Rede Livres: Empreendimento Econômico Solidário para além do crescimento
Uma rede de produção e consumo, baseada em valores de uso, e não valores de troca, tornando-se interessante como modelo de empreendimento econômico solidário, fundamentado nos conceitos de decrescimento ou mesmo de um “socialismo sem crescimento” e voltado a recolocar a economia sob os limites da biosfera, focando em redistribuição radical de riquezas com paralela regeneração ecológica. Esse é o Livres, uma Rede agroecológica explicada nessa matéria por Daniel Keppler* e Guilherme Prado**.
Neste momento a Rede Livres formaliza um de seus braços como cooperativa e reconfirma seu compromisso em impulsionar um modelo econômico que não se baseie no lucro, mas na boa vida com a paralela regeneração de nossa biosfera. A, agora, Livres Coop – Rede Agroecológica de Produção e Consumo, nasceu a partir da destruição ecológica de uma planta da Shell em Paulínia que impactou a vida de milhares de pessoas na região.
Assim, podemos dizer que o nascimento da Rede Livres se origina da base do Sindicato dos Químicos de Campinas e Região que propuseram, de alguma forma, uma prática de decrescimento tático: “que decresça a economia envenenada do agrotóxico, para que cresça a economia agroecológica”. Mais tarde, o movimento se expande para outros lugares como São Paulo, Porto Alegre e Baixada Santista. E foi precisamente em Santos que se aprofundou como mais que um Empreendimento Econômico Solidário (EES), tornando-se uma plataforma solidária.
Atualmente, a Livres Coop planeja democraticamente seu circuito solidário – desde a semente até a entrega. Dispondo de cerca de 170 consumidores conscientes com cestas semanais, quinzenais ou mensais, o projeto é um sucesso e uma prova de que há outras maneiras de se apropriar de alimentos saudáveis sem que seja através do dito “livre mercado”. Mas, ter a solidariedade em seu cerne e não a ideia de lucro, não é o único critério que torna a Rede Livres um EES necessário para uma economia do decrescimento ou do socialismo sem crescimento. A Rede é necessária na busca por uma bioeconomia, pois é toda voltada a abastecer necessidades dos atores e atrizes que nela se envolvem, preenchendo uma série de critérios éticos, não buscando meramente o escalar de suas atividades econômicas.
Planejamento democrático da produção em comunidade
Nas experiências do dito Socialismo Real, por vários motivos, mas principalmente por limitações do imaginário, da conjuntura política e econômica ou de dispositivos tecnológicos apropriados, o paradigma da expansão da produção prevaleceu em detrimento do paradigma da redistribuição radical focada no todo necessário para a boa vida, além da preservação dela no planeta, seja para os seres humanos ou não humanos.
Isso, claramente, é menos complexo de ser buscado em experiências de movimentos sociais. Mas é justamente o que o Livres pratica: uma produção planejada democraticamente a partir das necessidades de sua comunidade, baseada no mínimo de desperdício possível, nos preços mais acessíveis possíveis para seus consumidores conscientes, junto da maior segurança econômica para os agricultores e produtores locais. Tudo isso sem impactar negativamente a natureza, e quando possível, regenerando-a, perseguindo a relocalização das atividades econômicas por meio de circuitos curtos e sem explorar ninguém.
Com esses objetivos em mente, a tarefa era dificílima, mas só seria viabilizada com um ferramenta tecnológica que não acharíamos no mercado, evitando planilhas intermináveis. A tecnociência solidária desenvolvida cooperativamente por aqueles que levariam o projeto adiante em Santos e região; com muita participação de seus agricultores, e em especial Breno Almeida, agricultor de Pedro de Toledo. Sua colaboração foi essencial para o desenvolvimento da ferramenta de operação do “Comboio Agroecológico”, o sistema de gestão das comunidades da Livres Coop.
Tal ferramenta foi tornada realidade principalmente pela ousadia e capacidade de “fuçar” de Henderson Mele, um dos cooperados da Livres Coop que colocou a mão na massa para desenvolver o sistema. “O Comboio Agroecológico opera de uma forma única. Utilizar ferramentas prontas disponíveis no mercado limitaria a experiência dos consumidores. Não ter um sistema automatizado inviabilizaria a escala necessária para o modelo. O desafio foi, e continua sendo, conciliar as aulas de programação, o trabalho do dia-a-dia e o desenvolvimento de um sistema próprio ao mesmo tempo que o Livres é construído”, afirma o programador solidário. E assim foi se consolidando a Rede: por meio de militantes que se movimentam centralmente pelo Livres, ou nas suas horas sem tarefas de suas vidas pessoais e profissionais, para construir outra economia possível.
