele consiste em expropriar parte do que os trabalhadores produzem para ser reinvestido em uma maior capacidade de produção no futuro. Alguns poderiam argumentar que, com a economia e os meios de produção nas mãos dos trabalhadores, eles poderiam decidir democraticamente por não consumir (agora ou no futuro) todo o produto de seu trabalho para reinvestir em uma maior capacidade produtiva. Porém, isso se assemelharia a um socialismo da opulência, que não seria muito diferente do capitalismo quando colocássemos as próximas gerações no debate democrático, uma vez que não há crescimento da produção sem crescimento da extração de riquezas naturais e emissão de gases. Como já falamos aqui, ambos aceleram a entropia, tirando a capacidade de ser feliz das gerações futuras – além de no presente já destruir as condições de vida dos seres não humanos.

Além disso, para os países extrativistas e dependentes, pouco importa se um país decidiu (democraticamente ou não) pilhar suas riquezas comuns e naturais. Na Economia-Mundo capitalista, que é também uma Ecologia-Mundo como defende Jason W. Moore, o desenvolvimento de um país implica no subdesenvolvimento de outro como apontou Andre Gunder Frank: a maior concentração de excedente ou mesmo tecnologia avançada e limpa em uma região do sistema-mundo implica em menor concentração de excedente em outras regiões do sistema, além do empurrar de atividades econômicas sujas e com maior taxa de exploração para países periféricos ou semiperiféricos. Tais fatos revelam que a solidariedade internacional ainda é a maior escolha.

É bom salientar que um sistema econômico sem crescimento será uma proposta ruim se, por exemplo, o paradigma de determinada sociedade que adotá-lo, ainda se basear na capacidade de entregar um sempre crescente nível de produção para satisfazer uma sempre crescente gama de desejos dos trabalhadores. Aqui é bom lembrar porém, que as necessidades dos trabalhadores se mantêm estáveis na história (comer, beber, comunicação, etc.), o que mudam são os satisfatores (antes um telefone fixo saciava a necessidade de comunicação, depois precisamos de um celular com SMS, depois um celular com internet, depois um celular com 3G, depois com 4G, 5G e com uma bateria que dure muito). Nesse modelo, de desejos individuais opulentos e sem fim, saciados por satisfatores que mudam – e quebram – com cada vez mais velocidade, a falta de crescimento muito provavelmente será um problema!

Com todos esses desafios colocados, além da eliminação da acumulação e da mais-valia, entendemos que a ideia de um sistema econômico sem crescimento é mais plausível para os socialistas, pois ela demandaria também a eliminação de todo o excesso e produção acima do necessário, algo já feito por várias cadeias de circuitos curtos de alimentos como o Livres, e de roupas como a Justa Trama por exemplo. Outro critério necessário também, seria o de nenhum excedente ser reinvestido em mais produção, o que (claro) não inclui a transferência do que já é investido em uma atividade ruim (agrotóxicos) em outra necessária para a boa vida (produção de alimentos agroecológicos). Caberia também lembrar que um “excedente de estoque”, em nossa crítica, não cabe como excedente para acumulação, pois será consumido pelos trabalhadores em algum momento. Seria um modelo de zero acumulação e zero investimento líquido. Porém o grande desafio está em como trabalhar os princípios da autossuficiência e dos sonhos coletivos. Mas isso é papo para outra hora. 

Um bom marxista a essa altura já se deu conta de algumas aproximações entre entropia e uma visão antissistêmica da economia: viver é tornar valores de uso em valores não úteis, ou não valores, algo que Enrique Dussel foi um dos poucos teóricos de esquerda a perceber. Dussel, aliás, postula um projeto de “baixa entropia em comunidade”. Socialismo, portanto, ao elevar a democracia à sua plenitude, não pode versar sobre como acelerar o processo entrópico, mas sim sobre como desacelerar radicalmente esse processo, considerando o bem-estar das próximas gerações, trazendo a todas e todos a boa vida agora! 

Ainda assim, a maioria concorda que a eliminação da mais-valia é necessária para construir o socialismo. Mas isso não é suficiente. Em outras palavras, Socialismo não é apenas sobre como os trabalhadores se apropriam de seus excedentes e riquezas, sem que essa apropriação seja literal, pois é necessário que um Estado Estacionário fortemente redistributivo faça com que as empresas cooperativas do trabalhadores mais rentáveis não produzam trabalhadores ricos, enquanto as menos rentáveis não produzam trabalhadores pobres – o que já é óbvio para muitos. 

Mas o Socialismo é também sobre como decidir coletivamente sobre os gastos da sociedade – porém ele não pode ser só sobre quantos painéis solares e ferrovias construímos, como diz Giorgos Kallis. Esse outro sistema versa sobre como os trabalhadores decidem coletivamente também sobre a destruição de seus excedentes (com esportes, festa, lazer, etc.), além de como preservar seus “recursos” comuns para as próximas gerações. O socialismo, nesse sentido, tem mais a ver com a sociedades indígenas, onde as inovações resultavam em mais tempo livre e não em mais produção, seja ela verde, marrom ou vermelha.

Porém, a ideia de um socialismo “crescimentista” encontra-se sólida na cabeça da esquerda, e a ideia de que um crescimento socialista “pode ser mais verde” ainda paira sobre as cabeças de muitos intelectuais. Todavia, o ecossocialismo será aquele que “conscientemente decide, e planeja” sobre “como viver com o necessário; e também aquele que coletivamente elimina o excedente de sua produção, removendo-se do circuito do crescimento” (KALLIS, p. 94, 2016). A ideia de Socialismo sem Crescimento é extremamente apropriada para a época onde mais “mais produção significa menos segurança” como disse Luiz Marques. É uma ideia, portanto, para uma prática marxista de sobrevivência ao Capitaloceno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAND, U.; WISSEN, M. Modo de Vida Imperial. São Paulo: Elefante, 2021.

BEHRENS, III W. Willians; MEADOWS, H. Donella; MEADOWS, L. Dennis; RANDERS, Jorgen. The Limits to growth: A report for the club of rome’s Project on the predicament of mankind. Nova Iorque: Universe Books, 1972.

DALLY, H. Crescimento Sustentável? Não, obrigado. 1989. Disponível em: <

https://www.scielo.br/j/asoc/a/pfNnSzdTMRHVS5sdJ3rpnTs/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 11 de novembro de 2021.

DUSSEL, Enrique. 16 Tesis de Economia Política –Interpretación filosofica. Mexico, Argentina: Siglo XXI, 2014.

GEORGESCU-ROEGEN, N. In: JACQUES, G.; IVO, R. (Orgs). O Decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Editora Senac, 2012.

KALLIS, Giorgos. In Defense of Degrowth: opinions and minifestos. Aaron Vansintjan. 2016.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin-. Aviso de Incêndio: Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

OVERSHOOTDAY. 100 Days of Possibility. Disponível em: https://www.overshootday.org/. Acesso em: 25 de outubro de 2021..

SAITO, Kohei.O Ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2021.

TAIBO, Carlos. Decrescimento, Crise, Capitalismo. Compostela: Estaleiro, 2010.

WALLACE-WELLS, D. A Terra Inabitável – uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

* Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), coordenador da Livres Coop Baixada Santista e militante do PSOL.

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A esquerda deve defender o decrescimento

Neste texto, inédito em português, trazemos um pouco das reflexões de um dos teóricos e militantes do decrescimento, o grego Giorgos Kallis*. Nele, nos perguntamos porque a esquerda ainda se mantém pouco cética em relação à ideia de buscar um crescimento econômico infinito e de forma exponencial mesmo em meio ao Antropoceno. As evidências climáticas e ecológicas se empilham, e as taxas de crescimento da economia mundial (cada vez mais tímidas) nos indicam que – mais cedo ou mais tarde – iremos esbarrar na ideia de limites e teremos de aprender a governar sem crescimento (por bem ou por mal) para gerar a boa vida, escapando do colapso. Seria um socialismo sem crescimento possível? Talvez, mas só será viável com a aliança da economia solidária. É o que também nos ensina essa importante reflexão baseada na crise que o norte global já enfrenta, além de nos dar inspiração para criar novos caminhos pelo Sul. Deixemos Kallis nos guiar!

Intelectualmente, as origens do “decrescimento” são encontradas no debate sobre Ecologia Política de 1970. André Gorz (foto) falou sobre décroissance (decrescimento) em 1972, questionando a compatibilidade do capitalismo com o equilíbrio da terra  “para o qual (…) o decrescimento da produção material é uma condição necessária” (BOSQUET, 1972). A menos que consideremos a ideia de uma “equidade sem crescimento”, Gorz argumentou, reduziríamos o socialismo para nada além da “continuação do capitalismo através de outros meios – um extensão dos valores da classe média, estilos de vida e padrões sociais” (GORZ, VIGDERMAN, CLOUD, 1980).

“Demain la décroissance” (“amanhã o decrescimento”, no sentido de regressão regressão econômica) foi título de uma coleção de ensaios de 1979 de Nicolas Georgescu-Roegen, um imigrante romeno lecionando nos EUA e um economista ecológico que argumentou que o crescimento econômico acelera a entropia. Eram os tempos da crise do petróleo e do Clube de Roma. Para os pensadores europeus “vermelhos e verdes”, porém, a questão dos limites do crescimento era antes – e principalmente – uma questão política. Diferente das preocupações malthusianas preocupadas com o esgotamento de recursos, superpopulação e colapso do sistema, a deles era o desejo de puxar o freio de emergência do capitalismo, ou, para citar Ursula Le Guin, “colocar um porco nos trilhos de um futuro de mão única que consiste apenas em crescimento”.

O slogan décroissance (decrescimento) renasceu no início dos anos 2000 por ativistas na cidade de Lyon em ações diretas contra mega infraestruturas e propaganda. Serge Latouche, um professor de antropologia econômica e crítico dos programas de desenvolvimento na África, popularizou o termo com seus livros, clamando por um “fim ao desenvolvimento sustentável” em “Farewell to Growth” [Adeus ao Crescimento]. Para o intelectual Francês Paul Ariès, decrescimento era uma “palavra míssil”, um termo subversivo que questiona o desejo pelo – sempre tido como certo – desenvolvimento baseado em crescimento. Uma pequena mas dedicada rede de decrescentistas surgiu em torno da revista mensal “La Decroissance”. A palavra foi registrada nos debates políticos da França, inclusive com uma tentativa falha de fundar um partido político do decrescimento.

Decrescimento hoje

Da França, o novo jargão irradiou para a Itália, Espanha e Grécia. Em 2008, logo antes da crise espanhola, o decrescentista catalão Enric Duran “expropriou” 492 mil euros via empréstimos de 39 bancos. Ele deu o dinheiro a movimentos sociais, denunciando o sistema financeiro especulativo espanhol e o crescimento econômico fictício impulsionado por ele.

Começando por Paris em 2008, uma série de encontros internacionais – um mix de conferências científicas com fóruns sociais – introduziram o Decrescimento ao mundo da língua inglesa. Em setembro de 2014, 3500 pesquisadores, estudantes e ativistas se encontraram em Leipzig pela 4ª conferência internacional sobre o Decrescimento. As atividades abrangiam desde painéis sobre crescimento e mudança climática, críticas gramscianas ao capitalismo,  à semana de trabalho de 20 horas, até desobediência civil contra uma usina de carvão e cursos sobre como fazer o seu próprio pão. 

Uma literatura acadêmica se prolifera em periódicos revisados apoiando as reivindicações do decrescimento: a impossibilidade de evitar mudanças climáticas desastrosas com a manutenção do crescimento como conhecemos; os limites fundamentais em descasar o consumo de recursos ao crescimento; a desconexão entre crescimento e a melhora do bem-estar em economias avançadas; o aumento dos custos sociais e psicológicos do crescimento. Trabalhos recentes destacam o imperativo do crescimento composto para o capitalismo – o que David Harvey (2014) chamou de “a mais letal de suas contradições” – e exploram como o emprego ou a igualdade poderiam ser sustentados em economias pós-capitalistas sem crescimento. 

Propostas políticas miram desde um teto de emissão de carbono e moratórias na extração de recursos até uma renda básica de cidadania, redução da jornada de trabalho, reivindicação de recursos comuns em um jubileu da dívida (algo como uma moratória), assim como uma reestruturação radical do sistema tributário com impostos de carbono ao invés de renda, e taxação de capital. Ao demandar o impossível, tais “reformas não reformistas” – como André Gorz as chamou – clamam por transformação sistêmica (como Slavoj Žižek notou, reformas social-democratas são revolucionárias em uma era em que o capitalismo não pode mais acomodá-las).

Politicamente, há um claro entendimento que a mudança do sistema é necessária, e que isso requer um movimento de movimentos, ou uma aliança dos despossuídos, incluindo uma coalizão global dos movimentos social e ambiental. Enquanto o decrescimento é incompatível com o capitalismo, ele rejeita a ilusão do assim chamado “crescimento socialista”, por meio do qual uma economia racionalmente e centralmente planejada, de alguma forma mágica, iria trazer desenvolvimentos tecnológicos que permitirão um crescimento razoável sem que sejam degradadas as condições ecológicas.

