Rede Livres:  Empreendimento Econômico Solidário para além do crescimento

Uma rede de produção e consumo, baseada em valores de uso, e não valores de troca, tornando-se interessante como modelo de empreendimento econômico solidário, fundamentado nos conceitos de decrescimento ou mesmo de um “socialismo sem crescimento” e voltado a recolocar a economia sob os limites da biosfera, focando em redistribuição radical de riquezas com paralela regeneração ecológica. Esse é o Livres, uma Rede agroecológica explicada nessa matéria por Daniel Keppler* e Guilherme Prado**. 

Neste momento a Rede Livres formaliza um de seus braços como cooperativa e reconfirma seu compromisso em impulsionar um modelo econômico que não se baseie no lucro, mas na boa vida com a paralela regeneração de nossa biosfera. A, agora, Livres Coop – Rede Agroecológica de Produção e Consumo, nasceu a partir da destruição ecológica de uma planta da Shell em Paulínia que impactou a vida de milhares de pessoas na região.

Assim, podemos dizer que o nascimento da Rede Livres se origina da base do Sindicato dos Químicos de Campinas e Região que propuseram, de alguma forma, uma prática de decrescimento tático: “que decresça a economia envenenada do agrotóxico, para que cresça a economia agroecológica”. Mais tarde, o movimento se expande para outros lugares como São Paulo, Porto Alegre e Baixada Santista. E foi precisamente em Santos que se aprofundou como mais que um Empreendimento Econômico Solidário (EES), tornando-se uma plataforma solidária. 

Atualmente, a Livres Coop planeja democraticamente seu circuito solidário – desde a semente até a entrega. Dispondo de cerca de 170 consumidores conscientes com cestas semanais, quinzenais ou mensais, o projeto é um sucesso e uma prova de que há outras maneiras de se apropriar de alimentos saudáveis sem que seja através do dito “livre mercado”. Mas, ter a solidariedade em seu cerne e não a ideia de lucro, não é o único critério que torna a Rede Livres um EES necessário para uma economia do decrescimento ou do socialismo sem crescimento. A Rede é necessária na busca por uma bioeconomia, pois é toda voltada a abastecer necessidades dos atores e atrizes que nela se envolvem, preenchendo uma série de critérios éticos, não buscando meramente o escalar de suas atividades econômicas. 

Planejamento democrático da produção em comunidade

Nas experiências do dito Socialismo Real, por vários motivos, mas principalmente por limitações do imaginário, da conjuntura política e econômica ou de dispositivos tecnológicos apropriados, o paradigma da expansão da produção prevaleceu em detrimento do paradigma da redistribuição radical focada no todo necessário para a boa vida, além da preservação dela no planeta, seja para os seres humanos ou não humanos. 

Isso, claramente, é menos complexo de ser buscado em experiências de movimentos sociais. Mas é justamente o que o Livres pratica: uma produção planejada democraticamente a partir das necessidades de sua comunidade, baseada no mínimo de desperdício possível, nos preços mais acessíveis possíveis para seus consumidores conscientes, junto da maior segurança econômica para os agricultores e produtores locais. Tudo isso sem impactar negativamente a natureza, e quando possível, regenerando-a, perseguindo a relocalização das atividades econômicas por meio de circuitos curtos e sem explorar ninguém.

Com esses objetivos em mente, a tarefa era dificílima, mas só seria viabilizada com um ferramenta tecnológica que não acharíamos no mercado, evitando planilhas intermináveis. A tecnociência solidária desenvolvida cooperativamente por aqueles que levariam o projeto adiante em Santos e região; com muita participação de seus agricultores, e em especial Breno Almeida, agricultor de Pedro de Toledo. Sua colaboração  foi essencial para o desenvolvimento da ferramenta de operação do “Comboio Agroecológico”, o sistema de gestão das comunidades da Livres Coop. 

Tal ferramenta foi tornada realidade principalmente pela ousadia e capacidade de “fuçar” de Henderson Mele, um dos cooperados da Livres Coop que colocou a mão na massa para desenvolver o sistema. “O Comboio Agroecológico opera de uma forma única. Utilizar ferramentas prontas disponíveis no mercado limitaria a experiência dos consumidores. Não ter um sistema automatizado inviabilizaria a escala necessária para o modelo. O desafio foi, e continua sendo, conciliar as aulas de programação, o trabalho do dia-a-dia e o desenvolvimento de um sistema próprio ao mesmo tempo que o Livres é construído”, afirma o programador solidário. E assim foi se consolidando a Rede: por meio de militantes que se movimentam centralmente pelo Livres, ou nas suas horas sem tarefas de suas vidas pessoais e profissionais, para construir outra economia possível.

Alimentos mais acessíveis para a comunidade sem amassar o agricultor

O  sistema que tínhamos em mãos depois de meses de discussões, então, permitiu-nos avançar para além dos famosos CSA’s: decidimos mapear um consumo mínimo de cada consumidor consciente, que poderia complementá-lo com outros alimentos extras durante a semana de retirada de cesta. Esse consumo mínimo, de cestas semanais, quinzenais ou mensais,  seria fixo por três meses e depois seria repactuado. Esse critério de uma economia democraticamente planificada foi essencial tanto para trazermos alimentos mais acessíveis para os consumidores conscientes associados, que possuem margens de cerca de 15% de desconto, quanto para a produção mais previsível dos agricultores, que agora podiam visualizar uma demanda garantida de forma cristalina. Dessa forma, se fundamentou novamente uma economia dos valores de uso, que de alguma forma atualiza um critério muito presente nas economias de nossos povos originários: estabeleceu-se a reciprocidade entre agricultor e consumidor, onde o primeiro, dispondo de mais segurança econômica, passou a retribuir com preferência na colheita e preços mais acessíveis aqueles que consomem pela Livres Coop.

A demanda agregada pelo sistema após o preenchimento do “carrinho comunitário” pelos consumidores conscientes nos auxiliou tanto a planejar com os agricultores quanto a ver o perfil de consumo de cada consumidor. O sistema passou a nos ajudar na montagem de cestas, contabilidade, carências produtivas e outros problemas e desafios. Pouco a pouco, vimos novos alimentos aparecendo, o que gerou nossa primeira safra de tomates, por exemplo. A cooperada Milena Savini, responsável pelo setor financeiro da Livres Coop Baixada Santista, relembra: “A felicidade de poder entregar aos consumidores conscientes um alimento que, no mercado convencional, é um dos que carrega a maior quantidade de veneno, é imensa. É uma alegria e um alívio muito grande. Nós como cooperativa agroecológica queremos entregar vida, e não morte como o agronegócio entrega”, conta.

O processo também impactou na expansão produtiva dos agricultores, como Geraldo Júnior, que pôde avançar na produção principalmente do amado brócolis ramoso e outras variedades. “Com o crescimento da demanda dos consumidores pudemos expandir a área plantada, arrendando um terreno vizinho, o que proporcionou aumento de produção e geração de emprego e renda no campo”, lembra.

Interação, abastecimento dos consumidores e a entrega cooperada

Os consumidores, aos poucos, passaram a entender as dificuldades do campo e a luta necessária para diversificar a produção. A Rede se expandia, com ela se expandiam as parcerias com empresas dos trabalhadores e cooperativas da Economia Solidária, tais como a Coopernatural, a COOPEG, o MST e a Terra Viva. O sistema foi essencial para garantirmos uma diversidade maior, pois ele ajudava a mapear alimentos que ainda não eram produzidos pela Rede, mas que tiveram o volume de sua demanda já mapeado para quem quisesse produzi-los. Isso, todavia, ainda não é capaz de resolver tudo: ainda há carências na regularidade e diversidade de algumas frutas, já que o projeto evita a compra de atravessadores, preferindo o estímulo direto aos agricultores.

Os consumidores conscientes mais antigos, portanto, conseguiram ver a expansão do projeto e os impactos positivos. Tiveram seu processo de consciência ambiental e política aprofundado, ajudaram em vaquinhas na mudança do projeto para outro endereço, sugeriram dicas para melhorar o sistema solidário, e são partícipes das atividades da comunidade, como festas, eventos e celebrações, sem falar das nossas queridas Feiras de Economia Solidária. Além disso, trocam receitas, dicas de consumo para PANCs, e alguns até passaram a produzir biofertilizante e húmus por meio da compostagem, fornecendo o entreposto da Rede com tal produção, que passou a ser redistribuída nas cestas dos consumidores que queriam deixar suas plantas “mais felizes”.

Muitos desses biofertilizantes agroecológicos chegam às casas dos consumidores pelas mãos, ou melhor, pelas panturrilhas dos e das ecociclistas Livres. O conceito de entregas via ecociclistas sempre fez parte do projeto Livres, pois além de ser a etapa final de um ciclo que se inicia na produção dos alimentos, é o que colabora decisivamente para a conexão de uma razoável parte da rede de consumidores com o empreendimento – processo esse que se intensificou com a pandemia do novo coronavírus, que fez com que, durante meses, todas as cestas de consumo da comunidade tivessem que ser entregues via delivery. Ou seja, um processo que começa solidário, não poderia terminar de forma terceirizada ou explorada: tinha que terminar também de forma solidária.