Alimentos mais acessíveis para a comunidade sem amassar o agricultor
O sistema que tínhamos em mãos depois de meses de discussões, então, permitiu-nos avançar para além dos famosos CSA’s: decidimos mapear um consumo mínimo de cada consumidor consciente, que poderia complementá-lo com outros alimentos extras durante a semana de retirada de cesta. Esse consumo mínimo, de cestas semanais, quinzenais ou mensais, seria fixo por três meses e depois seria repactuado. Esse critério de uma economia democraticamente planificada foi essencial tanto para trazermos alimentos mais acessíveis para os consumidores conscientes associados, que possuem margens de cerca de 15% de desconto, quanto para a produção mais previsível dos agricultores, que agora podiam visualizar uma demanda garantida de forma cristalina. Dessa forma, se fundamentou novamente uma economia dos valores de uso, que de alguma forma atualiza um critério muito presente nas economias de nossos povos originários: estabeleceu-se a reciprocidade entre agricultor e consumidor, onde o primeiro, dispondo de mais segurança econômica, passou a retribuir com preferência na colheita e preços mais acessíveis aqueles que consomem pela Livres Coop.
A demanda agregada pelo sistema após o preenchimento do “carrinho comunitário” pelos consumidores conscientes nos auxiliou tanto a planejar com os agricultores quanto a ver o perfil de consumo de cada consumidor. O sistema passou a nos ajudar na montagem de cestas, contabilidade, carências produtivas e outros problemas e desafios. Pouco a pouco, vimos novos alimentos aparecendo, o que gerou nossa primeira safra de tomates, por exemplo. A cooperada Milena Savini, responsável pelo setor financeiro da Livres Coop Baixada Santista, relembra: “A felicidade de poder entregar aos consumidores conscientes um alimento que, no mercado convencional, é um dos que carrega a maior quantidade de veneno, é imensa. É uma alegria e um alívio muito grande. Nós como cooperativa agroecológica queremos entregar vida, e não morte como o agronegócio entrega”, conta.
O processo também impactou na expansão produtiva dos agricultores, como Geraldo Júnior, que pôde avançar na produção principalmente do amado brócolis ramoso e outras variedades. “Com o crescimento da demanda dos consumidores pudemos expandir a área plantada, arrendando um terreno vizinho, o que proporcionou aumento de produção e geração de emprego e renda no campo”, lembra.
Interação, abastecimento dos consumidores e a entrega cooperada
Os consumidores, aos poucos, passaram a entender as dificuldades do campo e a luta necessária para diversificar a produção. A Rede se expandia, com ela se expandiam as parcerias com empresas dos trabalhadores e cooperativas da Economia Solidária, tais como a Coopernatural, a COOPEG, o MST e a Terra Viva. O sistema foi essencial para garantirmos uma diversidade maior, pois ele ajudava a mapear alimentos que ainda não eram produzidos pela Rede, mas que tiveram o volume de sua demanda já mapeado para quem quisesse produzi-los. Isso, todavia, ainda não é capaz de resolver tudo: ainda há carências na regularidade e diversidade de algumas frutas, já que o projeto evita a compra de atravessadores, preferindo o estímulo direto aos agricultores.
Os consumidores conscientes mais antigos, portanto, conseguiram ver a expansão do projeto e os impactos positivos. Tiveram seu processo de consciência ambiental e política aprofundado, ajudaram em vaquinhas na mudança do projeto para outro endereço, sugeriram dicas para melhorar o sistema solidário, e são partícipes das atividades da comunidade, como festas, eventos e celebrações, sem falar das nossas queridas Feiras de Economia Solidária. Além disso, trocam receitas, dicas de consumo para PANCs, e alguns até passaram a produzir biofertilizante e húmus por meio da compostagem, fornecendo o entreposto da Rede com tal produção, que passou a ser redistribuída nas cestas dos consumidores que queriam deixar suas plantas “mais felizes”.
Muitos desses biofertilizantes agroecológicos chegam às casas dos consumidores pelas mãos, ou melhor, pelas panturrilhas dos e das ecociclistas Livres. O conceito de entregas via ecociclistas sempre fez parte do projeto Livres, pois além de ser a etapa final de um ciclo que se inicia na produção dos alimentos, é o que colabora decisivamente para a conexão de uma razoável parte da rede de consumidores com o empreendimento – processo esse que se intensificou com a pandemia do novo coronavírus, que fez com que, durante meses, todas as cestas de consumo da comunidade tivessem que ser entregues via delivery. Ou seja, um processo que começa solidário, não poderia terminar de forma terceirizada ou explorada: tinha que terminar também de forma solidária.