Outro caminho

Para outros, “decrescimento” significa centralmente uma prática de vida diária. Nosso fórum de três dias em Atenas em 2015 teve participação de centenas de participantes: não só acadêmicos, ativistas ambientais e de direitos humanos ou membros do Syriza, os Verdes, e a esquerda “anti-autoritária”, mas também neorrurais e agricultores orgânicos da Grécia rural, e vários militantes de base da economia solidária, das clínicas das pessoas e agricultura urbana. Em Barcelona, o decrescimento é simbolizado em projetos como o Can Masdeu, uma ocupação com uma rede de jardins de comida no bairro operário de Nou Barris e a história do ativismo do “direito à moradia”; ou a Cooperativa Integral Catalã, uma cooperativa composta por 600 membros e 2000 participantes, que também funciona como guarda-chuva de produtores independentes e consumidores de orgânicos e produtos artesanais, ecovilas, e que opera cooperativas e redes regionais de trocas que emitem suas próprias moedas.

François Schneider, mobilizador das conferências internacionais e fundador do think thank Research & Degrowth em Paris (agora em Barcelona), encorpa a hibridez do decrescimento: um PhD graduado em ecologia industrial que andou com um burro pela França explicando o decrescimento para os passantes que paravam perplexos. Ele vive agora em Can Decreix, em uma casa simples na fronteira franco-catalã, também um centro de experimentação e educação da vida frugal.

Alguns falam de um “movimento” de base do decrescimento, mas aqueles que atenderam à conferência não são um grupo coeso de pessoas com uma agenda comum ou propósito único (EVERSBERG; SCHMELZER, 2016), tampouco alcançaram os números de um movimento. Diferente do movimento “antiglobalização”, não há prédio da OMC para ser invadido ou acordo de livre-comércio a ser parado. O decrescimento oferece um slogan que mobiliza, une, e dá sentido a um nicho diverso de pessoas e movimentos sem ser seu único, ou mesmo principal, horizonte. É uma rede de ideias, um vocabulário – como chamamos em nosso último livro -, que mais e mais pessoas sentem que dialoga com suas preocupações.

Redistribuição, não crescimento

Uma nova esquerda tem que ser uma esquerda ecológica, ou não será de esquerda de forma alguma. A questão ambiental “muda tudo” para a esquerda também, como Naomi Klein (2015) argumentou. O capitalismo requer expansão contínua, uma expansão assentada na exploração de humanos e não-humanos, que irreversivelmente impacta o clima. Uma economia não capitalista terá que sustentar a si mesma enquanto se contrai.  Mas como nós podemos redistribuir ou assegurar trabalho que tenha sentido sem crescimento? Não existe ainda uma concreta “economia do decrescimento”. Lamentavelmente, o Keynesianismo é a mais poderosa ferramenta que a esquerda, e até a esquerda marxista, possuem para lidar com as questões políticas. Mas esse é um ideário econômico de 1930, quando expansão ilimitada ainda era possível e desejável. 

Sem uma maré para levantar todos os barcos, é tempo de repensar qual barco leva o que. A resposta da esquerda para o dilema r>g de Piketty (2013) não deve ser “nós aumentaremos g”. Até porque nós sempre quisemos decrescer “r”, ou seja reduzir o acúmulo de capital! Piketty, não exatamente um ecologista, não acredita na possibilidade de maior crescimento. Redistribuição é a questão central para um século XXI sem crescimento.

A Esquerda tem que se liberar do imaginário do crescimento. O crescimento de qualquer coisa sob uma taxa composta rapidamente se coloca ao infinito, uma ideia absurdamente perigosa. O Crescimento é uma ideia imbricada ao capitalismo. É o nome que o sistema deu ao sonho que estava produzindo, o sonho da abundância material (YARROW, 2010). O PIB foi inventado para contar a produção da guerra (MITCHEL, 2011), e evoluiu para um indicador que objetivamente confirmava o “sucesso” dos EUA na Guerra Fria (YARROW, 2010). Crescimento é o que o capitalismo precisa, sabe e faz. Como Gareth Dale (2012) assinala, políticas socialistas nunca foram sobre aumentos quantitativos em valores de troca abstratos. Elas são sobre coisas específicas, sobre valores de uso concretos: emprego, salário decente, condições dignas de vida, um ambiente saudável, educação, saúde pública ou água limpa para todos. Todas essas são necessidades, mas não há razão pela qual tais políticas demandariam uma expansão perpétua de recursos, 3% ao ano. 

E há uma demanda mais forte: as coisas que nós na esquerda gostaríamos de ver “crescer”não trariam crescimento agregado (a menos que redefiníssemos o que medimos como atividade econômica, mas então teríamos um jogo de palavras apenas). Distribuir a riqueza igualmente, usando mais mãos e mentes do que antes era necessário, tornar ambientes e pessoas livres, gastar tempo para cuidar um do outro: todas essas são “taxações” sobre a produtividade e crescimento. Nós estaríamos melhores se fôssemos menos produtivos (JACKSON, 2012). Mas a industrialização decolou concentrando excedentes na mão de poucos (capitalistas ou Estados), reinvestindo lucros para mais crescimento; e não distribuindo a riqueza para todos, ou deixando para trás as pastagens e as fontes de combustíveis fósseis ociosas. 

Mudar os sonhos

Isso pode ser meio difícil de engolir. Ao fim e ao cabo, muitos de nós advogamos por igualdade, democracia, pleno emprego, salário mínimo, educação ou energias renováveis em nome do crescimento. A crença é que uma alternativa ao sistema capitalista que só possui olhos nos lucros será mais “racional” e fará melhor o que o capitalismo faz, e até mais. Isso é errado politicamente: como afirma Slavoj Žižek, a esquerda não pode se exaurir em busca de meios de realizar os mesmos sonhos; ela tem que mudar esses sonhos por ela mesma. Buscar os mesmos sonhos é também errado factualmente. A “gloriosa” (sic) era do pós-guerra de reconstrução e de “catch-up” acabou. Há poucos indícios que um Keynesianismo regado a dívida, marrom ou verde, capitalista ou socialista, pode reviver tal era. Isso é independente do fato de que a austeridade neoliberal é desastrosa. Redistribuição, democracia e igualdade, sim; mas não em nome do crescimento.  

O decrescimento revive o espírito da “austeridade revolucionária” [no sentido de autonomia], de Enrico Berlinguer, uma austeridade nascida da solidariedade. O petróleo que abastece nossos carros, aquece nossas casas e faz nossos hospitais e escolas funcionarem é o mesmo que destrói meios de vida e florestas na Amazônia peruana e na Nigéria. Não precisamos do Papa para nos lembrar disso (KRUGER, 2015).  A razão para uma vida “sóbria”, como Berlinguer antes ou o Papa agora chama, é porque nossas ações “aqui” afetam pessoas e ecossistemas “lá”. Não porque a máquina capitalista está se esgotando sem coisas (preocupação Malthusiana), ou porque, como os neoliberais querem, “nós vivemos sob nossos próprios meios” (pelos quais eles querem dizer “nós, os 99%”, que usamos os serviços do Estado de bem-estar social, não o 1% que vivem pelo seu capital).

De uma perspectiva do decrescimento, o ponto não é que o norte global consome mais do que produz (ou produz mais do que consome, à la Keynesianos). O ponto é que ele produz e consome mais do que é necessário, às custas do sul global, outros seres, e futuras gerações. Consumir e produzir menos reduzirá o impacto feito nos outros. Isso é uma questão de justiça social e ambiental: um “encolhimento e redistribuição” do 1% global (e em uma menor medida dos 10%, o que inclui as classes médias da EuroAmérica) para o resto. Tais invocações da simplicidade sóbria podem ressoar com o latente senso comum sobre a “boa vida” presente em várias culturas, do Ocidente e Oriente. Pode recuperar a crítica comum ao excesso das mãos dos austericidas que hipocritamente a usam para justificar suas políticas regressivas.

Possibilidades políticas

O decrescimento é uma palavra-chave circulando principalmente nos círculos de ativistas. Na Grécia e Espanha, ela circula entre anarco-cooperativistas e eco-comunalistas, incluindo muitos nas bases jovens de partidos como Syriza e Podemos. É uma palavra presente, ainda que não dominante, nas praças ocupadas e nas economias solidárias que delas nasceram. Já não é nova entre os verdes, já vem de antes do “desenvolvimento sustentável” e as divisões entre radicais “fundamentalistas” e pragmáticos “realistas”. Um sinal da re-radicalização dos verdes europeus, é que o Equo, partido espanhol, representado no Parlamento Europeu, apoiou explicitamente uma agenda “pós-crescimento” (seu parlamentar Florent Marcellesi se colocou a favor do decrescimento). A campanha nacional dos verdes britânicos também foi “pós-crescimento” ou “decrescentista” em espírito, ainda que não em nome.

Clamar pelo decrescimento explicitamente é um suicídio eleitoral em um ambiente dominado pela mídia corporativa. Mas o trabalho de base é necessário para fazer do decrescimento um senso comum difundido. Nesse momento, quanto maior a proximidade de um partido do poder, maior a probabilidade de que ele se dissocie da ideia de decrescimento.  Pablo Iglesias assinou o manifesto decrescentista “Última Chamada”. Mas como a The Economist notou acertadamente, ao passo que o Podemos amadureceu, deixou para trás ideias “malucas” como “decrescimento” e “anticapitalismo”. Os paralelos com a nova esquerda na América são óbvios. Correa ou Morales foram eleitos a partir do apoio de movimentos ecológicos e indígenas com filosofias similares ao decrescimento. Uma vez no poder, a realpolitik e políticas redistributivas baseadas em crescimento ditaram que o capital seria acomodado e a economia seria abastecida pelo extrativismo.

Alguém poderia esperar que pelo menos os partidos da nova esquerda da Europa rejeitariam a ideia de colocar o crescimento como sua meta principal. Sem dúvidas, as crises reassentam o imaginário do crescimento, sempre como uma meta progressista. Um ativista do Podemos na Catalunha comentou para mim que “na crise atual, só podemos falar em crescimento”.    Ainda assim, isso não é totalmente verdade. Demanda coragem e imaginação, mas não é impossível. A coligação Barcelona em Comum ganhou as eleições sem mencionar o crescimento nenhuma vez em seu programa. Isso pode ter a ver com as raízes orgânicas do movimento do decrescimento e ideias relacionadas já presentes na sociedade civil de Barcelona, além do florescente movimento de economia solidária da cidade. Muitos dos meus amigos e colegas trabalharam para o programa do partido, que se compromete com uma renda cidadã, taxação verde, demanda por espaços verdes, uma cooperativa municipal de energia, menos uso de recursos e lixo, e moradia social. Entre as primeiras decisões da nova prefeita, Ada Colau, foi uma moratória na criação de novos hotéis e o abandono da proposta de sediar as Olímpiadas de Inverno de 2026. Santi Villa, ministra do ambiente da Catalunha até 2015 e uma jovem aspirante a conservadora, acusou-a de liderar um “partido do decrescimento” ( porém omitindo que ele, uns meses atrás, tentando ficar no topo das últimas ideias internacionais acerca dos debates sobre aquecimento global, também advogou em favor do decrescimento).   

Keynesianismo sem crescimento

O programa econômico do Podemos foi desenhado por dois economistas socialistas e keynesianos (Vicenc Navarro e Juan Torres), que frequentemente têm escrito opiniões contrárias ao decrescimento. Pelo menos, o programa evita referências claras ao crescimento. Poderia este ser um sinal de espaço para um “Keynesianismo sem crescimento”? Eu defendi que há. Pode-se imaginar políticas fiscal e tributária que mudem em favor das classes trabalhadoras e rumo à alternativa verde, do cuidado, ou estímulo a atividades de consumo de baixa intensidade por aqueles em necessidade, ainda dentro de um padrão médio de contração econômica. Essa é dificilmente seria uma visão de Keynes, mas talvez esteja apta para economias secularmente estagnadas. 

Diferente do município, cujas responsabilidades fiscais são limitadas, uma nação sem crescimento pode ter problemas para financiar seus serviços de bem-estar social. Pelo menos a princípio, porém, não vejo motivo pelo qual os custos da educação e da saúde devam aumentar de 2% a 3% por ano (a taxa do suposto crescimento necessário). Há um imenso espaço para reverter terceirização e compras superfaturadas, banimento de megaprojetos, ou descentralização de serviços, como saúde preventiva ou creches, e compartilhá-los com com redes de solidariedade. Países mais pobres como Cuba e Costa Rica possuem educação e saúde de ponta. Impostos mais altos sobre o capital podem compensar a perda de receitas decorrente do decrescimento. Bem-estar sem crescimento é teoricamente possível, mas nenhum partido de esquerda ousou pensar o que seria necessário para colocá-lo em prática. 

Um grande obstáculo é a dívida. Sem crescimento, a dívida como percentual do PIB aumenta. As taxas de empréstimo disparam vertiginosamente, à medida que a probabilidade de pagamento dos mesmos diminui. Isso é o que faz o Keynesianismo do decrescimento menos plausível. Sem crescimento, a dívida pública tem que ser, mais cedo ou mais tarde, reestruturada ou eliminada por decreto ou por inflação. Há precedentes históricos para isso. Mas uma vez feito, não pode ser repetido. Sem dívida, o espaço para expansão fiscal fica limitado.