“Na verdade, o processo de realizar entregas começou antes mesmo de o Livres operar como empreendimento, mas sim quando seus membros trabalhavam em conjunto com os produtores, nas feiras de produtos orgânicos de Santos”, lembra Lucas Gonçalves, um dos ecociclistas há mais tempo presente na equipe. 

Com o crescimento do Livres, e o consequente aumento da demanda de pedidos – e também de entregas -, a autogestão dos ecociclistas precisou ser aperfeiçoada – um processo que jamais deixou de acontecer. Lucas explica: “No início do Livres, o método de trabalho consistia em preparar as rotas de entrega logo após a montagem das cestas de consumo, no próprio dia da logística de entrega. Mas com mais entregas por fazer, foi necessário reorganizar esse método, e atualmente preparamos as rotas com antecedência. Dessa forma, os ecociclistas conseguem se organizar previamente e se dividem melhor nos dias de operação, para que todos na equipe façam uma quantidade parecida de entregas,e assim serem remunerados também de forma parecida”.

Atualmente, a equipe de ecociclistas Livres conta com seis pessoas, que realizam entre 100 e 120 entregas toda semana para consumidores de quatro cidades da Baixada Santista.

E como remunerar o trabalho em outra economia?

O processo de autogestão foi se tornando mais complexo e interligado entre os diversos setores da Rede. Os e as ecociclistas recebem por entrega, ficando com 100% do valor delas, concentrando no seu centro de custos os pagamentos das entregas e guardando 20% dele para despesas de manutenção e bem-estar. Porém, na parte “interna” a questão parecia mais complexa, pois as tarefas a cumprir eram muito diferentes, e muitas vezes despendiam tempo e esforço diferentes, também. Como resolver essa equação?

Aos poucos as peças foram se encaixando. Foram definidas uma série de atividades baseadas nas “Ecohoras”, que são lastreadas em um valor considerado digno e possível de ser pago pela cooperativa, dando origem ao “Ecoholerite”. Esse documento é preenchido semanalmente pelos cooperados e é essencial para o pagamento da equipe. 

Todavia, as tarefas mais “operacionais”, com início, meio e fim, bem demarcados no tempo, eram mais fáceis de ser mensuradas e de se chegar a um consenso. Chegamos ao ponto, então, de valorizar tarefas de gestão e de maior responsabilidade com um valor um pouco maior. Isso pode até ser entendido como um ponto de desigualdade dentro das cooperativas – como até mesmo Paul Singer discute, no livro “Introdução à Economia Solidária”. Mas o próprio professor acaba dizendo que esse fator é importante para o sucesso da empresa, pois ali estão algumas das atividades onde se exige mais e onde os erros têm maior impacto para todos os trabalhadores.

Apesar disso, temos a cultura de distribuir as responsabilidades, por isso não entendemos exatamente como uma desigualdade se de fato tais responsabilidades são maiores e demandam mais. Afinal de contas, o que aprendemos na Economia Solidária é que nem todos podem querer maiores responsabilidades. Alguns irão contribuir em menor grau, mas devem ser pagos justamente por isso, ao mesmo tempo que estimulados a terem seu desenvolvimento humano pleno.

Agriculturas Alternativas para sobrevivermos ao Capitaloceno

Não é só pela capacidade de produzir valores de uso  “sob demanda” em face das necessidades da comunidade que faz a Rede Livres ser uma experiência interessante para uma economia mais além do crescimento. É também por estimular relações de produção e de organizar a natureza para além do Capitalismo.

A agroecologia e a agricultura sintrópica possuem a capacidade de reduzir o processo “entrópico” da economia capitalista, ou seja, mitigam o processo que torna, com maior velocidade, as coisas úteis para a vida em coisas inúteis. A agricultura convencional, nesse sentido, exaure ecossistemas, impacta o clima, a biodiversidade, etc. Como Jason Hickel defende, a agricultura é afetada pelo clima tanto quanto o afeta. Nesse outro sentido, a Rede constrói uma colcha de retalhos de alternativas de produção.

A mais avançada delas provavelmente é o modelo sintrópico de agricultura, uma forma de organizar a natureza de modo a criar no próprio território um ecossistema complexo onde seus próprios “detritos”, como folhas e matéria orgânica, enriquecem o solo demandando cada vez menos insumos que, na maioria das vezes, precisariam vir do outro lado do planeta para permitir a produção. O resultado é um tipo de “agrofloresta” muito produtivo e pouco “insumista”, permitindo produzir mais aproveitando as potencialidades da natureza e o consórcio de plantas que se fortalecem quando combinadas. Nesse sentido, a experiência da Livres Coop – Porto Alegre é exemplar: lá, o agricultor sintrópico Vicente Guindani confirma as potencialidades desse modo de produção.

Além disso, Vicente produz do lado da capital, em Viamão, fortalecendo a relocalização da economia, conceito sempre presente no movimento do decrescimento.

Relocalizando a economia: já somos uma plataforma solidária?

Em agosto de 2020, houve um convite para participar em uma aula do curso de extensão “Autogestão e Economia Solidária” realizada pela Universidade Aberta da Economia Solidária (UAES) da Unifesp. Foi ali, provavelmente, que nos demos conta de forma mais “científica” de que a Rede já extravasava seu projeto inicial. O responsável por nosso convite para participar da aula, o professor Egeu Esteves, foi quem nos alertou, afirmando: “Toda relação econômica começa no consumo (não na produção), sendo possível constituir plataformas que reúnam produtores e consumidores, furando o capitalismo – como é o caso do Livres!”.

 E isso de fato estava acontecendo: a complexidade das relações econômicas e baseadas em solidariedade e reciprocidade dentro de nosso circuito só se acentuava. Nossos consumidores conscientes, também produtores de bens e serviços, passavam a comercializar entre si, diretamente através da Rede ou não, enquanto usavam os serviços dos ecociclistas em várias oportunidades para a entrega de suas vendas. Passamos a, por exemplo, fornecer por nossos canais os queijos veganos da produtora Magali, a cerveja artesanal Nosotros produzida em São Vicente (cidade vizinha de Santos), a comprar os quitutes da confeitaria Simone Garcia para nossos eventos, e a entregar os cosmésticos veganos do pequeno empreendimento Bruma Cosméticos Naturais, dentre outros.

Nesse momento também passamos a discutir com mais força que, apesar de termos criado um complexo ecossistema solidário, ainda circulávamos toda nossa produção com os meios de pagamento do sistema capitalista. Isso fazia nossos recursos escoarem e irem para os bolsos dos mesmos exploradores. Ou seja, toda vez que usávamos cartões e maquininhas com as bandeiras dos capitalistas financeiros, algo entre 3 e 5%, ou às vezes até mais que isso, era desviado para fora da rede. “Toda água deságua no mar”, como diz Joaquim Mello, criador do Banco Palmas.

A conclusão era óbvia: era preciso criar o Banco Solidário Livres! A iniciativa se encontra em andamento e envolve todos os braços geográficos da Rede: São Paulo, Baixada Santista, Campinas e Região, além de Porto Alegre. 

O caminho se faz ao caminhar…

O poeta espanhol Antonio Machado afirmava aos caminhantes que “não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. E em meio a crise sistêmica que vivemos, essa que nos demanda “impensar” tudo o que concebemos, talvez a premissa venha bem a calhar. As esquerdas na maioria das vezes se guiam pautadas sob conceitos eurocêntricos como o de Maquiavel, entendendo que os fins justificam os meios. Talvez isso valha para muitas coisas, mas tem seus limites para realizarmos outra economia possível.

A concepção que Enrique Dussel defende, inspirando-se em nossos povos originários, aquela de poder obediencial, talvez nos traga uma nova inspiração. A economia a se fazer terá que se inspirar mais no Zapatismo, onde só mandam os que obedecem, do que no difusionismo burocrático dos técnicos que, após a revolução, rapidamente perdem o gosto pela ousadia e criatividade que só os trabalhadores em posse dos meios de produção, por menos complexos que sejam, possuem. As esquerdas terão que recuperar sua admiração pela ousadia de experimentar outros arranjos econômicos e sociais possíveis.

A Rede Livres, com todos seus avanços e imensos limites, nos ensina que, pelo menos em tese, é possível trocar o paradigma de crescimento infinito – seja do lucro, seja da produção -, pelo paradigma de redistribuição radical em busca da boa vida na terra por muito tempo. Apesar de tal paradigma ser possível em tese, nada garante que as elites capitalistas, burocráticas e até partidárias, sejam elas de esquerda ou de direita, concordem e aceitem o fato de que teremos que diminuir o tamanho de nossa economia, por bem ou por mal, para sobreviver em um planeta cada vez mais hostil. Sem aderir a tal projeto rapidamente, as mudanças tenderão a ser cada vez mais autoritárias, tornando a guinada “Ecofascista” um próximo passo possível para as direitas conservadoras.

A experiência da Rede Livres com sua prática de Ecossocialismo Real tem, no mínimo, a virtude de nos mostrar que é possível realizar tal projeto de forma radicalmente democrática, e que a Economia Solidária será essencial para pensarmos em um socialismo sem crescimento!

* Jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista;

** Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), coordenador da Livres Coop Baixada Santista e militante do PSOL.