“Na verdade, o processo de realizar entregas começou antes mesmo de o Livres operar como empreendimento, mas sim quando seus membros trabalhavam em conjunto com os produtores, nas feiras de produtos orgânicos de Santos”, lembra Lucas Gonçalves, um dos ecociclistas há mais tempo presente na equipe.
Com o crescimento do Livres, e o consequente aumento da demanda de pedidos – e também de entregas -, a autogestão dos ecociclistas precisou ser aperfeiçoada – um processo que jamais deixou de acontecer. Lucas explica: “No início do Livres, o método de trabalho consistia em preparar as rotas de entrega logo após a montagem das cestas de consumo, no próprio dia da logística de entrega. Mas com mais entregas por fazer, foi necessário reorganizar esse método, e atualmente preparamos as rotas com antecedência. Dessa forma, os ecociclistas conseguem se organizar previamente e se dividem melhor nos dias de operação, para que todos na equipe façam uma quantidade parecida de entregas,e assim serem remunerados também de forma parecida”.
Atualmente, a equipe de ecociclistas Livres conta com seis pessoas, que realizam entre 100 e 120 entregas toda semana para consumidores de quatro cidades da Baixada Santista.
E como remunerar o trabalho em outra economia?
O processo de autogestão foi se tornando mais complexo e interligado entre os diversos setores da Rede. Os e as ecociclistas recebem por entrega, ficando com 100% do valor delas, concentrando no seu centro de custos os pagamentos das entregas e guardando 20% dele para despesas de manutenção e bem-estar. Porém, na parte “interna” a questão parecia mais complexa, pois as tarefas a cumprir eram muito diferentes, e muitas vezes despendiam tempo e esforço diferentes, também. Como resolver essa equação?
Aos poucos as peças foram se encaixando. Foram definidas uma série de atividades baseadas nas “Ecohoras”, que são lastreadas em um valor considerado digno e possível de ser pago pela cooperativa, dando origem ao “Ecoholerite”. Esse documento é preenchido semanalmente pelos cooperados e é essencial para o pagamento da equipe.
Todavia, as tarefas mais “operacionais”, com início, meio e fim, bem demarcados no tempo, eram mais fáceis de ser mensuradas e de se chegar a um consenso. Chegamos ao ponto, então, de valorizar tarefas de gestão e de maior responsabilidade com um valor um pouco maior. Isso pode até ser entendido como um ponto de desigualdade dentro das cooperativas – como até mesmo Paul Singer discute, no livro “Introdução à Economia Solidária”. Mas o próprio professor acaba dizendo que esse fator é importante para o sucesso da empresa, pois ali estão algumas das atividades onde se exige mais e onde os erros têm maior impacto para todos os trabalhadores.
Apesar disso, temos a cultura de distribuir as responsabilidades, por isso não entendemos exatamente como uma desigualdade se de fato tais responsabilidades são maiores e demandam mais. Afinal de contas, o que aprendemos na Economia Solidária é que nem todos podem querer maiores responsabilidades. Alguns irão contribuir em menor grau, mas devem ser pagos justamente por isso, ao mesmo tempo que estimulados a terem seu desenvolvimento humano pleno.
Agriculturas Alternativas para sobrevivermos ao Capitaloceno
Não é só pela capacidade de produzir valores de uso “sob demanda” em face das necessidades da comunidade que faz a Rede Livres ser uma experiência interessante para uma economia mais além do crescimento. É também por estimular relações de produção e de organizar a natureza para além do Capitalismo.
A agroecologia e a agricultura sintrópica possuem a capacidade de reduzir o processo “entrópico” da economia capitalista, ou seja, mitigam o processo que torna, com maior velocidade, as coisas úteis para a vida em coisas inúteis. A agricultura convencional, nesse sentido, exaure ecossistemas, impacta o clima, a biodiversidade, etc. Como Jason Hickel defende, a agricultura é afetada pelo clima tanto quanto o afeta. Nesse outro sentido, a Rede constrói uma colcha de retalhos de alternativas de produção.
A mais avançada delas provavelmente é o modelo sintrópico de agricultura, uma forma de organizar a natureza de modo a criar no próprio território um ecossistema complexo onde seus próprios “detritos”, como folhas e matéria orgânica, enriquecem o solo demandando cada vez menos insumos que, na maioria das vezes, precisariam vir do outro lado do planeta para permitir a produção. O resultado é um tipo de “agrofloresta” muito produtivo e pouco “insumista”, permitindo produzir mais aproveitando as potencialidades da natureza e o consórcio de plantas que se fortalecem quando combinadas. Nesse sentido, a experiência da Livres Coop – Porto Alegre é exemplar: lá, o agricultor sintrópico Vicente Guindani confirma as potencialidades desse modo de produção.