A urgência sobre a questão da dívida pública pode explicar as diferenças entre Espanha e Grécia. A ascensão do Syriza inicialmente encheu de esperança por “outro mundo” que se tornava possível: a base, especialmente a juventude, do partido consistia de cooperativistas mais verdes que, similar a um espírito decrescentista, apostavam em – uma não totalmente definida – “economia solidária”. Todos os grandes quadros do partido, porém, falaram sem maiores asteriscos a favor do crescimento, enquadrando-o como uma alternativa à austeridade. Nas negociações com o Eurogrupo houve uma tentativa de vida curta em avançar com a proposta de Joseph Stiglitz por uma “cláusula de crescimento”: a Grécia condicionaria ao crescimento seus pagamentos da dívida. Tais demandas eram condenadas como “ultrarradicais”; falar sobre economia solidária sem crescimento seria mais insano do que a insanidade. 

Uma Economia Solidária

Alguns comentaristas internacionais sonharam que um “não” à Troika e uma saída do Euro abriria o caminho para uma transição para o decrescimento e para a Economia Solidária (Hinton 2015). Porém, não houve força política na Grécia advogando por isso. A esquerda pró-dracma do Syriza, agora um outro partido chamado “Unidade Popular” é ardentemente produtivista; seu líder possui um histórico ambiental como Ministro da Energia, que inclui planos para novas plantas domésticas de carvão e combustível como subsídio para indústrias. Apesar da fenomenal expansão e importantes conquistas da Economia Solidária na Grécia, ela ainda é um movimento social marginal (bem menor que na Espanha) e suas redes são insuficientes para satisfazer as necessidades da população no caso de um período de transição. Uma suave contração econômica fora da zona do euro é improvável: era precisamente o medo da comida importada ou escassez de remédios e caos econômico no período de crise que assustou Alexis Tsipras a assinar um novo memorando. Países como Japão, com independência fiscal, monetária, e capacidade de emitir e financiar dívida na sua própria moeda, estão melhor posicionados para sustentar o emprego e bem-estar social sem crescimento (o Japão não vê crescimento há mais de 10 anos, uma década “perdida” só aos olhos dos economistas). Mas, claro, um capitalismo sem crescimento é inconcebível, e o Japão tenta arduamente relançar o crescimento (com pouco sucesso até então). 

A impossibilidade de imaginar forças políticas ascendendo ao poder com uma agenda do decrescimento faz alguns decrescenstistas argumentarem que a mudança só pode vir a partir da base da sociedade e não do Estado, através de um caminho “involuntário”, por onde os cidadãos se auto-organizarão ao passo que a economia estagnará com a falta de crescimento, trazendo crises. Eu concordo que uma transição ao decrescimento dificilmente seja voluntária e que aconteça em nome do “decrescimento”; ela será um processo de adaptação ao estágio estagnado da economia. Eu não posso ver, porém, como isso pode acontecer sem também ocupar o Estado, com um reforço mútuo da sociedade civil e da sociedade política, práticas militantes de base, e novas instituições.

Talvez nenhum partido de esquerda ousaria questionar abertamente o crescimento, mas, querendo ou não, eu acho difícil de ver a longo prazo a esquerda europeia (que, diferente da sua contraparte latinoamericana, não pode contar com uma bolha de commodities) poder evitar de se debruçar sobre o problema de como governar sem crescimento. O crescimento não é somente ecologicamente insustentável mas, como economistas abertamente admitem (de Piketty à Lawrence Sumers e os “estagnacionistas seculares) será cada vez mais improvável para as economias avançadas (SUMMERS, 2013).

O Capitalismo sem crescimento é selvageria. O decrescimento não é uma teoria clara, um plano, ou um movimento político. Ainda assim é uma hipótese cujo tempo chegou, à qual a esquerda não pode mais se dar ao luxo de evitar. 

REFERÊNCIAS

Bosquet, M. Proceedings from a public debate organized in Paris by the Club du Nouvel Observateur. Nouvel Observateur, Paris, 397, p. IV. 1972.

DALE, G.. “The growth paradigm: a critique.” International Socialism, 134, 2012

EVERSBERG, D.; SCHMELZER, M. “Über die Selbstproblematisierung zur Kapitalismuskritik.” Forschungsjournal Soziale Bewegungen, 29(1), 9-17. 2016.

GORZ, A.; VIGDERMAN, P.; CLOUD, J. Ecology as politics. Black Rose Books, p.13. 1980.

HARVEY, D. Seventeen contradictions and the end of capitalism. Oxford University Press (UK), 2014.

HINTON, J. This endless quest for growth will see Greece self-destruct. The Guardian, 2015. The Guardian. Disponível em: < https://www.theguardian.com/sustainable-business/2015/jul/07/this-endless-quest-for-growth-will-see-greece-self-destruct>. Acesso em: 11 de novembro de 2021.

JACKSON, T. Let’s be less productive. The New York Times. NY Times, 2012. Disponível em <https://www.nytimes.com/2012/05/27/opinion/sunday/lets-be-less-productive.html>. Acesso em: 11 de novembro de 2021. 

KLEIN, N. This changes everything: Capitalism vs. the climate. Simon and Schuster, 2015.

KRUGER, O. Laudato Si as signalling towards Degrowth. 2015.

MITCHELL, T. Carbon democracy: Political power in the age of oil. New York: Verso, 2011.

PIKETTY, T. Capital in the twenty-first century. Belknap Press, 2013.

YARROW, A. L. Measuring America: How economic growth came to define American greatness in the late twentieth century. University of Massachusetts Press, 2010

SUMMER, L. Transcript of Larry Summers speech at the IMF Economic Forum. 2013. Disponível em: < https://www.facebook.com/notes/randy-fellmy/transcript-of-larry-summers-speech-at-the-imf-economic-forumnov-8-2013/585630634864563>. Acesso em: 11 de novembro de 2021.

* Economista grego e cientista ambiental. Trabalha com economia ecológica e economia política. É membro do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados (Icrea) e professor da Universidade Autônoma de Barcelona, e um dos mais reconhecidos defensores da teoria do decrescimento.

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Tecnologia social, saneamento ecológico e as práticas do coletivo Sapiência Ambiental

Dados do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS) de 2020 revelam que, no Brasil, quase 100 milhões de pessoas não têm acesso a uma rede de esgoto. Além disso, quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. São números que mostram a importância do trabalho da Sapiência Ambiental, projeto que há seis anos utiliza da tecnologia social e do saneamento ecológico para levar esses direitos básicos às vidas de comunidades inteiras. Conheça mais sobre eles, através do depoimento de Rafael Martese Privato *

A Sapiência Ambiental surgiu em 2015, a partir da reunião de um grupo de engenheiros, gestores ambientais e permacultores recém graduados. Desde então, o que nos movia era a possibilidade de consolidar um modelo de negócio capaz de gerar uma remuneração digna para seus membros e, ao mesmo tempo, ter sua atuação calcada nos princípios da Permacultura (cuidar das pessoas, cuidar da terra e partilha justa das riquezas) e da Engenharia Popular (criação de tecnologias sociais e participação social). Nossos membros possuem experiência com projetos de Agricultura Urbana, Permacultura, Saneamento Ecológico e Agroecologia. 

Durante a graduação e pós, atuamos de forma voluntária, em projetos de extensão Universitária do Núcleo de Tecnologias Sociais e Agroecologia (Agroeco) do Escritório Piloto da Escola Politécnica da USP, e também do Núcleo São Paulo dos Engenheiros Sem Fronteiras. 

Enquanto membros do Agroeco, colaboramos com o desenvolvimento de tecnologias sociais de saneamento rural, tendo atuado em parceria com o assentamento Dom Pedro Casaldáliga, localizado em Cajamar e vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como membros dos Engenheiros Sem Fronteiras, participamos ativamente da frente Permacultura em Movimento, em especial nos projetos: Bioconstrução (em parceria com a EMEF Desembargador Amorim Lima), Cidade Agroecológica (junto à Regional Grande SP do MST) e Permacultura na Ocupação (em parceria com movimentos de moradia vinculados ao Programa Minha Casa Minha Vida Entidades).

Escritório cooperativo de projetos socioambientais

Em conjunto, definimos a Sapiência Ambiental como um escritório cooperativo de projetos socioambientais. Isso significa que somos uma organização que não tem como objetivo a distribuição de lucro, mas, sim, a geração de renda para seus membros, viabilizando a dedicação integral de nosso tempo à realização de projetos e ações com alta relevância para a sociedade. Temos como pilares a engenharia popular, a educação e os princípios da permacultura, e somos formados por 3 membros: André Kenez, Vitor Chaves e Rafael Martese.

Ressaltamos que o trabalho da Sapiência Ambiental, diferentemente da grande maioria das iniciativas encontradas no mercado, não possui como diretriz a obtenção do lucro máximo.

Porém há, certamente, um enfoque de gerar renda para seus membros e para a manutenção e expansão de nossa estrutura. Esta característica é importante de ser observada, pois, se por um lado há empresas que pouco se importam com as consequências socioambientais resultantes de suas ações, há, por outro, uma visão romântica por grande parte da sociedade de que os projetos sociais devam ser feitos apenas a partir de trabalho voluntário e benevolência. Hoje em dia, frente à atual conjuntura política, observamos inclusive um movimento de criminalização do terceiro setor, no qual diversas Organizações da Sociedade Civil vêm sendo taxadas como oportunistas e acusadas de utilizar sua atuação apenas em benefício próprio. 

A experiência mostrou-nos, entretanto, que a não profissionalização dos membros resulta em alta rotatividade de recursos humanos e/ou precarização do trabalho, o que acaba por diminuir a qualidade, longevidade e complexidade dos projetos.

O projeto Cuidando das Águas

Atualmente, a maior parte do tempo de trabalho dos membros da Sapiência Ambiental é dedicada ao projeto Cuidando Das Águas. Trata-se de um projeto socioambiental de acesso a água e sistemas de tratamento de esgoto ecológico em regiões em que há negligência do Estado. Desde agosto de 2019, no extremo sul da cidade de São Paulo, principalmente nos distritos do Grajaú, Parelheiros e Marsilac, construímos 21 sistemas de tratamento de esgoto ecológico nas propriedades de agricultores(as) familiares e aldeias da etnia Guarani no extremo sul da cidade de São Paulo, em parceria com agricultores orgânicos e membros da Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo – Cooperapas, Centro de Trabalhos Indigenistas, PWTECH, AMIB – Associação de moradores da Ilha do Bororé, Navegando nas Artes, Imargem, Associação Comunitária Pequeno Príncipe e as ONG ProBrasil e OIA O Instituto Ambiental.

Metodologia de trabalho

A primeira etapa do trabalho é realizada através de visitas técnico-pedagógicas em conjunto com lideranças territoriais. As visitas têm como objetivo tanto identificar a situação sanitária das famílias, como sensibilizá-las sobre a importância do saneamento. Nas visitas também é realizado um primeiro levantamento a respeito das condições do terreno, altura do lençol freático, tipo de solo, proximidade de corpos d’ água, níveis, localização do sistema, dentre outras características técnicas necessárias para o projeto.

A seguir, é iniciado o planejamento e execução das obras junto aos moradores, onde o passo a passo construtivo e os detalhes serão partilhados para que o conhecimento construtivo seja replicado entre os moradores no próprio território.

O diálogo com as comunidades e o aprendizado pessoal

A partir de soluções baseadas na natureza para saneamento, que são tecnologias inspiradas na natureza e cientificamente projetadas, a construção de cada tecnologia é feita co-participativamente com a comunidade, visando integrá-los ao processo de planejamento e tomada de decisões.

Com o envolvimento popular aliado ao apoio técnico da equipe, as tecnologias não são impostas, mas dialogadas em conjunto com a comunidade e adaptadas a cada situação e território. Graças a esse processo participativo, os moradores locais se apropriam dos métodos construtivos para replicarem este tipo de solução de saneamento descentralizado, e, além disso, poderem gerar renda e economizar no investimento em fertilizantes, pois os próprios sistemas de tratamento geram biofertilizantes. 

Os sistemas são pensados para terem uma fácil manutenção, de forma que os próprios moradores possam realizá-la. Com isso, tem-se a disseminação de uma tecnologia simples e eficaz, baseada no conhecimento científico e na troca de saberes da própria comunidade, dando-se substrato a este importante processo de inovação social.

Mas para além desse ponto profissional, os trabalhos multidisciplinares, o exercício da escuta e compreender pontos de vistas e percepções distintas, tem nos ajudado muito no crescimento individual de cada um dos membros.

É um grande desafio construir uma nova forma de trabalho, de criar laços afetivos e intercalar entre dias de escritório escrevendo editais, organizando reuniões, fazendo projetos e estar em campo, construindo sistemas ecológicos de tratamento de esgoto, conhecendo pessoas, histórias, aprendendo muito com quem conhece a terra e seus ciclos, tem sido muito saudável e retroalimenta nossa vontade de seguir nesse caminho. Ainda mais vivendo em um período do tempo em que o capitalismo predatório, imediatismo e as estruturas hierárquicas são pilares de uma empresa de “sucesso”.