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APAEB Valente: uma caminhada de luta e resistência

Um trabalho de base, iniciado há 50 anos em Valente/BA, culmina na criação de uma associação de pequenos agricultores que se estende a diversos municípios do estado e, desde então, graças à organização comunitária, vem superando dificuldades, desafios e acumulando diversas conquistas. Em um texto dividido em três momentos históricos, conheça a história e trabalho da APAEB, contada por Ismael Ferreira de Oliveira *

A ORGANIZAÇÃO SOCIAL EM VALENTE

Por volta de 1971/1972 com a chegada de dois padres italianos à cidade de Valente/BA, começou um trabalho envolvendo as Comunidades Rurais, através das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base. Semanalmente havia reuniões nas comunidades, para ler a Bíblia, mas também para refletir a realidade da população, as dificuldades encontradas na produção, no crédito, na comercialização e na sobrevivência no campo. Eram oportunidades importantes de integração entre as pessoas e as comunidades. 

Nesses encontros se fazia muitas reflexões sobre a realidade vivida pelos pequenos agricultores (não se usava na época o termo agricultores familiares). A principal atividade econômica de Valente vinha do sisal, complementado pela agricultura de subsistência: milho, feijão, mandioca, além de uma pecuária de poucas cabeças bovinas. Uma pergunta constante era: por que os pequenos produtores e trabalhadores do sisal trabalhavam tanto e não ganhavam nem o suficiente para alimentar a família? Porque os preços do milho, do feijão e farinha eram tão baixos quando eles chegavam a colher, já que tinham problemas constantes de seca que comprometiam a produção e eram tão caros quando eles precisavam comprar? Porque os preços do sisal também eram tão baixos?

Essas inquietações foram crescendo e mais gente envolvida também queria respostas. Então, um grupo de pessoas que participava ativamente desses trabalhos nas Comunidades, que chamávamos de “círculos bíblicos”, fez outro questionamento: por que não criar uma Associação ou Cooperativa para beneficiar a fibra de sisal e comercializar direto, visando a garantia de preços melhores para os produtores e trabalhadores?

Nessa época, 1977/1978, o Movimento de Organização Comunitária (MOC), com sede em Feira de Santana, fazia também essa discussão com os pequenos produtores de milho, feijão e mandioca. Começamos, então, a trabalhar a perspectiva da criação de uma organização a nível estadual, para atender aos diversos produtos dos pequenos agricultores.

Esse trabalho foi crescendo e envolvendo os municípios de Feira de Santana, Santa Bárbara, Serrinha, Araci, Ichú e Valente. O MOC já contava com uma equipe técnica (sociólogo, técnico agrícola, teólogo, entre outros), que ajudava nessas reflexões. Foram muitas reuniões em cada município e em Feira de Santana, com representação de todos os municípios, para decidir sobre o assunto. Na época, as cooperativas tinham muito controle do Estado, os estatutos eram padronizados, e havia muita dependência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Não se poderia, por exemplo, criar uma cooperativa dos pequenos produtores, teria que ser mista. Tudo isso teve que ser levado em consideração.

Alguns agricultores conheciam uma grande cooperativa existente em Serrinha, onde os pequenos agricultores apenas eram usados para legitimar a existência da cooperativa, pois na época havia certas vantagens e incentivos ter, no quadro de cooperados, uma porcentagem de pequenos agricultores. Mas os agricultores envolvidos na discussão diziam sempre: “pinto e gavião” na mesma gaiola não dá certo, pois o pinto vai sair sempre perdendo.

Depois de meses de conversas, decide-se criar uma associação, passando a construir os estatutos sociais, tudo conversado e decidido nas diversas reuniões realizadas nos municípios com a participação dos pequenos agricultores e em Feira de Santana ou Serrinha, com representação de todos os municípios.

A FUNDAÇÃO DA APAEB

A APAEB – Associação dos Pequenos Agricultores do estado da Bahia foi fundada em Serrinha -, no dia 02 de julho de 1980, numa grande assembleia geral com representação de todos os municípios, inclusive do bispo da Diocese de Feira de Santana, que apoiou a iniciativa. 

A APAEB nasceu com uma estrutura jurídica de matriz em Serrinha (APAEB Geral) e filiais nos diversos municípios. Tinha um Conselho de Administração Geral e uma Comissão de Organização que cuidava da gestão da instituição em cada município, dentro do estabelecido pelo Conselho Administrativo Geral. Foi contratado um gerente, para atender a todos os municípios. Dois anos depois da fundação, a APAEB já estava estruturada em Serrinha, Feira de Santana, Araci, Ichú e Valente.

No início, os objetivos principais visavam o fortalecimento da organização comunitária, as lutas por políticas públicas para garantir o acesso à terra, saúde, educação, crédito e a comercialização da produção dos agricultores envolvidos. Logo no começo, com apoio da cooperação internacional através do MOC, foi estruturada sede em alguns municípios e formado um pequeno volume de capital de giro que previa a compra do milho, feijão e farinha e seu armazenamento, esperando melhores preços para a venda, visando maior rendimento para os produtores e produtoras. Logo em seguida, foram implantados pequenos postos de vendas, as “bodegas comunitárias”, que serviam de ponto de encontro e de compra e venda entre agricultores, sobretudo produtos de primeira necessidade (ferramentas, açúcar, café, óleo, entre outros).

A APAEB começou a se desenvolver nos municípios, aumentando sua participação no mercado – mas também começaram a surgir os desafios. Os diretores não aceitaram inicialmente a ideia de contratar um gerente, achavam que eles mesmos podiam gerenciar tudo, mesmo esse gerente sendo um filho de pequeno agricultor e envolvido em todo processo de construção da entidade. 

Mas o modelo jurídico implementado também se mostrou um problema: havia muita dependência dos municípios ao Conselho de Administração de Serrinha, tornando as decisões mais lentas. Por outro lado, os municípios eram bastante diferentes, pois as realidades eram muito distintas. Enquanto para Valente a prioridade era o sisal, para Feira de Santana era a mandioca, feijão e milho. Quando tinha um problema com um CNPJ, todos passavam a ter restrições, uma vez que o número era o mesmo, mudava apenas o controle da matriz e das filiais.

Essas divergências levaram à realização de uma consultoria, iniciada no final dos anos 80 e concluída no início dos anos 90, que orientava a criação de associações juridicamente independentes nos municípios, sem nenhuma dependência jurídica uma da outra, mas recomendando manter um processo de articulação entre elas, para manter algumas ações que diziam respeito a todos os municípios, a exemplo das mobilizações diversas reivindicando terra, crédito, seguridade social para os trabalhadores rurais, entre outras.

A APAEB de Valente

A APAEB Valente implantou sua primeira atividade econômica em novembro de 1981, com a inauguração do Posto de Vendas (uma pequena bodega comunitária). Em seguida, iniciou a discussão sobre o sisal, por se tratar da principal atividade econômica da cidade e de muitos outros municípios, além de promover debates sobre outras dificuldades, como as secas prolongadas. Apresentamos a seguir as atividades da APAEB Valente relacionadas ao sisal:

  • A Batedeira Comunitária de Sisal: implantada pela APAEB Valente para fazer o primeiro beneficiamento da fibra. Ela recebe a fibra depois de colhida no campo e, num processo de polimento, retira o pó, deixando as fibras mais macias. Depois, num processo totalmente artesanal, passa pela classificação, tirando as fibras de qualidade inferior, com sujeiras ou muito curtas. Assim, a fibra fica pronta para ser industrializada e transformada em fios, cordas, tapetes e carpetes. 

A Batedeira Comunitária foi construída através da realização de diversos mutirões e apoio financeiro da cooperação internacional através da CEBEMO (instituição católica holandesa que financia projetos de missionários em países em desenvolvimento), que garantiu o material para construir o galpão, alguns equipamentos artesanais para polir a fibra e tirar o pó, e uma prensa para fazer os fardos, além de um pequeno valor para capital de giro, totalizando cerca de US$ 50 mil. Começou a funcionar em 1984, visando comprar a fibra, beneficiar e comercializar diretamente, evitando o processo de intermediação e conseguindo agregar mais valor – algo chamado na época de um “milagre” no sisal. Ao longo dos anos, os desafios para comercialização foram imensos, envolvendo o mercado e até mesmo políticos da região, mas aos poucos, um a um, foram sendo ultrapassados.

  • Fábrica de fios, cordas, tapetes e carpetes de sisal: depois de se firmar no beneficiamento e comercialização da fibra de sisal, vendendo nos mercados interno e externo, tendo chegado a beneficiar e comercializar até 5% de toda produção do estado da Bahia, maior produtor do país, APAEB Valente começa sonhar com a implantação de uma fábrica, e assim agregar valor ao material, gerando mais emprego e renda. Sabíamos que seria um desafio ainda maior, pois era um ambiente de negócios muito restrito. Mas com apoio da cooperação internacional e de um voluntário sueco, começamos a participar de um evento anual sobre fibras duras, promovido pela FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura,  onde se incluía a fibra de sisal. Foi um lugar onde adquirimos muito conhecimento. 