Além disso, Vicente produz do lado da capital, em Viamão, fortalecendo a relocalização da economia, conceito sempre presente no movimento do decrescimento.
Relocalizando a economia: já somos uma plataforma solidária?
Em agosto de 2020, houve um convite para participar em uma aula do curso de extensão “Autogestão e Economia Solidária” realizada pela Universidade Aberta da Economia Solidária (UAES) da Unifesp. Foi ali, provavelmente, que nos demos conta de forma mais “científica” de que a Rede já extravasava seu projeto inicial. O responsável por nosso convite para participar da aula, o professor Egeu Esteves, foi quem nos alertou, afirmando: “Toda relação econômica começa no consumo (não na produção), sendo possível constituir plataformas que reúnam produtores e consumidores, furando o capitalismo – como é o caso do Livres!”.
E isso de fato estava acontecendo: a complexidade das relações econômicas e baseadas em solidariedade e reciprocidade dentro de nosso circuito só se acentuava. Nossos consumidores conscientes, também produtores de bens e serviços, passavam a comercializar entre si, diretamente através da Rede ou não, enquanto usavam os serviços dos ecociclistas em várias oportunidades para a entrega de suas vendas. Passamos a, por exemplo, fornecer por nossos canais os queijos veganos da produtora Magali, a cerveja artesanal Nosotros produzida em São Vicente (cidade vizinha de Santos), a comprar os quitutes da confeitaria Simone Garcia para nossos eventos, e a entregar os cosmésticos veganos do pequeno empreendimento Bruma Cosméticos Naturais, dentre outros.
Nesse momento também passamos a discutir com mais força que, apesar de termos criado um complexo ecossistema solidário, ainda circulávamos toda nossa produção com os meios de pagamento do sistema capitalista. Isso fazia nossos recursos escoarem e irem para os bolsos dos mesmos exploradores. Ou seja, toda vez que usávamos cartões e maquininhas com as bandeiras dos capitalistas financeiros, algo entre 3 e 5%, ou às vezes até mais que isso, era desviado para fora da rede. “Toda água deságua no mar”, como diz Joaquim Mello, criador do Banco Palmas.
A conclusão era óbvia: era preciso criar o Banco Solidário Livres! A iniciativa se encontra em andamento e envolve todos os braços geográficos da Rede: São Paulo, Baixada Santista, Campinas e Região, além de Porto Alegre.
O caminho se faz ao caminhar…
O poeta espanhol Antonio Machado afirmava aos caminhantes que “não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. E em meio a crise sistêmica que vivemos, essa que nos demanda “impensar” tudo o que concebemos, talvez a premissa venha bem a calhar. As esquerdas na maioria das vezes se guiam pautadas sob conceitos eurocêntricos como o de Maquiavel, entendendo que os fins justificam os meios. Talvez isso valha para muitas coisas, mas tem seus limites para realizarmos outra economia possível.
A concepção que Enrique Dussel defende, inspirando-se em nossos povos originários, aquela de poder obediencial, talvez nos traga uma nova inspiração. A economia a se fazer terá que se inspirar mais no Zapatismo, onde só mandam os que obedecem, do que no difusionismo burocrático dos técnicos que, após a revolução, rapidamente perdem o gosto pela ousadia e criatividade que só os trabalhadores em posse dos meios de produção, por menos complexos que sejam, possuem. As esquerdas terão que recuperar sua admiração pela ousadia de experimentar outros arranjos econômicos e sociais possíveis.
A Rede Livres, com todos seus avanços e imensos limites, nos ensina que, pelo menos em tese, é possível trocar o paradigma de crescimento infinito – seja do lucro, seja da produção -, pelo paradigma de redistribuição radical em busca da boa vida na terra por muito tempo. Apesar de tal paradigma ser possível em tese, nada garante que as elites capitalistas, burocráticas e até partidárias, sejam elas de esquerda ou de direita, concordem e aceitem o fato de que teremos que diminuir o tamanho de nossa economia, por bem ou por mal, para sobreviver em um planeta cada vez mais hostil. Sem aderir a tal projeto rapidamente, as mudanças tenderão a ser cada vez mais autoritárias, tornando a guinada “Ecofascista” um próximo passo possível para as direitas conservadoras.
A experiência da Rede Livres com sua prática de Ecossocialismo Real tem, no mínimo, a virtude de nos mostrar que é possível realizar tal projeto de forma radicalmente democrática, e que a Economia Solidária será essencial para pensarmos em um socialismo sem crescimento!
* Jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista;
** Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), coordenador da Livres Coop Baixada Santista e militante do PSOL.