* Formado em Administração com ênfase em Comércio Exterior e Gestão Ambiental, há 5 anos atuando em projetos de agroecologia. Hoje atual responsável pelo departamento financeiro, captação de recursos e comunicação da Sapiência Ambiental

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Stein Haus: a cerveja orgânica e agroecológica da Coopernatural

Quando Ricardo Fritsch e outros dez agricultores começaram a vender seus alimentos em uma tenda à beira da BR-116, há 20 anos, eles provavelmente não imaginavam que estavam diante do início daquela que se tornaria uma das marcas mais conhecidas de orgânicos no país: a Coopernatural. E no meio disso tudo nasceu outra experiência única, a cerveja Stein Haus. Conversamos com Ricardo para entender melhor a história da Coopernatural e como a Stein Haus surgiu, tornando-se o que é hoje 

Ao estudarmos Economia Solidária, aprende-se que ela possui – pelo menos – seis princípios básicos: autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo e consumo solidário. Unidos, elas criam as condições para que a Ecosol cumpra seu objetivo, que é organizar a produção, o consumo e a distribuição de riqueza focando na valorização do ser humano, e não do capital.

Mas existe um outro fator importante nesse processo, no entanto, igualmente essencial para qualquer Empreendimento Econômico Solidário que queira ter sucesso e longevidade: a organização. Sem ela, o empreendimento pode se perder em si mesmo e não conseguirá autossustentar nem a si, nem sua própria rede.

Quando há essa organização, porém, o EES consegue sobreviver às dificuldades iniciais, cresce e pode até se tornar, anos depois, em uma referência nem seu segmento – como é o caso da Coopernatural, localizada no pequeno município de Picada Café/RS. Ela nasceu a partir da iniciativa de 11 agricultores da região, entre eles Ricardo Fritsch, com quem a Alternativas Solidárias conversou.

“A Coopernatural surge em 2001, ainda como associação, por conta de duas demandas que existiam entre nós: ter uma produção agroecológica limpa e saudável, e comercializar o excedente das produções em um espaço, à beira da BR-116, todos os finais de semana e feriados. Na época, tinha bastante produtos in natura, frutas, legumes e folhosos. Éramos, na época, em sua maioria, agricultores integrados, que ou produziam frango para engorda, ou produziam leite para uma empresa que fornecia ração para animais, ou ainda faziam reflorestamento de Acácia”, explica.

Era um trabalho difícil, pois de acordo com Ricardo as integradoras prejudicavam demais o trabalho dos agricultores, porque tanto o frango quanto o leite já eram uma commodity nessa época, o que acarretava em muita desvalorização do trabalho. Além disso, ainda segundo ele, os agrotóxicos já estavam muito presentes na agricultura e prejudicavam bastante a qualidade do alimento. 

Os primeiros anos

Entre 2001 e 2004, o grupo atuava na forma de associação, com o nome Associação Vida Natural. Isso pois apenas nesse ano foi possível reunir os 20 integrantes necessários para fundar uma cooperativa, que foi constituída em 21 de setembro com o nome Cooperativa Agropecuária de Produção e Comercialização Vida Natural, criada sob um modelo de gestão e produção definido após muitas visitas a outros agricultores agroecológicos, especialmente do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

“No início foi difícil pros agricultores, pois nem todos enxergavam todo o processo. Quando se trabalha com integradoras, só se enxerga parte dele. Alguns tinham dúvidas sobre se conseguiriam sustentar suas famílias e os seus negócios. Por isso foi importante visitar outros grupos, pois foi o que nos permitiu ter a confiança de que realmente era possível”, afirma.

A essa altura, segundo Ricardo, a tenda já não absorvia mais toda a produção dos agricultores, então foi necessário ter “criatividade” para escoar os produtos. “Nós tínhamos, por exemplo, uma lista de agricultores que promoviam eventos temáticos sobre agroecologia. Naquela época, falar de aproveitamento de folhas de cenoura ou beterraba não era tão comum assim, né? Aí eles convidavam os nossos agricultores para apresentar seus produtos”, diz. Além disso, a Coopernatural começava a se fazer presente em feiras agroecológicas, onde exibia não apenas seus produtos in natura como alguns agroindustrializados, que já eram produzidos desde 2003.

“A ideia de agroindustrializar foi uma forma de aproveitar melhor os produtos. Porque se nós levássemos a uva para a tenda e não vendesse em dois dias, por exemplo, no terceiro ela virava geleia, e assim a gente não perdia nada. Comprávamos os vidros e tampas coletivamente e assim passamos a ter outros produtos à disposição, fomos diversificando”, lembra.

Foi como Coopernatural que o grupo conseguiu seu primeiro cliente fora do estado, uma empresa de orgânicos de Campinas/SP, e também participou de sua primeira feira fora do estado, um evento de Economia Solidária em São Paulo/SP, no Ibirapuera, já em 2005.

“Foi um ótimo evento para nós, pois havia muita representatividade quilombola, bastante de grupos de mulheres, artesanato, mas muito pouco de agroindústria. Além disso, nos destacamos pelos nossos preços, pois fomos para a feira com a mentalidade de praticar um valor justo nas mercadorias. Vendemos todos os itens que levamos”, lembra,.

Ricardo explica que essa mentalidade vinha da vivência acumulada em eventos como o Fórum Social Mundial e a feira de Santa Maria/RS, da Irmã Dulce, que era realizada em um espaço que não era cobrado. “Então ela sempre dizia: ‘pratiquem apenas um pequeno lucro para o combustível, mas deixem os produtos num valor justo para o pessoal conhecer’. Ela insistia muito nisso”, afirma. 

A parceria com o Sebrae

Havia algo, porém, que precisava ser melhorado: a apresentação dos produtos, que não era tão “profissional”, segundo Ricardo: os rótulos eram impressos na impressora, com data de validade, escrita à caneta. Era necessário aperfeiçoar. 

“Com o tempo, fomos encontrando os pontos onde era importante investir o nosso tempo e dinheiro para evoluir. Foi quando iniciamos uma parceria com o Sebrae, na forma de consultoria. Fizemos um planejamento estratégico, e tivemos a assessoria de um engenheiro de alimentos, um uruguaio chamado Álvaro Lopes. Ele nos ajudou muito a crescer em vários aspectos, desde a padronização até a própria produção. Isso aconteceu em um bom momento, pois em 2006 a nossa comercialização de agroindustrializados já tinha tomado uma dimensão tal que a tenda já tinha cumprido sua função”, explica. 

Foram várias as ações da consultoria, mas Ricardo destacou algumas. Uma das mais importantes foi a transformação das cozinhas onde as geleias eram feitas em mini agroindústrias. “Quando o consultor veio aqui, constatou que não tinha dinheiro para uma fábrica. Então essa foi a solução que ele encontrou. Nós concordamos, e assim foi feito. Somente em 2010 nossa fábrica de geleias ficou pronta”, diz. 

Outro ponto foi a contratação de empresas para padronizar os rótulos e construir um site. Medidas que ajudaram a melhorar a qualidade não apenas dos produtos, mas agregar valor aos mesmos.

A consultoria do Sebrae foi uma virada na história da Coopernatural. “Conforme fomos evoluindo, passamos a fazer parte de feiras inclusive no exterior, em países da Europa, da África, no Peru… em vários outros lugares. Fomos um pouco mais longe”, afirma Ricardo, rindo.

Questionamos a que ele atribui o crescimento e sucesso da cooperativa. A resposta foi simples, mas esclarecedora. 

“Nós sempre fomos organizados, e rápidos, acho que isso nos ajudou. A cada cinco, seis horas, respondíamos todos os e-mails. E isso muitas vezes significou credibilidade, eficiência e confiança junto aos clientes, parceiros. Certos órgãos percebiam isso e apostavam na gente. Conseguimos presença em muitas feiras e eventos sendo subsidiados, por exemplo. Te diria isso”, diz. 

A Stein Haus

E como a cerveja entrou no caminho da Coopernatural?

“Eu estudei na Alemanha em 1989 e 1990, e fiz um curso que aqui no Brasil se interpretaria como ‘Técnico em Agropecuária’, ou algo do tipo. E durante o curso, visitei umas cinco cervejarias. Mas era algo ainda muito distante para nós no Brasil, tanto é que naquela época o processo de produção da cerveja era diferente de hoje”, lembra.

“Mas o tempo passou, e em 2012 ou 2013, com a ascensão da cerveja artesanal no Brasil, resolvemos estudar a possibilidade. Nós já estávamos trabalhando com alguns grãos, e fomos verificar se havia alguém no Brasil que produzia cevada agroecológica. Encontramos um, mas ele produzia para o trato animal, não para comercializar. Precisamos conversar com ele, e em 2014 fizemos uma proposta para ele plantar cevada. Ele concordou”, afirma Ricardo. 

A cevada foi colhida apenas em 2015, mas ainda faltava uma etapa: a malteação. Somente depois de muita pesquisa, Ricardo encontrou alguém que fizesse o processo: um professor chamado Rodolfo Heitor Vargas Rebelo, que possuía uma malteria em Blumenau/SC. “Conhecemos ele em um curso, e depois de conversarmos ele se dispôs a maltear um pouco de cevada para nós. A partir daí, tudo andou: em maio a nossa cevada foi malteada, fizemos os testes e três meses depois nós já tínhamos o registro junto do Ministério da Agricultura para a produção de cerveja”, recorda.

Foi graças à organização que, novamente, um desafio para a cooperativa que poderia ser muito complexo acabou não sendo. “O MAPA fez a auditagem na nossa unidade em agosto, antes de iniciarmos a produção. Desde o início empoderamos o fiscal de informações, para evitarmos ao máximo qualquer contestação. E assim aconteceu”, afirma. 

Da mesma forma, ocorreu a certificação da cerveja como orgânica. “Deixamos as autoridades cientes de todas as etapas, com todas as documentações em dia e bem explicadas. Já tínhamos um bom relacionamento com a Rede Acolhida no estado, e também com o Núcleo Serra. Além disso, os produtores da cevada já eram certificados e bem conhecidos na região e no meio da agroecologia, isso facilitou. O último passo foi certificar a malteação, mas levamos um fiscal até Blumenau para fazer essa auditagem, analisar o processo e conhecer o espaço, para garantir que tudo estaria dentro dos parâmetros da produção orgânica. Ele foi aprovado e assinou um termo de compromisso e, até hoje, todo o processo dentro da malteria é gravado, exceto as etapas onde existe algum segredo industrial – mas mesmo essas partes foram auditadas”, explica. 

Então, em novembro de 2015, a Coopernatural lançou a cerveja Stein Haus Doppel Weizenbier, primeira orgânica e sustentável produzida no país. “Stein Haus”, em alemão, significa “Casa de Pedra”. É um nome que faz alusão ao local onde ela é produzida, um prédio construído com pedra basalto. “Construímos com esse material não por causa da cerveja, mas do vinho, que produzimos lá também, e para o vinho é conveniente a temperatura interna do local seja mantida”, afirma. Segundo Ricardo, algumas pedras na construção pesam mais de 100 quilos, e todas foram retiradas ali, do entorno das plantações. “Os construtores foram verdadeiros artesãos. Eles removeram as pedras da roça e as esculpiam manualmente até ficar razoavelmente retangular. Além disso, elas são apenas rejuntadas, não há massa entre elas, pois o próprio peso da pedra é o que sustenta a construção”, detalha.

Hoje, a carta de cervejas da Stein Haus tem 21 variedades. “É preciso de vários maltes especiais para isso. Com o tempo a malteria de Blumenau foi se desenvolvendo e hoje ela produz cerca de oito motos especiais. Assim fomos incrementando nossa carta de cervejas. Além disso, temos nosso grupo o Tiago Genehr, que já foi foi cervejeiro de uma pequena marca conceituada de cerveja. Ele saiu dela quando a empresa foi vendida e hoje está conosco, construindo receitas. Ele simpatiza muito com nossa causa”, conta.

Atualmente, a Stein Haus conta com a produção de grãos (cevada, trigo, centeio e aveia) em Santo Antônio do Palma/RS, e segue com a malteação em Blumenau, sempre no início de janeiro. As vendas ocorrem para todo o Brasil, mas segundo Ricardo cerca de 70% se concentra na região Sudeste e no Distrito Federal.

Os desafios da pandemia

Ricardo conta que os agricultores se preocuparam com a pandemia do coronavírus, no seu início, pois temiam que as vendas parassem. Por isso, procurou amigos agricultores que manteve, da época em que estudou na Alemanha, para saber como eles haviam passado pelos momentos de crise, meses antes. E se aliviou.

“Eles me disseram para não me preocupar, pois muitos alemães passaram a cozinhar de casa, e a demanda por alimentos havia aumentado por lá. Então acreditavam que aqui não seria diferente. Eu tive um cenário muito antecipado de como tudo foi, então peguei essa cartilha e coloquei debaixo do braço. Nos preparamos para ter alimento para mais pessoas, e não menos, e deu certo, pois crescemos mais de um dígito desde o início de tudo”, afirma.

O único produto afetado, diz ele, foi um que estava em estudo: o chope artesanal, que chegou a ser apresentado em algumas feiras regionais, mas foi inviabilizado pela pandemia.

A comunidade e a natureza

Picada Café fica na encosta da Serra Gaúcha, a 90 km de Porto Alegre. Possui cerca de 5500 habitantes, mas quando a cooperativa começou tinha cerca de 2400, segundo Ricardo. É muito conhecida pelas indústrias de couro e calçadista, tendo mais população durante a semana que nos finais de semana.