Decidimos então implantar um projeto que pudesse fabricar fios e cordas, mas também tapetes e carpetes, estimado em US$ 5 milhões para construções e equipamentos. Após dois anos de muito trabalho, em 1994 começamos a construção da fábrica com apoio de US$ 500 mil do Desenvolvimento Integral do Sudoeste do Paraná (DISOP), e o restante financiado pelo Banco do Nordeste. A fábrica foi inaugurada em março de 1996, chegando a ter 900 colaboradores em quatro turnos de 6 horas.

DIVERSIFICAÇÃO DAS AÇÕES

No início dos anos 90, começamos perceber que seriam necessárias outras ações. Valente está no semiárido nordestino, castigado constantemente pelas longas estiagens. Assim, se fazia necessária a implementação de projetos estruturantes visando a convivência com a seca. Não podemos fazer chover, mas precisamos encontrar caminhos para conviver com as poucas chuvas. Implantamos então o DDC – Departamento de Desenvolvimento Comunitário, visando apoiar a produção com assistência técnica, capacitação e a diversificação da produção. 

Resolvemos implantar uma Escola Família Agrícola, usando a pedagogia da alternância:, os alunos ficam uma semana na escola e outra com a família, numa integração permanente entre Escola, Família e a Comunidade. Essa Escola começou a funcionar em 1996 e durante 10 anos foi mantida pela APAEB Valente e pelos projetos econômicos / produtivos.

Nos anos 1990 pouco tínhamos de eletrificação rural; não existia ainda o Programa Luz para Todos. Então, com apoio de uma instituição da Holanda, a Fundação DOEN, implantamos um Fundo Rotativo que financiava uma placa solar para as famílias, suficiente para um rádio, uma TV, algumas lâmpadas e fazer cerca elétrica a menor custo. Chegamos a ter mais de 900 famílias beneficiadas com esse projeto.

Foi também em 1994 que começamos um projeto de incentivo à criação de caprinos e ovinos, visando a produção de carne e leite. Em 1999 implantamos um laticínio para receber o leite da cabra e produzir o leite pasteurizado, queijos, doces e iogurtes, garantindo um valor comercial para aquele produto, que além de muito nutritivo, se transformou num importante componente na renda familiar dos agricultores.

Para ajudar no processo de comunicação, ajudamos a criar em 1988 uma Rádio Comunitária e uma Fundação para garantir o funcionamento da rádio. Foram anos de luta visando a regulamentação, o que veio a acontecer muitos anos depois. 

Com o posto de vendas, a batedeira e a fábrica em funcionamento, resolvemos criar o Clube Social APAEB, para garantir um ambiente de esporte e lazer para os sócios, seus familiares e colaboradores. Muitas dessas pessoas não conheciam um clube antes. Esse mesmo espaço era usado para promoção de grandes eventos, trazendo artistas de renome nacional.

Também foram construídos dois importantes espaços de formação, informação, fomento à cultura e realização de mobilizações: a Casa da Cultura, com auditório para 300 pessoas, salas de computação, palco, tela para projeção de vídeos; e o CAIS – Centro de Aprendizagem e Intercâmbio de Saberes, na mesma área que funciona a Escola Família Agrícola, a 12 km da sede do município, com dormitórios para acomodar 104 pessoas, refeitório e auditório para a realização de eventos. Muitos cursos, treinamentos e encontros são realizados nesses espaços, suspensos nos últimos anos por conta da pandemia.

A REESTRUTURAÇÃO DA APAEB VALENTE

Em 2004 / 2005, a APAEB Valente começa enfrentar dificuldades financeiras, principalmente pela defasagem cambial, já que quase 90% das receitas vinham das exportações. Foi necessário um trabalho de reestruturação, visando vencer a crise e os desafios daquele momento. A APAEB precisava enxugar seus custos e reduzir sua equipe. Enquanto isso, foram também buscadas outras alternativas, mas todas elas levariam tempo.

Foram investidos esforços para aumentar a participação no mercado interno e reduzir as vendas no mercado internacional. Ao mesmo tempo, decidimos mudar a forma jurídica, criando unidades próprias, já que o modelo era de matriz e filiais, fazendo com que todas as unidades fossem afetadas pelas dificuldades da fábrica. A APAEB fazia tudo, administrava os projetos econômicos e as atividades educativas / sociais; resolvemos então o seguinte:

  • A APAEB Valente faria a separação das unidades, criando a APAEB Sisal, a APAEB Laticínio e APAEB Posto de Vendas. Cada unidade dessas ia se voltar para a gestão, focando a administração e o mercado;
  • As atividades educativas / sociais (EFA – Escola Família Agrícola, Casa da Cultura, CAIS – Centro de Aprendizagem e Intercâmbio de Saberes, Capacitação, assistência técnica, mobilizações e ações de políticas públicas, entre outras) passariam a ser geridas pela Fundação APAEB.

Esse processo levou alguns anos. As unidades começaram a funcionar a partir de 2011, mas ainda com muitas dificuldades, que aos poucos vêm sendo superadas.

Ao contrário de muitas organizações sociais, que quase sempre dependiam exclusivamente da cooperação internacional ou convênios com os governos federal e estadual, a APAEB sempre teve preocupação com a sustentabilidade social, mas também financeira. Os projetos precisavam ter viabilidade econômica. Mesmo tendo algumas ajudas na estruturação e implantação do projeto, todo o processo de custeio já era assumido pelo próprio projeto, e até por volta de 2008, todas as atividades educativas / sociais foram assumidas pela APAEB. Só depois de 2008/2009 o Governo do Estado da Bahia sinalizou apoiar as Escolas Família Agrícola, e um pouco antes, o Governo Federal começou a fazer alguns convênios para assistência técnica através das organizações sociais.

Existe grande preocupação com a gestão eficiente e ágil, mas garantindo a participação permanente dos diretores, que são todos agricultores familiares. Estamos em um mercado globalizado e muitas vezes acontecimentos de fora nos afetam diretamente, daí a importância do conhecimento não só das realidades nacional e internacional, mas também dos produtores de sisal, dos industriais, dos concorrentes. A inovação e a diversificação da produção foram fatores importantes entre as alternativas adotadas para superar a crise enfrentada.

IMPACTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS

O município de Valente, em 2020, teve um orçamento geral de R$ 60,3 milhões, o que nem sempre é aplicado localmente, visto que muitos fornecedores de produtos e serviços são de fora. Ou seja: o dinheiro acaba saindo para circular em outras cidades. 

Já as unidades da APAEB Valente (APAEB Sisal, APAEB Laticínio e APAEB Posto de Vendas) tiveram, no mesmo período, um faturamento bruto de R$ 75 milhões. Desse faturamento, R$ 66 milhões foram colocados na economia local e regional com pagamento de salários, serviços e matérias primas (sisal e leite de cabra). Esses valores fizeram a economia girar, gerando muitos outros empregos diretos e indiretos, fazendo assim com que a roda da Economia Solidária de fato gire no município.

Nesse mesmo ano, a APAEB Valente, com todas as unidades, gerou 374 empregos diretos. Além disso, 858 famílias no campo forneceram a produção, totalizando diretamente 1232 postos de trabalho. Sabemos que no campo muitas outras pessoas se envolvem no processo de produção e colheita. A Bahia responde hoje por 97% da produção nacional de sisal e gera mais de 400 mil postos de trabalho. O Brasil responde por mais de 50% da produção mundial.

O sisal é produzido atualmente em 9 Territórios de Cidadania, com 67 municípios, sendo que em aproximadamente 40 desses, o sisal ainda é a principal atividade econômica. Em Valente e muitos outros municípios, onde chove pouco e de forma irregular, o sisal e a pequena pecuária são as duas opções para geração de renda da população, principalmente devido à sua resistência às constantes secas.

PRINCIPAIS DESAFIOS

Muitas conquistas foram obtidas nessa caminhada de mais de 40 anos da APAEB, mas existem também ainda muitos desafios pela frente. Mesmo o sisal sendo tão importante para nosso município e região, ele não tem recebido dos governos a atenção que merece. 

Aproveitamos apenas 4% do sisal, que é a fibra. Todo restante vem sendo jogado fora e não se tem ainda pesquisas e tecnologias que permitam a utilização desses 96% desperdiçados (liquido, resíduo e bucha de campo). O equipamento usado na colheita, conhecido como “paraibana” é o mesmo desde o início do uso do sisal enquanto atividade econômica, por volta de 1930, sem nenhuma melhoria tecnológica, que além de ser um trabalho pesado tem muitos riscos de acidentes.

Também não temos pesquisas que permitam novos usos da fibra, garantindo maior mercado e preços mais estáveis. Em muitas oportunidades de maior produção, os preços caem de forma assustadora, pela concorrência com o sintético e outros fatores, não compensando fazer a colheita. Então os produtores são obrigados a “matar” os campos, buscando alternativas no plantio de capim e criação de bovinos, que também não conseguem bons resultados devido às longas estiagens que castigam a região.