“Por causa disso, a Coopenatural acaba ainda não sendo conhecida por todos os habitantes aqui, mas realizamos nossas ações com a comunidade. Realizamos palestras, e campanhas nas escolas, como uma de reciclagem que foi promovida durante alguns anos. Também já fomos fornecedores de alimentos para a merenda escolar da rede municipal, e temos um espaço no Parque Municipal Jorge Kuhn onde comercializamos nossos produtos. Além disso, dentre a parte da população que nos conhece, contamos com grande apoio e adeptos, sem falar no apoio de todas as legislações do município”, detalha.

Os aprendizados foram muitos desde o início da Coopernatural. Segundo Ricardo, o futuro se mostra muito promissor para os 75 cooperados e agricultores parceiros. E o que fica, de tudo que já viveram, é a forma como todos passaram a se relacionar com a natureza:

“O agricultor agroecológico aprendeu a se comunicar com a natureza. Isso é muito importante, ele conseguir se comunicar e saber interagir com e a favor da própria natureza, e saber responder àquilo que ela tenta lhe dizer para conseguir produzir. Alguns têm esse conhecimento acumulado de outras gerações, outros adquirem com os ensinamentos dos próprios cursos que participamos. São essenciais para que façamos bem nosso trabalho”, finaliza.

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APAEB Valente: uma caminhada de luta e resistência

Um trabalho de base, iniciado há 50 anos em Valente/BA, culmina na criação de uma associação de pequenos agricultores que se estende a diversos municípios do estado e, desde então, graças à organização comunitária, vem superando dificuldades, desafios e acumulando diversas conquistas. Em um texto dividido em três momentos históricos, conheça a história e trabalho da APAEB, contada por Ismael Ferreira de Oliveira *

A ORGANIZAÇÃO SOCIAL EM VALENTE

Por volta de 1971/1972 com a chegada de dois padres italianos à cidade de Valente/BA, começou um trabalho envolvendo as Comunidades Rurais, através das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base. Semanalmente havia reuniões nas comunidades, para ler a Bíblia, mas também para refletir a realidade da população, as dificuldades encontradas na produção, no crédito, na comercialização e na sobrevivência no campo. Eram oportunidades importantes de integração entre as pessoas e as comunidades. 

Nesses encontros se fazia muitas reflexões sobre a realidade vivida pelos pequenos agricultores (não se usava na época o termo agricultores familiares). A principal atividade econômica de Valente vinha do sisal, complementado pela agricultura de subsistência: milho, feijão, mandioca, além de uma pecuária de poucas cabeças bovinas. Uma pergunta constante era: por que os pequenos produtores e trabalhadores do sisal trabalhavam tanto e não ganhavam nem o suficiente para alimentar a família? Porque os preços do milho, do feijão e farinha eram tão baixos quando eles chegavam a colher, já que tinham problemas constantes de seca que comprometiam a produção e eram tão caros quando eles precisavam comprar? Porque os preços do sisal também eram tão baixos?

Essas inquietações foram crescendo e mais gente envolvida também queria respostas. Então, um grupo de pessoas que participava ativamente desses trabalhos nas Comunidades, que chamávamos de “círculos bíblicos”, fez outro questionamento: por que não criar uma Associação ou Cooperativa para beneficiar a fibra de sisal e comercializar direto, visando a garantia de preços melhores para os produtores e trabalhadores?

Nessa época, 1977/1978, o Movimento de Organização Comunitária (MOC), com sede em Feira de Santana, fazia também essa discussão com os pequenos produtores de milho, feijão e mandioca. Começamos, então, a trabalhar a perspectiva da criação de uma organização a nível estadual, para atender aos diversos produtos dos pequenos agricultores.

Esse trabalho foi crescendo e envolvendo os municípios de Feira de Santana, Santa Bárbara, Serrinha, Araci, Ichú e Valente. O MOC já contava com uma equipe técnica (sociólogo, técnico agrícola, teólogo, entre outros), que ajudava nessas reflexões. Foram muitas reuniões em cada município e em Feira de Santana, com representação de todos os municípios, para decidir sobre o assunto. Na época, as cooperativas tinham muito controle do Estado, os estatutos eram padronizados, e havia muita dependência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Não se poderia, por exemplo, criar uma cooperativa dos pequenos produtores, teria que ser mista. Tudo isso teve que ser levado em consideração.

Alguns agricultores conheciam uma grande cooperativa existente em Serrinha, onde os pequenos agricultores apenas eram usados para legitimar a existência da cooperativa, pois na época havia certas vantagens e incentivos ter, no quadro de cooperados, uma porcentagem de pequenos agricultores. Mas os agricultores envolvidos na discussão diziam sempre: “pinto e gavião” na mesma gaiola não dá certo, pois o pinto vai sair sempre perdendo.

Depois de meses de conversas, decide-se criar uma associação, passando a construir os estatutos sociais, tudo conversado e decidido nas diversas reuniões realizadas nos municípios com a participação dos pequenos agricultores e em Feira de Santana ou Serrinha, com representação de todos os municípios.

A FUNDAÇÃO DA APAEB

A APAEB – Associação dos Pequenos Agricultores do estado da Bahia foi fundada em Serrinha -, no dia 02 de julho de 1980, numa grande assembleia geral com representação de todos os municípios, inclusive do bispo da Diocese de Feira de Santana, que apoiou a iniciativa. 

A APAEB nasceu com uma estrutura jurídica de matriz em Serrinha (APAEB Geral) e filiais nos diversos municípios. Tinha um Conselho de Administração Geral e uma Comissão de Organização que cuidava da gestão da instituição em cada município, dentro do estabelecido pelo Conselho Administrativo Geral. Foi contratado um gerente, para atender a todos os municípios. Dois anos depois da fundação, a APAEB já estava estruturada em Serrinha, Feira de Santana, Araci, Ichú e Valente.

No início, os objetivos principais visavam o fortalecimento da organização comunitária, as lutas por políticas públicas para garantir o acesso à terra, saúde, educação, crédito e a comercialização da produção dos agricultores envolvidos. Logo no começo, com apoio da cooperação internacional através do MOC, foi estruturada sede em alguns municípios e formado um pequeno volume de capital de giro que previa a compra do milho, feijão e farinha e seu armazenamento, esperando melhores preços para a venda, visando maior rendimento para os produtores e produtoras. Logo em seguida, foram implantados pequenos postos de vendas, as “bodegas comunitárias”, que serviam de ponto de encontro e de compra e venda entre agricultores, sobretudo produtos de primeira necessidade (ferramentas, açúcar, café, óleo, entre outros).

A APAEB começou a se desenvolver nos municípios, aumentando sua participação no mercado – mas também começaram a surgir os desafios. Os diretores não aceitaram inicialmente a ideia de contratar um gerente, achavam que eles mesmos podiam gerenciar tudo, mesmo esse gerente sendo um filho de pequeno agricultor e envolvido em todo processo de construção da entidade. 

Mas o modelo jurídico implementado também se mostrou um problema: havia muita dependência dos municípios ao Conselho de Administração de Serrinha, tornando as decisões mais lentas. Por outro lado, os municípios eram bastante diferentes, pois as realidades eram muito distintas. Enquanto para Valente a prioridade era o sisal, para Feira de Santana era a mandioca, feijão e milho. Quando tinha um problema com um CNPJ, todos passavam a ter restrições, uma vez que o número era o mesmo, mudava apenas o controle da matriz e das filiais.

Essas divergências levaram à realização de uma consultoria, iniciada no final dos anos 80 e concluída no início dos anos 90, que orientava a criação de associações juridicamente independentes nos municípios, sem nenhuma dependência jurídica uma da outra, mas recomendando manter um processo de articulação entre elas, para manter algumas ações que diziam respeito a todos os municípios, a exemplo das mobilizações diversas reivindicando terra, crédito, seguridade social para os trabalhadores rurais, entre outras.

A APAEB de Valente

A APAEB Valente implantou sua primeira atividade econômica em novembro de 1981, com a inauguração do Posto de Vendas (uma pequena bodega comunitária). Em seguida, iniciou a discussão sobre o sisal, por se tratar da principal atividade econômica da cidade e de muitos outros municípios, além de promover debates sobre outras dificuldades, como as secas prolongadas. Apresentamos a seguir as atividades da APAEB Valente relacionadas ao sisal:

  • A Batedeira Comunitária de Sisal: implantada pela APAEB Valente para fazer o primeiro beneficiamento da fibra. Ela recebe a fibra depois de colhida no campo e, num processo de polimento, retira o pó, deixando as fibras mais macias. Depois, num processo totalmente artesanal, passa pela classificação, tirando as fibras de qualidade inferior, com sujeiras ou muito curtas. Assim, a fibra fica pronta para ser industrializada e transformada em fios, cordas, tapetes e carpetes. 

A Batedeira Comunitária foi construída através da realização de diversos mutirões e apoio financeiro da cooperação internacional através da CEBEMO (instituição católica holandesa que financia projetos de missionários em países em desenvolvimento), que garantiu o material para construir o galpão, alguns equipamentos artesanais para polir a fibra e tirar o pó, e uma prensa para fazer os fardos, além de um pequeno valor para capital de giro, totalizando cerca de US$ 50 mil. Começou a funcionar em 1984, visando comprar a fibra, beneficiar e comercializar diretamente, evitando o processo de intermediação e conseguindo agregar mais valor – algo chamado na época de um “milagre” no sisal. Ao longo dos anos, os desafios para comercialização foram imensos, envolvendo o mercado e até mesmo políticos da região, mas aos poucos, um a um, foram sendo ultrapassados.

  • Fábrica de fios, cordas, tapetes e carpetes de sisal: depois de se firmar no beneficiamento e comercialização da fibra de sisal, vendendo nos mercados interno e externo, tendo chegado a beneficiar e comercializar até 5% de toda produção do estado da Bahia, maior produtor do país, APAEB Valente começa sonhar com a implantação de uma fábrica, e assim agregar valor ao material, gerando mais emprego e renda. Sabíamos que seria um desafio ainda maior, pois era um ambiente de negócios muito restrito. Mas com apoio da cooperação internacional e de um voluntário sueco, começamos a participar de um evento anual sobre fibras duras, promovido pela FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura,  onde se incluía a fibra de sisal. Foi um lugar onde adquirimos muito conhecimento. 

Decidimos então implantar um projeto que pudesse fabricar fios e cordas, mas também tapetes e carpetes, estimado em US$ 5 milhões para construções e equipamentos. Após dois anos de muito trabalho, em 1994 começamos a construção da fábrica com apoio de US$ 500 mil do Desenvolvimento Integral do Sudoeste do Paraná (DISOP), e o restante financiado pelo Banco do Nordeste. A fábrica foi inaugurada em março de 1996, chegando a ter 900 colaboradores em quatro turnos de 6 horas.

DIVERSIFICAÇÃO DAS AÇÕES

No início dos anos 90, começamos perceber que seriam necessárias outras ações. Valente está no semiárido nordestino, castigado constantemente pelas longas estiagens. Assim, se fazia necessária a implementação de projetos estruturantes visando a convivência com a seca. Não podemos fazer chover, mas precisamos encontrar caminhos para conviver com as poucas chuvas. Implantamos então o DDC – Departamento de Desenvolvimento Comunitário, visando apoiar a produção com assistência técnica, capacitação e a diversificação da produção. 

Resolvemos implantar uma Escola Família Agrícola, usando a pedagogia da alternância:, os alunos ficam uma semana na escola e outra com a família, numa integração permanente entre Escola, Família e a Comunidade. Essa Escola começou a funcionar em 1996 e durante 10 anos foi mantida pela APAEB Valente e pelos projetos econômicos / produtivos.

Nos anos 1990 pouco tínhamos de eletrificação rural; não existia ainda o Programa Luz para Todos. Então, com apoio de uma instituição da Holanda, a Fundação DOEN, implantamos um Fundo Rotativo que financiava uma placa solar para as famílias, suficiente para um rádio, uma TV, algumas lâmpadas e fazer cerca elétrica a menor custo. Chegamos a ter mais de 900 famílias beneficiadas com esse projeto.

Foi também em 1994 que começamos um projeto de incentivo à criação de caprinos e ovinos, visando a produção de carne e leite. Em 1999 implantamos um laticínio para receber o leite da cabra e produzir o leite pasteurizado, queijos, doces e iogurtes, garantindo um valor comercial para aquele produto, que além de muito nutritivo, se transformou num importante componente na renda familiar dos agricultores.

Para ajudar no processo de comunicação, ajudamos a criar em 1988 uma Rádio Comunitária e uma Fundação para garantir o funcionamento da rádio. Foram anos de luta visando a regulamentação, o que veio a acontecer muitos anos depois. 

Com o posto de vendas, a batedeira e a fábrica em funcionamento, resolvemos criar o Clube Social APAEB, para garantir um ambiente de esporte e lazer para os sócios, seus familiares e colaboradores. Muitas dessas pessoas não conheciam um clube antes. Esse mesmo espaço era usado para promoção de grandes eventos, trazendo artistas de renome nacional.