Estamos agora em negociação com o governo do estado da Bahia, visando a implantação de algumas usinas de desfibramento, permitindo assim o uso do resíduo (mucilagem) na produção de ração, visto que já existem pesquisas confirmando essa possibilidade. Porém, é algo que depende de tecnologia no desfibramento, que já existe após o desenvolvimento de uma máquina para desfibrar, sem nenhum risco de acidentes. Esperamos também poder usar o líquido na produção de bioinseticidas e biofertilizantes, conforme pesquisas em andamento na – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que apontam para essas possibilidades.

Além disso, se faz necessário um processo contínuo de melhorias no processo produtivo e de gestão, com melhorias tecnológicas e capacitação dos colaboradores, que permitam que a APAEB continue avançando, trazendo mais emprego e renda para Valente e toda região sisaleira.

* Filho de pequenos agricultores, viveu no campo até os 17 anos e trabalhou no sisal como toda criança e adolescente da época. Um dos fundadores da APAEB, administrador e atualmente consultor

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Gente organizada é a salvação da lavoura!

Diante da destruição de direitos e desmonte de políticas públicas, a articulação entre campo e cidade mostra a importância da sociedade civil organizada. Conheça a experiência do Instituto Terra Viva, que anima, estrutura e organiza uma rede de agroecologia no fortalecimento da agricultura familiar e da economia solidária. Por Caco de Paula *

A crise que se acentua com a pandemia de Covid-19 reforça duas certezas. Primeiro, a enorme importância do Estado — independentemente de toda propaganda em contrário. Resolver grandes problemas da vida humana requer Estados confiáveis, com poder econômico e político, capazes de tomar as decisões adequadas, com visão democrática, humanitária e coletiva. A outra grande verdade é a indispensável organização da sociedade civil, desde a sua base, para maior proteção dos direitos das pessoas e do comportamento geral da sociedade. A presença do Estado, com políticas públicas efetivas, e a capacidade de organização, ação e influência da base são condições com efeitos conhecidos na vida cotidiana da população. Especialmente na agricultura familiar de base ecológica, essas condições podem beneficiar a ação de quem enxerga a natureza de forma mais holística e vê a pessoa como um ser dotado do espírito de solidariedade. Esses aspectos estão presentes na inspiradora experiência coletiva do Instituto Terra Viva, que conecta cerca de 80 famílias de produtores agroecológicos da região de Sorocaba (SP) a uma rede de economia solidária construída com parceiros de pontos de venda, distribuidores de cestas, restaurantes e centenas de famílias que, ao se nutrir desses alimentos, nutrem a própria rede.

Cultivo da mudança

O coletivo define sua missão como um trabalho pela prosperidade em seus diversos pilares, de forma digna, responsável e justa, a serviço da agroecologia, da autoconsciência, do bem-estar e da economia solidária. E declara os seus valores:  justiça, transparência, verdade, amor, solidariedade, lealdade e abundância. A semente dessa rede começou a germinar dez anos atrás, em 2011, momento em que a produção agroecológica vivia um vigoroso crescimento no Brasil. Incentivados por políticas públicas implantadas durante os governos Lula e Dilma, agricultores familiares, muitos deles produtores em assentamentos da reforma agrária e em quilombos, tiveram acesso à universidade pública, interagiram com pesquisadores no campo e contaram com programas de aquisição regular de produtos, para alimentação em escolas, hospitais e presídios. Vem dessa época a consolidação de muitos núcleos de agroecologia, como o NAAC Apêtê Caapuã (da Ufscar, campus de Sorocaba), em torno do qual se discutia a importância da diversidade e do conhecimento local – não apenas para o trabalho na terra, mas também para o cultivo da mudança social. Fermentavam-se as ideias e ampliava-se o movimento de transição, da agricultura familiar dependente do pacote tecnológico dito “convencional”, para a produção agroecológica. A aproximação entre pesquisadores e agricultores buscava a construção conjunta de conhecimento, como na proposta do educador Paulo Freire, em que ambos são capazes de educar e de se educarem. Foi nesse contexto que nasceu o Instituto Terra Viva, com a missão de contribuir para a agroecologia da região. 

Água e conhecimento

O primeiro projeto realizado pelo instituto foi sua participação na edição inicial do programa Plantando Águas, com patrocínio da Petrobras e coordenado pela organização Iniciativa Verde, que atendeu mais de 160 famílias no estado de São Paulo. O Terra Viva foi o executor do projeto na região de Sorocaba, atuando com mais de 70 famílias agricultoras, assentados e quilombolas. O trabalho incluiu a implementação de áreas de agroflorestas nos sítios, restauração de áreas de proteção permanente, instalação de equipamentos básicos de manejo e saneamento ecológico para tratar os resíduos das residências, além de assessoria técnica. O projeto sensibilizou dezenas de famílias, que se engajaram na regeneração do solo e do planeta produzindo alimentos orgânicos. Na construção conjunta de conhecimento de que falamos há pouco, agricultoras e agricultores definiram as prioridades para os sistemas agroflorestais (SAFs) em seus lotes. O trabalho é descrito no livro Sistemas Agroflorestais – experiências e reflexões, editado pela Embrapa. Cerca de 30 dessas famílias ainda fazem parte da mesma rede do Terra Viva. 

É muito simbólico que a origem do instituto e da ampliação da consciência ecológica na produção de alimentos esteja justamente numa ação de cuidado e proteção de nascentes e cursos de água. Assim como é muito prática a percepção de que, além de apoio no campo, os agricultores precisam de parceiros para fazer com que os produtos orgânicos cheguem à mesa dos consumidores. “Desde a fundação do Terra Viva era claro para nós que um dos principais gargalos das famílias agricultoras era — e continua sendo — a comercialização dos produtos, seja por falta de mão de obra, de tempo ou de logística, e assim por diante”, recorda-se a gestora ambiental Naíshi Brandão, que integra o coletivo desde seu início. “Ao finalizarmos os projetos dos quais participamos implantando SAFs, fazíamos os mutirões e nos perguntávamos sempre como e onde os agricultores poderiam escoar a produção.” 

O vigor das parcerias

O estatuto da organização já previa prestar assessoria para viabilizar a produção agroecológica por meio da comercialização. “Isso se deu  a partir da parceria com alguns atores agroecológicos de Sorocaba, que estavam reunidos no Grupo de Articulação Regional da Feira Agroecológica de Sorocaba (Garfos) e que passaram a compor essa frente de atuação na viabilização comercial da produção, que foi estimulada e em parte estruturada pelo aporte do Plantando Águas”, explica o engenheiro-agrônomo Claudio Nadaleto, que integra a equipe de campo do Terra Viva, prestando serviços no âmbito da assessoria técnica e do planejamento de produção. Da articulação com o Garfos, lá em 2013, promovida pelo biólogo Pedro Kawamura Gonçalves, então coordenador do Terra Viva, foi implementada, em parceria com a prefeitura de Sorocaba, a primeira feira de produtos orgânicos do município. As parceiras continuaram e, em 2016, uma colaboração com o (hoje extinto) coletivo Amaranto Orgânicos abriu caminho para viabilizar o Armazém Terra Viva. 

Em 2017 o armazém começou a comercialização, ainda no formato de projeto, com uma estrutura muito enxuta, tocada por Naíshi com o economista Caio Rennó José e Ari Pinheiro. Esses dois últimos, vindos do Amaranto. Durante algum tempo, toda a estrutura do armazém se resumia ao galpão emprestado pela família de Caio, a uma pequena camionete e a um único parceiro na cidade de São Paulo, o Instituto Chão, na Vila Madalena. O vigor do Terra Viva estava mesmo na rede que se fortaleceu a cada dia com as famílias de agricultores, muitas delas parceiras desde os tempos em que juntos semeavam águas. Em 2018 o coletivo ganharia novos membros e, em 2020, seria reforçado por uma entrada mais robusta de integrantes. Hoje o coletivo tem 20 participantes, que trabalham para fazer chegar a 30 parceiros em pontos de venda na capital paulista cerca de 40 toneladas de alimentos produzidos mensalmente por 84 famílias de agricultores da região de Sorocaba.

Além da comercialização, boa parte da parceria do Terra Viva com as famílias de agricultores se dá no atendimento às demandas técnicas trazidas por elas. O pano de fundo é a ausência ou inoperância das agências oficiais de assessoria técnica e extensão rural, ou “ater”, como se diz no meio agrícola. “Para além dessa ausência do Estado no campo, há principalmente a construção do conhecimento agroecológico, que é a base de nosso trabalho”, enfatiza Claudio Nadaleto. Essa assessoria se dá de diversas formas. Inclui desde a facilitação do processo de certificação orgânica por auditoria, por sistemas participativos de garantia (SPG) ou mesmo por OCS (organização de controle social). Ela se dá também tanto pela assessoria à produção em si, por meio do acompanhamento técnico agroecológico presencial, quanto remotamente, por telefone ou  WhatsApp. Prática comum antes da pandemia, as oficinas e intercâmbios para troca de experiências estão temporariamente suspensos, à espera de tempos mais propícios a encontros presenciais. 

A política do cuidado

O filósofo colombiano Bernardo Toro, que inspirou algumas das linhas do início deste texto, é quem nos lembra que “quanto maior a organização da base, maior a proteção dos direitos das pessoas e melhor o comportamento da sociedade”. Isso se aplica às escolhas na alimentação, que também são políticas. Toro gosta de citar uma frase que ganha especial significado nestes tempos de desproteção social, frase que ele atribui ao seu amigo Leonardo Boff: “Ou aprendemos a cuidar, ou todos pereceremos”. No fim, o que a rede de economia solidária formada pelo Terra Viva, pelas famílias de agricultores e pelos parceiros está fazendo é adotar um pouco dessa filosofia do cuidado, um ato de imenso significado político. “A agroecologia é um conjunto de valores e hábitos que fundem uma nova cultura, e o fruto disso são produtos saudáveis e a consciência de que não basta só tratar a saúde do ser humano desgarrado da saúde da terra, porque nós somos terra”, disse Boff em recente entrevista publicada pelo Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop). “O homem vem de húmus, terra boa, terra fértil, e há uma interação enorme entre o ser humano e a terra, a água, o solo, o que comemos e respiramos.”

No contexto da pandemia

Como ocorreu nos demais ramos da atividade humana, o cotidiano do Terra Viva foi afetado pela pandemia. Além de incluírem os protocolos de segurança sanitária, os integrantes do coletivo tiveram de se adaptar à diversificação e reformulação das operações. Pouco antes da pandemia havia sido criada a Mãnatu Orgânica, uma estrutura voltada à venda direta aos consumidores de Sorocaba e região. Como as vendas em geral tiveram um crescimento significativo nos primeiros meses pandêmicos, a Mãnatu e o armazém expandiram sua atuação e foi necessário alugar um galpão maior para organizar a distribuição. O aumento da demanda, em si, não significa que o instituto não tenha desafios a enfrentar. E não são poucos. Há muito a fazer quando se pensa na sua missão de fortalecer a agricultura familiar de base agroecológica, com ações que valorizem os saberes desses agricultores e agricultoras, materializados pela produção e pelos cuidados com a natureza e a sociedade em geral ao produzirem saúde na forma de alimentos. No nível macro, há o desgoverno e suas políticas genocidas. Internamente, os maiores desafios são remunerar melhor e garantir mais benefícios aos membros do coletivo, diversificar a atuação e aumentar a receita gerada. 

Plataforma é a reconstrução

Pesquisa recente da Articulação Nacional de Agroecologia mostra que o principal gargalo apontado pelos produtores continua sendo o apoio para os circuitos curtos de comercialização, que é justamente o trabalho que o Terra Viva faz em sua região. Um olhar sistêmico para essa atividade permite vislumbrar pontos que obrigatoriamente devem ser tratados em qualquer discussão política séria, dado seu potencial de impacto em problemas que se agravam a cada dia, como o aprofundamento da desigualdade social e o avanço da fome entre os brasileiros. Muito se pode discutir a esse respeito, mas não resta dúvida de que recuperar o que vem sendo desmontado e destruído no apoio à agricultura familiar desde o golpe de 2016 já seria, em si, uma plataforma ambiciosa e urgente.

“Diferentemente do cenário de hoje, no qual a caneta tem sido usada para tirar direitos de quem produz e de quem trabalha, um novo governo deverá reverter e aprofundar a construção de políticas de combate à fome e à insegurança alimentar, ao mesmo tempo que valoriza e cria condições para a agricultura familiar realizar suas produções”, sintetiza o economista Caio Rennó José, membro do coletivo. Ele cita políticas existentes que foram abandonadas ou desidratadas desde o golpe. Do lado das compras institucionais ele citou dois instrumentos principais: o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003 no âmbito do Programa Fome Zero), uma boa política que deve ser retomada; e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. Este deve ser aperfeiçoado, com maior valorização dos municípios que cumpram a condição de usar pelo menos 30% dos recursos na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas. 

Agroecologia como resposta

“Para estimular a produção sustentável, agroecológica, justa e que gera renda e trabalho no campesinato, o Estado deve criar programas de crédito direcionados e com as condições próprias para atender efetivamente os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária, comunidades quilombolas, caiçaras, indígenas e demais povos”, enumera Caio. Ele lembra que, além do crédito, a assessoria técnica subsidiada pelo Estado seria um grande fator para contribuir para o aperfeiçoamento das produções, aliando conhecimentos empíricos, tradicionais e científicos. 

Ele acrescenta ainda alguns pontos bem práticos: isentar de impostos o maquinário agrícola para otimizar o trabalho no campo; facilitar as condições de compra de caminhões para a agricultura familiar; incentivar a construção ou ocupação de imóveis públicos ou privados estrategicamente localizados para facilitar a locomoção dos alimentos produzidos regionalmente, concedendo contratos de comodato para associações e cooperativas locais. Como se vê, não há mistério algum sobre quais medidas reivindicar para fortalecer a agricultura familiar de base ecológica. E como já foram experimentadas em maior ou menor escala, não há dúvida sobre as suas consequências. 

“A agroecologia traz muitas respostas a problemas contemporâneos, como a falta de tolerância, de empatia, de noção de justiça, de respeito à diversidade”, diz Caio. “E isso tudo se envolve com o lugar que a gente pisa, com o que a gente come, com a forma como a gente olha para o outro”, finaliza.

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Agroflorestas são economicamente viáveis?

Para escapar do colapso ecológico em curso, é preciso produzir de outras formas. A agrofloresta, como diz João Canuto, é uma oportunidade realista para a continuidade da vida no planeta. Apesar disso, questiona-se muito tais sistemas alternativas de produção de comida, no sentido de não terem o potencial produtivo dos atuais sistemas convencionais do veneno. Se essa presunção é correta você vê na sequência. O ponto é que os fatores necessários para a boa vida na terra dificilmente são chamados para fazer parte dos cálculos. E, nesse sentido, muito além de comida, as agroflorestas podem ser um prato cheio para combater a desigualdade, regenerar nossas fontes de água exauridas, e o próprio planeta

Por João Carlos Canuto *

Dentre as diversas polêmicas suscitadas pela disputa de espaço entre modelo convencional e agroecológico, uma se destaca: a da viabilidade econômica dos sistemas de produção. Temos atualmente muitas informações sobre a economia dos cultivos convencionais, mas pouco se investigou seriamente sobre a economia dos sistemas diversificados ou complexos. Assim, utilizando métodos convencionais, muitas vezes nos apanhamos fazendo comparações entre agriculturas fundadas em paradigmas díspares. Como já disse Einstein, loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual.

Por exemplo, pode-se entender viabilidade como produzir “x” sacas de grãos por hectare, mas estaremos deixando de considerar inúmeros outros elementos de suma importância, que vão além do parâmetro Kg/ha. Portanto, se quisermos entender a viabilidade econômica de modo mais completo, não podemos deixar de considerar aspectos positivos dos sistemas agroecológicos como a restauração da biodiversidade, a economia de recursos, a autonomia econômica dos agricultores, a segurança alimentar, o controle biológico natural, o enriquecimento do solo, a recuperação da água, a regulação do clima, a oferta de alimentos isentos de agrotóxicos, a inclusão social, entre outras tantos. VER LIVE Vantagens safs.

Mesmo assim, se pudermos separar a questão estrita da viabilidade econômico-financeira, sobram argumentos indicando claramente a superioridade dos sistemas agroecológicos e agroflorestais.

Para melhor entender a questão da viabilidade econômica dos sistemas biodiversos, propõe-se discutir alguns conceitos sobre agrofloresta e quais suas diferenças em relação à agricultura convencional, quais os principais fundamentos propulsores da produtividade das agroflorestas que incidem sobre sua viabilidade econômica, transcendendo o debate focado nos aspectos financeiros para a viabilidade social da agrofloresta.

A viabilidade humana da agrofloresta inclui o enfoque financeiro, mas busca constituir-se como alternativa de sustentabilidade ampliada para a existência digna do homem no planeta.

O que é agrofloresta e quais suas diferenças em relação ao monocultivo

Atualmente a sociedade vai tomando consciência que o modelo econômico em andamento está falido e a agricultura industrial é uma das principais protagonistas nesse processo, por provocar os mais diversos impactos negativos sobre os recursos da natureza, conforme é possível verificar no Quadro 1. 

Em contraponto, também estão sendo construídas com mais força alternativas ao modelo, fundamentadas no movimento agroecológico e agroflorestal.

Agroflorestas são sistemas biodiversos que unem de modo harmonioso cultivos e floresta, criando um equilíbrio entre objetivos econômicos e ecológicos. Em agrofloresta não há modelo único, mas sim variações locais da aplicação dos mesmos princípios. As agroflorestas podem expressar-se na forma de quintais e jardins agroflorestais, sistemas agrossilvopastoris, ter foco em frutas, hortaliças, cultivos anuais, madeiras, entre tantos outros arranjos e escalas produtivas.

A seguir, no Quadro 2, apresentamos abaixo algumas das principais diferenças entre a proposta agroflorestal e a convencional ou simplificada:

A superioridade ecológica dos sistemas complexos é notória, semelhante à dos sistemas naturais, que se perenizam por conta da reciclagem natural e abundância de biodiversidade, características que conferem estabilidade e resiliência semelhante a esses arranjos produtivos.