Também foram construídos dois importantes espaços de formação, informação, fomento à cultura e realização de mobilizações: a Casa da Cultura, com auditório para 300 pessoas, salas de computação, palco, tela para projeção de vídeos; e o CAIS – Centro de Aprendizagem e Intercâmbio de Saberes, na mesma área que funciona a Escola Família Agrícola, a 12 km da sede do município, com dormitórios para acomodar 104 pessoas, refeitório e auditório para a realização de eventos. Muitos cursos, treinamentos e encontros são realizados nesses espaços, suspensos nos últimos anos por conta da pandemia.

A REESTRUTURAÇÃO DA APAEB VALENTE

Em 2004 / 2005, a APAEB Valente começa enfrentar dificuldades financeiras, principalmente pela defasagem cambial, já que quase 90% das receitas vinham das exportações. Foi necessário um trabalho de reestruturação, visando vencer a crise e os desafios daquele momento. A APAEB precisava enxugar seus custos e reduzir sua equipe. Enquanto isso, foram também buscadas outras alternativas, mas todas elas levariam tempo.

Foram investidos esforços para aumentar a participação no mercado interno e reduzir as vendas no mercado internacional. Ao mesmo tempo, decidimos mudar a forma jurídica, criando unidades próprias, já que o modelo era de matriz e filiais, fazendo com que todas as unidades fossem afetadas pelas dificuldades da fábrica. A APAEB fazia tudo, administrava os projetos econômicos e as atividades educativas / sociais; resolvemos então o seguinte:

  • A APAEB Valente faria a separação das unidades, criando a APAEB Sisal, a APAEB Laticínio e APAEB Posto de Vendas. Cada unidade dessas ia se voltar para a gestão, focando a administração e o mercado;
  • As atividades educativas / sociais (EFA – Escola Família Agrícola, Casa da Cultura, CAIS – Centro de Aprendizagem e Intercâmbio de Saberes, Capacitação, assistência técnica, mobilizações e ações de políticas públicas, entre outras) passariam a ser geridas pela Fundação APAEB.

Esse processo levou alguns anos. As unidades começaram a funcionar a partir de 2011, mas ainda com muitas dificuldades, que aos poucos vêm sendo superadas.

Ao contrário de muitas organizações sociais, que quase sempre dependiam exclusivamente da cooperação internacional ou convênios com os governos federal e estadual, a APAEB sempre teve preocupação com a sustentabilidade social, mas também financeira. Os projetos precisavam ter viabilidade econômica. Mesmo tendo algumas ajudas na estruturação e implantação do projeto, todo o processo de custeio já era assumido pelo próprio projeto, e até por volta de 2008, todas as atividades educativas / sociais foram assumidas pela APAEB. Só depois de 2008/2009 o Governo do Estado da Bahia sinalizou apoiar as Escolas Família Agrícola, e um pouco antes, o Governo Federal começou a fazer alguns convênios para assistência técnica através das organizações sociais.

Existe grande preocupação com a gestão eficiente e ágil, mas garantindo a participação permanente dos diretores, que são todos agricultores familiares. Estamos em um mercado globalizado e muitas vezes acontecimentos de fora nos afetam diretamente, daí a importância do conhecimento não só das realidades nacional e internacional, mas também dos produtores de sisal, dos industriais, dos concorrentes. A inovação e a diversificação da produção foram fatores importantes entre as alternativas adotadas para superar a crise enfrentada.

IMPACTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS

O município de Valente, em 2020, teve um orçamento geral de R$ 60,3 milhões, o que nem sempre é aplicado localmente, visto que muitos fornecedores de produtos e serviços são de fora. Ou seja: o dinheiro acaba saindo para circular em outras cidades. 

Já as unidades da APAEB Valente (APAEB Sisal, APAEB Laticínio e APAEB Posto de Vendas) tiveram, no mesmo período, um faturamento bruto de R$ 75 milhões. Desse faturamento, R$ 66 milhões foram colocados na economia local e regional com pagamento de salários, serviços e matérias primas (sisal e leite de cabra). Esses valores fizeram a economia girar, gerando muitos outros empregos diretos e indiretos, fazendo assim com que a roda da Economia Solidária de fato gire no município.

Nesse mesmo ano, a APAEB Valente, com todas as unidades, gerou 374 empregos diretos. Além disso, 858 famílias no campo forneceram a produção, totalizando diretamente 1232 postos de trabalho. Sabemos que no campo muitas outras pessoas se envolvem no processo de produção e colheita. A Bahia responde hoje por 97% da produção nacional de sisal e gera mais de 400 mil postos de trabalho. O Brasil responde por mais de 50% da produção mundial.

O sisal é produzido atualmente em 9 Territórios de Cidadania, com 67 municípios, sendo que em aproximadamente 40 desses, o sisal ainda é a principal atividade econômica. Em Valente e muitos outros municípios, onde chove pouco e de forma irregular, o sisal e a pequena pecuária são as duas opções para geração de renda da população, principalmente devido à sua resistência às constantes secas.

PRINCIPAIS DESAFIOS

Muitas conquistas foram obtidas nessa caminhada de mais de 40 anos da APAEB, mas existem também ainda muitos desafios pela frente. Mesmo o sisal sendo tão importante para nosso município e região, ele não tem recebido dos governos a atenção que merece. 

Aproveitamos apenas 4% do sisal, que é a fibra. Todo restante vem sendo jogado fora e não se tem ainda pesquisas e tecnologias que permitam a utilização desses 96% desperdiçados (liquido, resíduo e bucha de campo). O equipamento usado na colheita, conhecido como “paraibana” é o mesmo desde o início do uso do sisal enquanto atividade econômica, por volta de 1930, sem nenhuma melhoria tecnológica, que além de ser um trabalho pesado tem muitos riscos de acidentes.

Também não temos pesquisas que permitam novos usos da fibra, garantindo maior mercado e preços mais estáveis. Em muitas oportunidades de maior produção, os preços caem de forma assustadora, pela concorrência com o sintético e outros fatores, não compensando fazer a colheita. Então os produtores são obrigados a “matar” os campos, buscando alternativas no plantio de capim e criação de bovinos, que também não conseguem bons resultados devido às longas estiagens que castigam a região.

Estamos agora em negociação com o governo do estado da Bahia, visando a implantação de algumas usinas de desfibramento, permitindo assim o uso do resíduo (mucilagem) na produção de ração, visto que já existem pesquisas confirmando essa possibilidade. Porém, é algo que depende de tecnologia no desfibramento, que já existe após o desenvolvimento de uma máquina para desfibrar, sem nenhum risco de acidentes. Esperamos também poder usar o líquido na produção de bioinseticidas e biofertilizantes, conforme pesquisas em andamento na – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que apontam para essas possibilidades.

Além disso, se faz necessário um processo contínuo de melhorias no processo produtivo e de gestão, com melhorias tecnológicas e capacitação dos colaboradores, que permitam que a APAEB continue avançando, trazendo mais emprego e renda para Valente e toda região sisaleira.

* Filho de pequenos agricultores, viveu no campo até os 17 anos e trabalhou no sisal como toda criança e adolescente da época. Um dos fundadores da APAEB, administrador e atualmente consultor

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Por uma Educação Solidária e Autogestionária

Quando discutimos alternativas sistêmicas, é comum, em consequência, discutirmos alternativas  de e até ao desenvolvimento, centrando geralmente em questões econômicas. O contexto, porém, deve ser visto de forma mais ampla: tais mudanças não podem ser atingidas sem uma nova mentalidade, que virá por meio da educação. Quem aponta como alternativa um projeto de desenvolvimento autogestionário para educação é Alcielle dos Santos *

Os desafios da escola da atualidade têm sido debatidos por todos os atores sociais nas mais diferentes instâncias. Isso se dá devido à falta de um projeto nacional consistente e articulado, que priorize a Educação com políticas públicas de amplo acesso e, simultaneamente, de atendimento da qualidade educacional. A ausência de tais políticas já promove danos sociais visíveis a todas as camadas sociais e, portanto, torna-se pauta de debate contínuo. 

Por outro lado, apesar de ser pauta dos editoriais nacionais em todos os veículos de comunicação, a discussão de um projeto nacional de Educação ainda é vaga e, pode-se afirmar, secundária, pois também falta ao nosso país um projeto nacional de formação do cidadão brasileiro. Além disso, é urgente a ruptura com um modelo educacional que segue a atender ao capitalismo, e que condena qualquer avanço humanitário frente às mazelas que promove. Diante deste cenário e citando Paul Singer, em seu texto “A Economia Solidária como Ato Pedagógico”, podemos afirmar que “a Economia Solidária é um ato pedagógico em si mesmo, na medida em que propõe nova prática social e um entendimento novo dessa prática”. 

Orientados por esse entendimento, em novembro de 2020, já na conjuntura da pandemia da Covid-19, o Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista (FESBS) promoveu uma live com o título “Educação e Construção da Solidariedade Humana” e propôs às participantes, professoras Helena Singer e Maria Leite, a seguinte questão: como a educação pode contribuir para construir a solidariedade entre os seres humanos, inclusive envolvendo a família, em um sistema em que somos bombardeados diariamente para seguirmos um comportamento individualista, de competição?

Esta pergunta surgiu no FESBS, pois entendia-se como necessário educar para a solidariedade, e, para tanto, havia que se contestar um modelo de sociedade que incentiva o comportamento de consumidor e do empreender solitário e competitivo, ou, ainda, que defende a meritocracia, a absurda crença de que basta esforço para se obter sucesso pleno, desconsiderando-se a desigualdade e a opressão do sistema capitalista.

Não obstante a esse desafio hercúleo, a live do FESBS, buscou discutir um projeto nacional de “homo solidarius”, inspirando-se no revolucionário cubano Che Guevara, que, dentre seus escritos, propôs uma pedagogia para crianças e adultos fundamentada na construção desse homem solidário, o cidadão cubano que denominou como “Homem Novo”. Ou seja, o FESBS, como movimento, apontava que um projeto nacional de Educação precisa conciliar um projeto de homem e um projeto de sociedade, assim como não se pode visar à construção social de forma apartada da dimensão política e de pertencimento social a uma coletividade, uma nação.

O papel do Estado na Educação

Retomando o processo histórico educacional brasileiro no século XX, mais precisamente o período subsequente ao que foi denominado Revolução de 30, intelectuais brasileiros como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles, além de outros dezenove, lançaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação, texto que convocava o Estado Brasileiro a garantir a Educação Pública de forma ampla e equitativa. Esta defesa ensejou, na linha do tempo da educação brasileira, a inclusão do Artigo 205 na Constituição Federal de 1988 que veio a sedimentar a educação como direito de todos e dever do Estado, a ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.

Outros dispositivos legais, no campo da Educação, também foram imprescindíveis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que passou a zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Garantidos, o direito à Educação e os direitos humanos inegociáveis para crianças e adolescentes, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) também tiveram papel crucial, ao incluírem, no plano nacional, as juventudes, em sua diversidade, dando amplitude maior à questão do trabalho.

Tomando-se como ponto de partida para o projeto nacional de Educação a formação cidadã e a qualificação para o trabalho, tem-se duas questões importantes a se destacar: a necessidade de uma formação política que possibilite o entendimento de mundo e a atuação consciente em sociedade, e a emancipação que se dá pelo trabalho. Assim, assume-se um projeto nacional de propósito educacional, mas ainda não se qualifica a pessoa humana, os atores desse processo, considerando seus valores e um projeto humanista de sociedade.

Logo, a lacuna do âmbito da ética da sociedade brasileira permanece sem resposta: qual projeto nacional de Educação é necessário para de fato promover a emancipação, de forma colaborativa, de todos, estudantes e educadores, que compõem a escola?

Atentos a essa questão colocada em reflexão junto ao histórico educacional brasileiro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, nº 9.394/96, e o Plano Nacional de Educação – PNE, Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, tiveram como missão legislar sobre o “como” buscar definir diretrizes nacionais de forma a qualificar a Educação brasileira. Esses dispositivos definiram critérios para o processo de ensino e aprendizagem e apresentaram escolhas didático-metodológicas, fazendo indicações para as escolas públicas e privadas. Em continuidade, e rompendo com a proposta de estabelecimento de “parâmetros nacionais”, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), promulgada como lei federal em 2017, passou a indicar “o que” e “como” construir as práticas pedagógicas da escola, adotando a metodologia de ensino por competências e habilidades. 

Os desafios recentes na formação do cidadão brasileiro

Neste cenário de muitas mudanças, de âmbito estrutural e pedagógico, e frente ao vexatório processo político recente, que incluiu um golpe jurídico parlamentar, o campo da Educação brasileira passou a ser composto por correntes de concepções políticas diversas e concorrentes. Disputas de interesse e de poder entre os atores e influenciadores da Educação nos âmbitos da formação e gestão pública têm produzido ainda mais complexidade. Assim, não se tem uma identidade de cidadão brasileiro, e, em decorrência, também não há um acordo da sociedade sobre que educação, qual projeto tem que ser construído e fortalecido nas escolas do país.

Não bastasse tudo isso, como ingrediente cruel, também a serviço da manutenção do status quo, a pauta de costumes invadiu o cenário da Educação, apontando, entre educadores e projetos de educação, vilões indecorosos que “desviam”, ou mesmo “deturpam”, valores familiares em plena sala de aula. Assim, desafiados por um currículo de formação inicial que não atende às necessidades de sala de aula, por falta de condições de trabalho que incluem salários precários e ausência de recursos em muitas das escolas em que atuam, os professores brasileiros se tornaram alvo de fundamentalistas. Já estes, passaram a ouvir camadas da sociedade negligenciada pelo enfraquecimento dos movimentos de base, o que abriu avenidas para uma atuação tão nefasta à Educação que não se imaginaria possível.