Viabilidade econômica da agrofloresta

Ao discutirmos a viabilidade econômica dos modelos industrial e ecológico de fazer agricultura, podemos escolher um enfoque estritamente financeiro ou uma visão social e humana dos diferentes sistemas. Vamos começar pela abordagem econômico-financeira e, posteriormente, ampliaremos esta forma de avaliação.

Mesmo considerando os parâmetros clássicos de avaliação financeira, as agroflorestas demonstram sua grande potencialidade de renda, devido ao que vamos explanar mais adiante, qual seja, as qualidades ecológicas emergentes propulsoras da produtividade.

Para tanto utilizaremos uma ferramenta relativamente simples, o índice de equivalência de área (IEA). O IEA é um índice utilizado para avaliar a eficiência dos sistemas biodiversos, em comparação aos de monocultivo. Os sistemas são considerados eficientes quando o IEA é superior a 1,00.

O IEA de uma agrofloresta é a relação entre a produtividade por área (kg/ha) do conjunto de seus cultivos com a produtividade (kg/ha) destas mesmas espécies em sistema de monocultivo. 

A tendência indicada pelas pesquisas é que os sistemas diversificados produzem mais que os de monocultivo. A razão disso é a geração de processos ecossistêmicos na forma de qualidades emergentes positivas, como melhor aproveitamento espacial do terreno, potencializado pela estratificação aérea, que permite uma captação de radiação solar amplificada, pela melhor exploração de camadas mais profundas de solo e seu consequente bombeamento de nutrientes de camadas  profundas, com aproveitamento da biomassa por meio de podas, além de todos os manejos ecológicos que trazem equilíbrio e menor ou nula aplicação de insumos externos.

Embora o exemplo acima seja fictício, a literatura científica, mesmo que ainda incipiente, já mostra resultados sempre maiores que 1,0 para sistemas diversificados, devidos às já comentadas qualidades ecológicas emergentes inerentes a estes sistemas.

Portanto, mesmo sob a ótica estritamente financeira, os sistemas agroflorestais mostram não apenas sua viabilidade, mas sua clara superioridade econômica em comparação à agricultura de monocultivo.

Viabilidade humana da agrofloresta

Um dos conceitos centrais nessa argumentação é o de propriedades ou qualidades emergentes. São qualidades novas criadas pela sinergia entre componentes dos sistemas biodiversos, em que “o todo é superior à soma das partes”. Na verdade, as qualidades emergentes são “o segredo” das altas produtividades físicas e ecológicas das agroflorestas.

Apresentamos a seguir algumas dessas chaves da produtividade das agroflorestas, exemplificadas com imagens no Quadro 3: 

Biodiversidade funcional é a propriedade emergente que cria equilíbrio e revitalização nos agroecossistemas: alelopatias, mutualismos, simbioses entre plantas e micorrizas, controle biológico por inimigos naturais, mineralização da matéria orgânica por microrganismos… E muito mais. Exemplos de benefícios: economia de insumos de proteção de plantas, redução de adubação (deposição de matéria orgânica, fixação de nitrogênio atmosférico) e ampliação de oferta de produtos saudáveis.

Multiestratificação aérea: captação ampliada da radiação solar, em comparação aos monocultivos, por conta da exposição das plantas em diversos “andares”; arranjo espacial mais compacto.

Exemplos de benefícios: aumento da fotossíntese do conjunto das espécies, aumento do número de plantas por área e consequente potencial de maior produtividade física (kg/ha).

Multiestratificação subterrânea: extração de elementos de horizontes profundos e disponibilização na superfície do solo como deposição de serrapilheira ou pelo manejo de podas. Exemplos de benefícios: economia de adubos, maior produtividade física (kg/ha), menor uso de água.

Manejos agroecológicos: os manejos agroecológicos são as estratégias mais usuais e de maior impacto na produtividade, tendo diversos efeitos ecológicos com reflexos econômicos, já bastante documentados, seja na fertilidade química, na vida do solo e na renovação da qualidade dos recursos como a água. 

Ainda na questão dos manejos agroecológicos, esses tem reflexos em diversos níveis, tais como:

Na renovação da fertilidade: uso de composto, esterco, resíduos da propriedade; cultivo de plantas de adubação verde e de produção de biomassa. Exemplos de benefícios: economia na aquisição de fertilizantes, menor custo de transporte, elementos não tóxicos em contato com o ambiente, conservação da qualidade dos recursos internos, entre outros. 

Na melhoria física e biológica do solo: melhor estruturação e qualidade física, facilidade de penetração das raízes, maior absorção de água, abundância da fauna edáfica, aceleração da mineralização e absorção de nutrientes. Exemplos de benefícios: manutenção do potencial produtivo do solo a baixo custo, menor despesa em manejos e insumos, menos despesas com práticas de conservação do solo, maior crescimento das plantas, mais produtividade física.

Na disponibilidade e qualidade da água: captação, conservação e “produção” de água, à semelhança de uma floresta natural. Exemplos de benefícios: menor custo de irrigação, melhor qualidade da água, recuperação de nascentes e maior potência de oferta de água potável.

Considerações finais

Sistemas biodiversos, como as agroflorestas são alternativas viáveis ao monocultivo. Considerando tão somente a abordagem financeira, mostram sua superioridade produtiva em comparação aos monocultivos da agricultura industrial. No entanto, seu papel não é apenas o de gerar renda aos agricultores, mas, mais do que isso, propõem uma nova forma de relacionamento com a natureza e com a vida humana. São alternativas de inclusão social, tanto dos agricultores como dos cidadãos da cidade. Oferecem produtos isentos de agrotóxicos. Conservam os recursos solo, água e biodiversidade. Mitigam as mudanças climáticas. São, assim, opções realistas para a continuidade da vida no planeta.

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Agroecologia num contexto solidário e criativo

Os desafios pelos quais o mundo enfrenta precisam de soluções colaborativas, e entre elas a agroecologia assume destaque; conheça mais sobre esse conceito, a partir da visão de diversos autores, e entenda o motivo de a agroecologia ser vista, por muitos, como uma das alternativas mais viáveis para combatermos os males da globalização, que escasseia os recursos naturais e idolatra o consumismo desenfreado

Por Afonso Peche *

No mundo atual, vivemos duas situações opostas: de um lado uma globalização que impõe aos povos a economia do lucro rápido e do tecnicismo de consumo, gerando riqueza para poucos; e de outro lado, a realidade dos povos tradicionais, miseráveis e discriminados que juntos geram pobreza de muitos.

É evidente que a globalização explora a natureza de modo extrativista, gerando emprego e desemprego, renda e necessidades, acarreta em concentração de riqueza, segregação e interrupção no processo civilizatório tradicional – tudo isto, às custas da exaustão de recursos naturais e do consumo exagerado. É também evidente que, a cada ano, os movimentos populares ganham mais força, mais identidade e que a parte mais desassistida da população na busca da sobrevivência promove também a degradação ambiental e humana. Todos buscando alternativas para um desenvolvimento social com melhorias para a vida.

Nas questões relacionadas com a degradação do planeta, parece que há um consenso: é preciso mudar nossas atitudes e ações com a natureza. O modelo de convivência do homem com a natureza não é bom. Precisamos com urgência sair do extrativismo e construir bases sustentáveis com respeito a todas formas de vidas. Já nas questões relacionadas com o social, também parece ter outro consenso, o de que não estamos bem e a sociedade está mais segregadora, violenta e desumana. O modelo social das comunidades precisa ser trabalhado em busca do desenvolvimento local, bem estar e solidariedade.

As confluências e desafios de práticas alternativas para um desenvolvimento mais humano e racional levam à construção de uma plataforma de necessidades e saberes que se completam quando são tratados como bases de organização comunitária. Neste sentido, há uma imensa possibilidade de adoção das diretrizes da agroecologia, da economia solidária e da economia criativa. No caso de reestruturação nos rumos de cidades, bairros, localidades e outras formas comunitárias de se viver, a agroecologia solidária e criativa passa a existir como uma manifestação alternativa, estabelecendo objetivos e propósitos de promover um desenvolvimento mais inclusivo, com mais dignidade humana e mais sustentabilidade.

Há vertentes na academia que defendem que a agroecologia se apresenta como uma matriz disciplinar integradora, totalizante, holística, capaz de apreender e aplicar conhecimentos gerados em diferentes disciplinas científicas. Assim, ela vem se constituindo na ciência basilar de um novo paradigma de desenvolvimento rural, que tem sido construído ao longo das últimas décadas.

O propósito deste artigo é oferecer uma reflexão direcionada para os instrumentos de mudança que representam a junção de conceitos na tentativa de definir o que venha a ser agroecologia solidária e criativa.

Fundamentos sobre agroecologia

A agroecologia pode ser definida como uma ciência que estuda a agricultura local com base no ecossistema de referência. O produto da agroecologia é um agroecossistema, ou seja, um sistema de produção agrícola que leva em consideração as relações ecológicas locais na busca de uma ocupação e uso das terras de forma a construir ambientes com perenidade produtiva e ecologicamente equilibrados.

Ela tem como fundamento básico o desenvolvimento de sistemas agrários a partir da experiência em executar e experimentar práticas agrícolas. A agroecologia enfatiza a inovação a partir da capacidade da comunidade em experimentar, transformar e desenvolver o conhecimento local entre seus atores.

Segundo o professor Miguel Altieri, a agroecologia oferece orientações básicas para o desenvolvimento de agroecossistemas que se beneficiam dos efeitos da integração proporcionados pela biodiversidade de plantas e animais, o que favorece complexas interações e sinergismos assim como: regulação biótica de organismos prejudiciais, reciclagem de nutrientes e a produção e acumulação de biomassa, permitindo que o agroecossistema estabilize seu próprio funcionamento.

Para Altieri, o objetivo final do modelo agroecológico é melhorar a sustentabilidade econômica e ecológica dos agroecossistemas, ao propor um sistema de manejo que tenha como base os recursos locais e uma estrutura operacional adequada às condições ambientais e socioeconômicas existentes. Ao se adotar uma estratégia agroecológica, os componentes de manejo são geridos com o objetivo de garantir a conservação e aprimorar os recursos locais (germoplasma, solo, fauna benéfica, diversidade vegetal, etc.) enfatizando o desenvolvimento de metodologias que valorizem a participação dos agricultores, o conhecimento tradicional e a adaptação da atividade agrícola às necessidades locais e às condições socioeconômicas e biofísicas.

Para o autor de “Agroecologia Militante”, Ivani Guterres, a agroecologia não é uma disciplina, e sim um abordagem transdisciplinar que enfoca a atividade agrária desde uma perspectiva ecológica. É um enfoque teórico e metodológico que, utilizando várias disciplinas científicas, pretende estudar a atividade agrária vinculando essencialmente o que existe entre o solo, a planta, o animal e o ser humano. Segundo ele, a dinâmica das explorações agrárias não se explica só por condicionamentos agronômicos da parcela e sim por condicionamentos ambientais, sociais e econômicos. As variáveis sociais ocupam um papel muito relevante, dado que as relações estabelecidas entre seres humanos e as instituições que as regulam constituem a peça-chave dos sistemas agrários, que dependem do homem para sua manutenção.

Michael J. Dover e Lee M. Talbot afirmavam que a regra principal da agroecologia é que não há substituto para o conhecimento detalhado de um determinado terreno que está sendo planejado ou manejado. Para esses autores, princípios, teorias e, inclusive, aparentes “leis” devem submeter-se à realidade. O que os ecólogos oferecem à agricultura não é um conjunto de respostas fáceis, mas um conjunto de perguntas difíceis.

Por fim, Stephen Gliessman considera que a agricultura do futuro requer uma “nova” abordagem, tanto na forma de praticar como em questões do desenvolvimento agrícola. Para ele, o futuro passa por conservar os recursos da agricultura tradicional local, enquanto, ao mesmo tempo se exploram conhecimento e métodos ecológicos modernos.

Esta abordagem é configurada na ciência da agroecologia, que é definida como a aplicação de conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis. Ainda segundo o autor, a agroecologia proporciona o conhecimento e a metodologia necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente consistente, altamente produtiva e economicamente viável.

A agroecologia abre a porta para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura, em parte porque corta pela raiz a distinção entre a produção de conhecimento e a sua aplicação; valoriza o conhecimento local e empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e a sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade.

Buscando o desenvolvimento solidário e criativo

A agroecologia solidária e criativa é uma tentativa de estabelecer uma construção de convergências e identidades entre pólos de articulação social e política. Deve ser entendida como resultante de um sinergismo voltado para uma ampla rede de interesses, solidariedade e criatividade. Num campo dinâmico de relações pode ser considerado um grande entendimento de: “redes de redes”, “espaços de articulação e diálogos”, “articulações de movimentos sociais e organizações”. Esse grande entendimento pode ser o caminho de mobilização de um amplo grupo de entidades diversificadas e autônomas, cuja solidariedade e criatividade resultam em um permanente trabalho de construção e reconstrução.

A valorização de formas participativas para a promoção do desenvolvimento local é a proposta da agroecologia como um caminho que assegura atender as reais necessidades das comunidades rurais ou urbanas. O primeiro passo para criar um movimento agroecológico solidário e criativo é checar e alinhar, entre líderes e membros da comunidade, conceitos e significados práticos para que posteriormente se possa definir ações operacionais de um redesenho que agregue instrumentos para possibilitar a ampliação de oportunidades para valorização da cultura local, geração de renda, empregos, acesso a serviços sociais e ao equilíbrio ecológico territorial.

A adoção da agroecologia solidária e criativa propicia múltiplas incorporações na sociedade local, e aponta caminhos para aberturas de alternativas e escolhas baseadas na cultura local. O desenvolvimento ocorre a partir da experiência comunitária e das pessoas em conviver com a natureza e interagir com demandas para conhecimento e integração de saberes na construção de ambientes. Em agroecologia não existem receitas prontas, existe sim um resgate do conhecimento endógeno para construção de novas formas de aplicação da tecnologia.

Mais do que simplesmente tratar sobre o manejo ecologicamente responsável dos recursos naturais, a agroecologia constitui-se em um campo do conhecimento científico que, partindo de um enfoque holístico, pretende contribuir para que as sociedades redirecionem o desenvolvimento socioambiental. Assim, a agroecologia integra e articula conhecimentos de diferentes ciências, permitindo a compreensão e análise do atual modelo de desenvolvimento rural e o desenho de novas estratégias agrícolas sustentáveis.

Um ponto fundamental é o desenvolvimento de práticas agroecológicas para a produção de alimentos livres de contaminantes químicos e biológicos, que além de atender de maneira integrada à extinção da dependência de insumos externos, cria oportunidade para o desenvolvimento de ações da economia solidária focadas na soberania e segurança alimentar.

Além das atividades relacionadas com produção de alimentos, lembramos que a agroecologia preconiza ações comunitárias para o saneamento do meio, como por exemplo, práticas para controle da poluição ambiental, das zoonoses, das condições de trabalho e da saúde, abrindo aí outras formas de inserir e desenvolver a economia solidária.

Os autores Rodrigo Machado Moreira e Maristela Simões do Carmo sugerem sete princípios básicos para elaboração de um plano de desenvolvimento rural em bases agroecológicas. São eles:

1 – Integralidade (além da produção agrícola e o manejo dos recursos naturais, deve-se levar em conta o aproveitamento dos distintos elementos existentes na região estabelecendo atividades econômicas e socioculturais, abarcando a maior parte dos setores para permitir o acesso aos meios de vida pela população);

2 – Harmonia e equilíbrio (os esquemas de desenvolvimento devem contrabalançar crescimento econômico e qualidade do meio ambiente, buscando sempre o equilíbrio ecológico);

3 – Autonomia de gestão e controle (os habitantes da localidade é que devem gerar, gerir e controlar os elementos-chave do processo de desenvolvimento);

4 – Minimização das externalidades negativas nas atividades produtivas (estabelecimento de redes locais de produção, troca de insumos e consumo de produtos ecológicos, como forma de enfrentar o poder exercido pelo mercado convencional de insumos de origem industrial e sintética);

5 – Manutenção e fortalecimento dos circuitos curtos de comercialização (fortalecimento ao máximo dos mercados locais possibilita aos agricultores aprenderem e terem controle sobre os processos de comercialização, quando se deve então passar aos mercados micro e macrorregionais e tentar conquistar mercados externos vinculados às redes globais de mercado solidário);

6 – Utilização do conhecimento local de manejo dos recursos naturais (o conhecimento local, em interação horizontal com o conhecimento científico, que pode aportar soluções realmente sustentáveis para a região considerada);

7 – Pluriatividade, seletividade e complementaridade de rendas (a pluriatividade difere da simples introdução de atividades não agrícolas no meio rural, tão característica dos programas de desenvolvimento rural integrado; a seletividade está relacionado à escolha coletiva e, portanto, participativa, de que tipo de atividade produtiva complementar se introduzirá na localidade).

Não se trata de substituir, portanto, a atividade agrícola por outras como a atividade turística desordenada e controlada por grupos externos à comunidade e que se apropriam do potencial endógeno da localidade. É importante lembrar que pluriatividade oportuniza ações de economia criativa e fortalece as rendas complementares à renda agrícola. As ações da economia criativa ocorrem de forma individual ou por meio de estruturas associativas, gera laços de solidariedade tomando especial cuidado com a valorização da cultura local.

Outro importante autor, Eduardo Sevilla Guzmán, ainda levanta outras características compartilhadas pelas experiências alternativas de agricultura agroecológica que emergem na América Latina, como a endogeneização produtiva através de processos de transição para agricultura agroecológica; a diversificação da produção e dos mercados para eliminar os riscos sociais e ecológicos; a geração de redes locais de trocas produtivas em termos de sementes, conhecimentos de gestão e técnicas desenvolvidas nas propriedades; a geração de redes de intercâmbio regional para a criação de novos circuitos que entram “formas produtivas” descritos acima e a geração de redes globais para trocar as “experiências socioeconômicas” relativas à resistência ao modelo de produção gerado pelo paradigma da modernização.

Fica clara, portanto, a riqueza do universo no qual estão inseridos os pequenos agricultores e povos tradicionais e as infinitas oportunidades de convergências adaptativas das ações propostas pela agroecologia, e pelas economias solidária e criativa.

* Afonso Peche, pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC

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