Somando mais um desafio ao cenário atual, a Educação foi exposta à pandemia da Covid-19, sem o mínimo de preparação estrutural e humana, além da absoluta ausência de articulação nacional, via Ministério da Educação. O ensino emergencial remoto, acionado como opção pelas redes educacionais, requereu que os mesmos professores, sob os quais as mais insanas suspeitas foram levantadas, assumissem a responsabilidade de acessar seus alunos, fosse por meio digital, aplicativos de conversa por celular, ou mesmo de porta em porta. Da mesma forma, a estrutura nacional, que inclui até mesmo escolas sem banheiro e a maioria dos estudantes da Educação Básica sem acesso à Internet e a computadores, teve que ser testada do fechamento ao ensino remoto, deste ao modelo híbrido (presencial + remoto) e, recentemente, frente à necessidade de reabertura, a uma onda acusatória, de perdas educacionais.

Testada ao limite e diante do aumento da evasão escolar que se soma a todos os desafios aqui enumerados, a Educação brasileira precisa resgatar-se como um projeto. E se tal projeto educacional visa a formar para a emancipação pelo trabalho, que trabalho estamos a defender? O trabalho explorado, precarizado e desumano serve à nossa sociedade? A Educação é o campo de mudança de chave, aquele que não pode desconsiderar o processo histórico de luta de classes, mas que, assumindo isso, precisa ser o espaço de diálogo e reconstrução nacional para uma nova cultura do trabalho, como menciona Cláudio Nascimento, em artigo em que apresenta uma pedagogia da autogestão.

Como alternativa ao descaminho, o que se propõe é que o alicerce do projeto educacional brasileiro seja a educação para a solidariedade e para autogestão, que tenha a colaboração como valor. Ou seja, não basta uma proposta curricular, há que se ter um projeto humanista que oriente o currículo das escolas não apenas na dimensão do conhecimento, mas também para a transformação da sociedade. Os valores da Economia Solidária – autogestão, cooperação, democracia, solidariedade, respeito à natureza e valorização e promoção da dignidade do trabalho humano – assim como os princípios que a fundamentam, devem ser vistos como pilares de um projeto de educação humanista. A manutenção do modelo capitalista excludente que divide a sociedade em exploradores e explorados é o que orienta a não adoção de um projeto nacional que eduque, de fato, a população para a emancipação pelo conhecimento e pelo trabalho, para uma vida cidadã plena.

Exemplo recente desse posicionamento político do Estado brasileiro se deu no veto à Economia Solidária no currículo das escolas, no texto final aprovado da Lei Paul Singer (Lei nº 17.587, de 26 de julho de 2021), que instituiu o Marco Regulatório Municipal da Economia Solidária na capital paulista. O veto à difusão dos princípios da Economia Solidária na Educação Básica, assim como do georreferenciamento de suas iniciativas, dificulta a criação de oportunidades de se romper com o modelo hegemônico imposto na base da sociedade. Quando isso se dá em São Paulo-SP, tem-se a sinalização de qual deve ser a exigência dos movimentos sociais. “Tudo passa pela educação”, ensinamento do bairro educador de Heliópolis/São Paulo-SP, repassado pelo educador Braz Nogueira, liderança local que dirigiu a EMEF Presidente Campos Salles, é claro para todos aqueles que promovem e/ou influenciam a Educação em nosso país. E para nós, integrantes dos movimentos sociais, essa pauta também está clara? 

Paulo Freire 

A Educação precisa deixar de ser um território de disputa para se tornar um lugar de convergência, ao menos em princípios. Para tanto, há que se realizar audiências públicas, assembleias nas comunidades, abrir fóruns populares e outras ações que possibilitem a discussão de um projeto solidário para a Educação em nosso país.  Só assim evitaremos que se eternize o modelo denunciado por Freire: “o homem novo, ao superar a contradição, através da transformação social, se torna um engodo, mais um opressor de novos oprimidos”: atualmente, o modelo glamourizado pelo discurso do empreendedorismo.

O desvelar da opressão se dá por meio da compreensão crítica, e deve ocorrer simultaneamente nas escolas (Educação formal) e nas comunidades e movimentos sociais (Educação não-formal). Assim, em abordagem dialógica, com altos níveis de participação e representatividade e tendo as escolas como centros de conhecimento e articulação social, seremos capazes de promover a educação do homem novo. Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia da Esperança”, explica como o processo educativo é capaz de reverter a realidade em que vivemos: “a fraqueza dos oprimidos se vai tornando força capaz de transformar a força dos opressores em fraqueza”. 

Ou seja, só o processo educativo é capaz de romper o modelo de educação que forma para o sonho do sucesso individual, sem a conscientização necessária para o entendimento do pertencimento coletivo da vida em sociedade. A compreensão de que estamos em um mesmo planeta e que, como seres humanos, somos semelhantes que precisam ser solidários para continuar a existir, é condição necessária para a formação de indivíduos que atuem para a transformação do cenário atual, em prol da justiça social. 

Precisamos, assim como Paulo Freire nos ensinou, nos mover com essa esperança, mas construindo-a no movimento, como propôs Paul Singer, rumo à utopia, a cada passo, no cotidiano. 

* Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC/SP; mestre em Educação: Formação de Formadores, também pela PUC/SP. Pós-graduada em Aprendizagem Cooperativa e Tecnologia Educacional pela Universidade Católica de Brasília; Licenciada em Pedagogia; também possui graduação em Direito e em Administração de Empresas. Atualmente é Presidenta da Cooperativa de Professores Cipó Educação e atua como formadora e consultora educacional junto à rede pública, privada e terceiro setor

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Ecofeminismo e economia feminista para tecer a sustentabilidade da vida

O ecofeminismo nasceu antes do surgimento do próprio termo. E isso se deve a um motivo simples: a História sempre contou com mulheres de luta em suas páginas, que não aceitavam as imposições e amarras da sociedade. Algumas foram líderes de suas comunidades, outras lideraram revoluções. E hoje, o desafio que se coloca é aliar essa luta a outra, tão importante quanto: a defesa do meio ambiente e a busca por uma economia justa, para além das mazelas do capitalismo. Neste texto, Miriam Nobre * apresenta princípios do ecofeminismo e da economia feminista, seguidos por sua concretização em  práticas coletivas de mulheres agroecológicas

Mulheres que se afirmam como sujeitos coletivos, lutam contra a opressão e concomitantemente afirmam uma relação harmoniosa com a natureza, existem desde muito tempo. Quilombos liderados por mulheres, por exemplo, constituíam-se em espaços de liberdade ao mesmo tempo em que seu plantio diverso voltado para o autoconsumo fazia frente à monocultura da cana que esgotava o solo e as pessoas.

Como diz o belo conto de Eduardo Galeano (2015), as mulheres escravizadas no Suriname antes de escapar enchiam a cabeleira de sementes de milho, feijão, abóbora e chegando nos refúgios dentro da mata “sacodem a cabeça e fecundam, assim, a terra livre”. 

Porém, o termo “ecofeminista” foi publicado pela primeira vez pela feminista francesa Françoise D’Eaubonne em 1974 (Siliprandi, 2015). A relação entre o feminismo e o ambientalismo se dava no âmbito das lutas de feministas pacifistas contra a energia nuclear e o militarismo. Esta corrente feminista com trajetórias diversas pontuou debates dentro do movimento ambientalista, mas também do feminismo. Um exemplo é a contestação de vertentes neomalthusianas que consideram o aumento populacional, em especial entre mulheres pobres do sul, como pressão sobre os recursos naturais.

As ecofeministas questionam o olhar sobre a natureza como recurso e denunciam que sua destruição deriva de um consumo excessivo pelos países do norte e elites do sul global. Frente ao controle da natalidade imposto, chegando à violenta esterilização em massa de mulheres pobres e indígenas no Peru durante a ditadura de Fujimori, elas afirmam os direitos reprodutivos das mulheres e o uso de métodos contraceptivos com seu pleno conhecimento e controle. 

Do ponto de vista epistemológico, sua contribuição é o questionamento da separação entre natureza e cultura, e a ideia de superioridade da cultura, que caracterizam o pensamento e a ciência ocidental.  Nós seres humanos também somos natureza. Natureza e sociedade evoluíram e evoluem de forma conjunta (co-evolução). Exemplo disto é que nos territórios de comunidades tradicionais, inclusive nos caminhos por onde transitam, existe uma grande diversidade de plantas e animais, ou seja, constituem uma sociobiodiversidade. Além do mais, há uma correspondência entre as necessidades alimentares de nosso corpo e os ciclos das plantas. A ideia de que a humanidade e sua cultura são superiores à natureza justifica violências, como os desmatamentos e monoculturas, que têm a mesma motivação que a violência contra as mulheres. 

Esta associação aparece nos escritos do filósofo Francis Bacon que, no final do século XVI, instaura as bases da ciência moderna descrevendo a natureza como uma mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante tortura. Neste mesmo momento histórico, mulheres conhecedoras das ervas e seus usos, que acompanhavam outras mulheres em partos e abortos, eram julgadas nos tribunais da Inquisição e queimadas como bruxas. A imposição de uma lógica mecanicista na ciência demandou a derrota das mulheres que vivenciavam relações complexas com a natureza (Frederici, 2017).

Por esta razão o ecofeminismo manifestou sua crítica a vertentes feministas movidas pela inclusão das mulheres na sociedade e na economia tal como estão estruturadas (feminismo liberal), com demandas como a entrada das mulheres nas forças armadas, o acesso das agricultoras às tecnologias da chamada revolução verde (ver abaixo) ou sua integração nos postos de comando de corporações transnacionais. Também questionou setores do movimento que apostaram em tecnologias desconectadas da natureza para liberar o tempo das mulheres dedicado ao trabalho doméstico (como o uso de comida rápida e ultraprocessada), ou que consideram o corpo e as fases da vida como um constrangimento (uso de supressores da menstruação ou adição de hormônios na menopausa).

No entanto, vertentes do ecofeminismo que defendem a existência de uma essência feminina, associada à maternidade biológica, têm sido questionadas por ocultar diferenças e desigualdades entre mulheres, por considerar a oposição masculino/feminino característica das sociedades ocidentais como universal e a-histórica, por dar justificativa à responsabilização exclusiva das mulheres e no âmbito privado pelos cuidados.

Aquelas vertentes nomeadas de construtivistas pela filósofa feminista Alicia Puleo (2012) têm maior diálogo e mesmo inserção em movimentos sociais, e contribuem fortemente para uma crítica à ideia de desenvolvimento e os projetos de desenvolvimento impostos ao sul global. A física indiana Vandana Shiva expressa este debate desde seus relatos sobre o Movimento Chipko, de camponesas indianas que abraçaram árvores para impedir sua derrubada, como os empates que famílias seringueiras realizaram no Acre nos anos 1980 no mesmo período, além de criticar a chamada revolução verde, onde os manejos tradicionais perderam espaço para a tecnologia na produção, com a participação de grandes corporações, causando endividamento, perda de terras pelos camponeses, expansão de monoculturas, perda de biodiversidade, contaminação de água e solos, e mesmo a fome que supostamente iria combater.

Estes sistemas supostamente superam as incertezas da natureza, mas a única certeza que de fato podem dar é a concentração de poder e o controle nas mãos de corporações transnacionais.

Economia feminista

No final dos anos 1990, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial impunham mundo afora políticas de ajuste estrutural para manter o pagamento da dívida pública e seus juros escorchantes. O neoliberalismo sustentava estas políticas, argumentando que o mercado poderia prover estes serviços melhor do que o Estado.

Parte do movimento feminista se posicionava contra estas políticas, denunciando que a redução dos índices de desigualdade entre homens e mulheres não poderia se dar pela piora da situação dos homens, nem pelo acesso das mulheres à remuneração por meio de trabalhos precários e sem direitos. Mas é o que ocorria nas chamadas maquiladoras, empresas latino-americanas que apenas juntam peças produzidas em outros países, outras empresas ou mesmo domicílios só maquiando o produto final, ou sweatshops na Ásia, literalmente fábricas movidas a suor. 

Foi neste contexto que nós da SOF (Sempreviva Organização Feminista) conhecemos a REMTE (Red Latinoamericana Mujeres Transformando la Economia) (Faria e Moreno, 2015). Com elas buscamos entender como o neoliberalismo e as políticas de ajuste estrutural se assentavam no patriarcado, para aumentar a exploração do trabalho das mulheres e transferir custos das empresas e do Estado para as mulheres em seus domicílios. Quando uma empresa fecha o refeitório alegando reduzir custos, as pessoas trabalhadoras não deixam de comer, mas trazem comida feita em casa, muito provavelmente por sua companheira ou mãe. Quando o Estado corta recursos que mantém creches, as crianças não deixam de necessitar material de higiene ou brinquedos que serão comprados muito provavelmente com recursos mobilizados por mães e avós em bingos e quermesses. A proposta era construir uma análise que fosse além dos impactos diferenciados para homens e mulheres destas políticas, mas entender como se entrelaçam construções de gênero, classe e raça na sustentação do capitalismo nesta fase de acumulação.

A economia feminista foi então a ferramenta analítica que passamos a usar com leitura coletiva de livro organizado pela economista chilena Cristina Carrasco (1999) e a organização da Rede Economia e Feminismo com agenda de diálogo e ação na economia solidária, agroecologia e trabalho, além de artigos que apresentavam uma visão articulada entre produção (produção de bens e serviços que circulam no mercado ou por meio do Estado) e a reprodução (produção das pessoas, da relação entre elas e entre gerações e da natureza).

No entendimento da sociedade e da economia capitalista destacamos a separação entre produção e reprodução, inclusive espacialmente na fábrica e na casa; a atribuição prioritária dos homens à produção e das mulheres, à reprodução; e a hierarquia: as lógicas e tempos da produção organizam a vida e são considerados mais importantes ou determinantes do que a reprodução. No entanto, este exercício didático pode esconder alguns fatos, como o de que mulheres negras e pobres sempre trabalharam e nunca se restringiram ao cuidado de sua família; ou que a casa pode ser um local de produção, como no trabalho em domicílio; ou que há outras formas de organização econômica, como o campesinato ou as comunidades tradicionais, em que as fronteiras entre produção e reprodução são muito mais fluídas. Para além disto, o que estas autoras nos chamam a atenção é que mesmo no sistema capitalista não existe produção sem reprodução social da vida e que nossa atenção deve voltar-se para os nexos entre elas.

Com a percepção voltada para a vida, (nos) compreendemos como interdependentes e ecodependentes (Herrero, 2020). Nós, seres humanos, necessitamos de cuidados em alguma etapa de nossas vidas – quando somos crianças, quando estamos doentes ou no avançar da idade, quando diminuem nossas capacidades motoras ou intelectuais. Também somos intrinsecamente seres relacionais. Precisamos de segurança emocional e afeto para desenvolver nossa autoconfiança e nossas habilidades de interação com outras pessoas e seres. A fim de nos tornarmos seres humanos autônomos, nós sempre necessitamos de cuidado.

A sociedade capitalista, patriarcal e racista se baseia na distribuição desigual dos cuidados. Em geral, as mulheres cuidam mais do que os homens. As mulheres negras, indígenas e migrantes cuidam mais ainda. Esta imposição é velada, pela naturalização das habilidades desenvolvidas pelas mulheres ao longo de sua socialização como mulheres para estarem atentas ao cuidado do outro e pela ideologia da maternidade como destino.

Somos natureza e dela provém alimento, abrigo, energia, minerais que necessitamos para responder às necessidades básicas que temos. Da mesma forma, nesta sociedade a distribuição desigual do acesso à natureza se manifesta pela propriedade privada que impede trabalhadoras sem terra de produzir alimentos e que aloja resíduos tóxicos em comunidades racializadas e pobres.

Sendo assim, a economia feminista destaca que a contradição do capital vai além do trabalho e se constitui em um conflito capital X vida (SOF e XXK, 2021). A precariedade e as incertezas marcam a vida da maioria das pessoas que se tornam descartáveis mediante a superexploração no trabalho, a violência policial ou o descaso com a saúde pública. Enquanto a vida de pessoas em posição de privilégio – homens, burgueses, brancos, adultos e heterossexuais – drena recursos materiais, afetivos e simbólicos.

A organização econômica desta fase do capital se entrelaça com o conservadorismo moral e político. As inovações tecnológicas vão no sentido de maior controle da vida pelas corporações transnacionais. Os aplicativos de entrega, fazem com que as pessoas permaneçam disponíveis para o trabalho em extensas jornadas. As redes sociais fazem com que as pessoas permaneçam disponíveis para os dispositivos (aparelhos celulares, tablets, computadores) em tempo quase integral.

Diálogos entre ecofeminismo e economia feminista em práticas coletivas

Várias iniciativas articulam a economia feminista e o ecofeminismo atualmente. Citaremos três exemplos que se inserem na atuação do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT de mulheres da ANA). O GT, criado em 2004, reúne agricultoras, técnicas, pesquisadoras, servidoras públicas e de ONGs, mulheres organizadas em movimentos mistos (onde participam mulheres e homens) e autônomos (onde participam mulheres). A SOF participa do GT desde sua criação e com muitas das companheiras que o compõem compartilham atuação na REF Rede Economia e Feminismo e na Marcha Mundial das Mulheres. Já foram realizados processos nacionais de formação feminista, de sistematização de experiências agroecológica de mulheres, co-construção de políticas públicas e mobilizações várias.

As Cadernetas Agroecológicas são um instrumento político-pedagógico de registro do destino da produção pelas agricultoras: autoconsumo, doação, troca e venda. Este processo coordenado pelo GT de mulheres da ANA envolveu 299 agricultoras de todo o Brasil que fizeram o registro entre março de 2017 e fevereiro de 2018. A totalização dos valores anotados na Caderneta alcançou quase R$ 1,5 milhão, sendo 40,2% de relações não mercantis (autoconsumo, doação e troca) usualmente invisíveis para a economia dominante. 

Outro dado interessante é que mesmo nas vendas, as agricultoras participam de circuitos de comercialização de proximidade, que em sua maioria se organizam com base na reciprocidade e solidariedade e valorizam produtos considerados femininos e “miudezas”. 52% das agricultoras vendiam em casa, na maior parte das vezes para vizinhas, 49% participavam das compras governamentais (PAA, PNAE) e 39% participavam de feiras agroecológicas. No Sudeste o valor médio comercializado nas feiras agroecológicas (R$ 638,84), cerca de 44% superior ao comercializado em feiras convencionais. 

A relação com a dimensão ambiental se dá pela constatação da grande variedade de produtos anotados, como 627 tipos de alimentos vegetais, 138 de sementes e mudas e 133 de plantas medicinais e ervas aromáticas. Entre os vegetais também é grande a variedade. Na região Sudeste foram 37 tipos de frutas, entre elas 10 variedades de banana e 5 de laranja. (Weitzman e outras, 2021). A variedade dos cultivos das mulheres também foi representada em mapas da sociobiodiversidade que demonstraram os espaços de produção sobre sua responsabilidade ao redor da casa, os quintais, como espaços de experimentação.

A Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER Agroecologia realizada durante os governos populares envolveu mais de 55 mil famílias de agricultores. A construção desta política pública contou com intensa participação dos movimentos sociais, inclusive de feministas agroecológicas. Desta forma foi definido que o público deveria contemplar pelo menos 50% de mulheres, e pelo menos 30% dos recursos deveriam ser destinados a atividades realizadas com mulheres. A caracterização da unidade de produção realizada junto com as famílias envolvia um exercício de registro dos usos do tempo pelos diferentes integrantes da família segundo sexo e idade e organizados em tempos de trabalho de mercado, de trabalho doméstico e de cuidados, de necessidades pessoais, de participação cidadã e lazer.

Durante a formação com as técnicas que executavam a ATER, ouvimos relatos de quão instigadora esta atividade havia sido. A reflexão realizada por técnicas, agricultoras e agricultores que nunca haviam participado de um debate feminista constatou desigualdades e injustiças. As mulheres são as primeiras que levantam, as últimas a irem se deitar e realizam uma série de atividades simultaneamente. Ainda assim, quando nós da SOF, utilizando o mesmo quadro, perguntamos quanto tempo uma agricultora dedicava ao cuidado dos filhos, ela respondeu que era todo o tempo. Mesmo dormindo ela estava pendente deles e podia levantar-se prontamente caso a chamassem. Por este motivo que economistas feministas se referem ao cuidado como uma disponibilidade permanente das mulheres em relação ao outro. 

Pesquisa dos usos do tempo realizada no Sertão do Pajeú junto a mulheres rurais também identificou a dificuldade em registrar a simultaneidade das tarefas e em classificá-las (Moraes e outras, 2020). Uma visita à vizinha poderia ser considerada uma atividade de lazer. No entanto, elas perceberam que as visitas aconteciam porque a agricultora se preocupava com o risco de depressão de sua vizinha, o que elas consideraram muito mais próximo a uma atividade de cuidado e a uma obrigação moral. 

Por outro lado, muitas vezes as agricultoras estão na horta, na agrofloresta trabalhando, experimentando, observando e desfrutando há um só tempo. Os tempos da natureza, a estação de seca e de chuva, os ciclos das plantas demandam mais ou menos atenção e cuidado que se combinam com os tempos das relações. Como nos contou Aparecida XX agricultora da Barra do Turvo: ela cuida da planta e a planta cuida dela.

A dimensão do cuidado se evidenciou durante a pandemia. Memórias sistematizadas nas regiões Nordeste e Sudeste demonstram como as redes de agricultoras fortaleceram e criaram alianças com coletivos de pessoas trabalhadoras na cidade na compra de alimentos agroecológicos (Nobre, 2021). Muitos destes coletivos ampliaram suas ações ou se organizaram em torno à solidariedade com pessoas em situação de vulnerabilidade, como indígenas guarani, estudantes privados de alimentação escolar ou mães solo, além de terem mantido canais de comercialização quando outros foram interrompidos. Alguns coletivos envolveram a reflexão sobre a alimentação, recuperando sabores e texturas perdidos devido à imposição de padrões alimentares homogêneos e controlados por corporações transnacionais. Comer foi sendo vivenciado como cuidado à saúde, aumento da imunidade e um ato político. 

As redes de agricultoras rurais ou urbanas funcionaram como acolhimento e escuta. Tantas demandas e tensões colocou para os grupos a importância do autocuidado e do cuidado coletivo. O GT de mulheres da Articulação Agroecológica do Rio de Janeiro (AARJ ), por exemplo, organizou cestas de alimentos, ervas medicinais e homeopatia popular entregues a 200 mulheres. Em muitas regiões, saberes ancestrais de plantas medicinais foram resgatados para tratar dos sintomas da Covid-19. Mulheres lideranças permaneceram atentas às pessoas necessitando de cuidados físicos e emocionais em seu entorno. Atentas também estiveram aos necessários cuidados ao território afetado por mudanças climáticas (seca, muita chuva, geada) e ameaças de fazendeiros e empresas.  

Estes processos coletivos de produção e distribuição de comida agroecológica reorganizam práticas econômicas e políticas. Desvelam que a natureza e os cuidados sustentam a vida e sua reprodução. Realizados majoritariamente por mulheres, muitas delas negras e indígenas, são trabalhos e conhecimentos desvalorizados e ocultados pelo capitalismo patriarcal e racista. O ecofeminismo e a economia feminista são como um tear para tessituras de memórias e (re)invenções. 

Bibliografia

Carrasco, Cristina. Mujeres y economía: nuevas perspectivas para viejos y nuevos problemas. Barcelona: Ed. Icaria, 1999

Faria, Nalu e Moreno, Renata (org.). Las mujeres contra el libre comercio. Una historia de resistencia y lucha. São Paulo: REMTE, 2015.

Frederici, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.

Galeano, Eduardo. Mulheres. Porto Alegre/São Paulo: Ed. LP&M, 2015.

Herrero, Yayo. Economia ecológica e economia feminista: um diálogo necessário. In SOF: Economia feminista e ecológica. Resistências e retomadas de corpos e território. São Paulo: SOF, 2020. 

Moraes, Lorena Lima, Ponter, Nicole, Sieber, Shana, Funari, Juliana, Nascimento, Nathália, Marques, Patrícia. Metodologias, trabalho uso do tempo: compreendendo a rotina de mulheres rurais. In Melo, Hildete Pereira de e Moraes, Lorena Lima de. A arte de tecer o tempo. Perspectivas feministas. Campinas: Pontes editores, 2020.

Nobre, Miriam (org). Um meio tempo preparando outro tempo.  Cuidados, produção de alimentos e organização de mulheres agroecológicas na pandemia. São Paulo: SOF, 2021.

Nobre, Miriam. Gênero e autonomia econômica para as mulheres. Caderno de formação. Brasília: Secretaria Nacional de Política para as Mulheres e ONU Mulheres, 2016.

Puleo, Alicia. Anjos do ecossistema? In Faria, Nalu e Moreno, Tica (org.). Análises feministas: outro olhar sobre economia e ecologia. São Paulo: SOF, 2012.

Shiva, Vandana. Abrazar la vida: mujer, ecología y supervivencia. Madri:  Ed. Horas y Horas, 1995

Siliprandi, Emma. Mulheres e Agroecologia. Transformando o campo, a floresta e as pessoas. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2015.

SOF e XXK. Juntas e misturas: explorando territórios da economia feminista. São Paulo/Bilbao: SOF e XXK, 2021. Disponível em  https://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2021/06/Juntas-e-misturadas_V7.pdf 

Weitzman, Rodica, Schottz, Vanessa e Pacheco, Maria Emília. Mulheres construindo a agroecologia: caminhos para a soberania e segurança alimentar e nutricional. In Rody, Thalita; Telles, Liliam (org). Caderneta Agroecológica: o saber e o fazer das mulheres do campo, das florestas e das águas. Viçosa: CTA-ZM, UFV, 2021. No prelo.

* Agrônoma, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, da coordenação do GT de mulheres da ANA e da REF Rede Economia e Feminismo. Militante da Marcha Mundial das Mulheres

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