Os desafios pelos quais o mundo enfrenta precisam de soluções colaborativas, e entre elas a agroecologia assume destaque; conheça mais sobre esse conceito, a partir da visão de diversos autores, e entenda o motivo de a agroecologia ser vista, por muitos, como uma das alternativas mais viáveis para combatermos os males da globalização, que escasseia os recursos naturais e idolatra o consumismo desenfreado

Por Afonso Peche *

No mundo atual, vivemos duas situações opostas: de um lado uma globalização que impõe aos povos a economia do lucro rápido e do tecnicismo de consumo, gerando riqueza para poucos; e de outro lado, a realidade dos povos tradicionais, miseráveis e discriminados que juntos geram pobreza de muitos.

É evidente que a globalização explora a natureza de modo extrativista, gerando emprego e desemprego, renda e necessidades, acarreta em concentração de riqueza, segregação e interrupção no processo civilizatório tradicional – tudo isto, às custas da exaustão de recursos naturais e do consumo exagerado. É também evidente que, a cada ano, os movimentos populares ganham mais força, mais identidade e que a parte mais desassistida da população na busca da sobrevivência promove também a degradação ambiental e humana. Todos buscando alternativas para um desenvolvimento social com melhorias para a vida.

Nas questões relacionadas com a degradação do planeta, parece que há um consenso: é preciso mudar nossas atitudes e ações com a natureza. O modelo de convivência do homem com a natureza não é bom. Precisamos com urgência sair do extrativismo e construir bases sustentáveis com respeito a todas formas de vidas. Já nas questões relacionadas com o social, também parece ter outro consenso, o de que não estamos bem e a sociedade está mais segregadora, violenta e desumana. O modelo social das comunidades precisa ser trabalhado em busca do desenvolvimento local, bem estar e solidariedade.

As confluências e desafios de práticas alternativas para um desenvolvimento mais humano e racional levam à construção de uma plataforma de necessidades e saberes que se completam quando são tratados como bases de organização comunitária. Neste sentido, há uma imensa possibilidade de adoção das diretrizes da agroecologia, da economia solidária e da economia criativa. No caso de reestruturação nos rumos de cidades, bairros, localidades e outras formas comunitárias de se viver, a agroecologia solidária e criativa passa a existir como uma manifestação alternativa, estabelecendo objetivos e propósitos de promover um desenvolvimento mais inclusivo, com mais dignidade humana e mais sustentabilidade.

Há vertentes na academia que defendem que a agroecologia se apresenta como uma matriz disciplinar integradora, totalizante, holística, capaz de apreender e aplicar conhecimentos gerados em diferentes disciplinas científicas. Assim, ela vem se constituindo na ciência basilar de um novo paradigma de desenvolvimento rural, que tem sido construído ao longo das últimas décadas.

O propósito deste artigo é oferecer uma reflexão direcionada para os instrumentos de mudança que representam a junção de conceitos na tentativa de definir o que venha a ser agroecologia solidária e criativa.

Fundamentos sobre agroecologia

A agroecologia pode ser definida como uma ciência que estuda a agricultura local com base no ecossistema de referência. O produto da agroecologia é um agroecossistema, ou seja, um sistema de produção agrícola que leva em consideração as relações ecológicas locais na busca de uma ocupação e uso das terras de forma a construir ambientes com perenidade produtiva e ecologicamente equilibrados.

Ela tem como fundamento básico o desenvolvimento de sistemas agrários a partir da experiência em executar e experimentar práticas agrícolas. A agroecologia enfatiza a inovação a partir da capacidade da comunidade em experimentar, transformar e desenvolver o conhecimento local entre seus atores.

Segundo o professor Miguel Altieri, a agroecologia oferece orientações básicas para o desenvolvimento de agroecossistemas que se beneficiam dos efeitos da integração proporcionados pela biodiversidade de plantas e animais, o que favorece complexas interações e sinergismos assim como: regulação biótica de organismos prejudiciais, reciclagem de nutrientes e a produção e acumulação de biomassa, permitindo que o agroecossistema estabilize seu próprio funcionamento.

Para Altieri, o objetivo final do modelo agroecológico é melhorar a sustentabilidade econômica e ecológica dos agroecossistemas, ao propor um sistema de manejo que tenha como base os recursos locais e uma estrutura operacional adequada às condições ambientais e socioeconômicas existentes. Ao se adotar uma estratégia agroecológica, os componentes de manejo são geridos com o objetivo de garantir a conservação e aprimorar os recursos locais (germoplasma, solo, fauna benéfica, diversidade vegetal, etc.) enfatizando o desenvolvimento de metodologias que valorizem a participação dos agricultores, o conhecimento tradicional e a adaptação da atividade agrícola às necessidades locais e às condições socioeconômicas e biofísicas.

Para o autor de “Agroecologia Militante”, Ivani Guterres, a agroecologia não é uma disciplina, e sim um abordagem transdisciplinar que enfoca a atividade agrária desde uma perspectiva ecológica. É um enfoque teórico e metodológico que, utilizando várias disciplinas científicas, pretende estudar a atividade agrária vinculando essencialmente o que existe entre o solo, a planta, o animal e o ser humano. Segundo ele, a dinâmica das explorações agrárias não se explica só por condicionamentos agronômicos da parcela e sim por condicionamentos ambientais, sociais e econômicos. As variáveis sociais ocupam um papel muito relevante, dado que as relações estabelecidas entre seres humanos e as instituições que as regulam constituem a peça-chave dos sistemas agrários, que dependem do homem para sua manutenção.

Michael J. Dover e Lee M. Talbot afirmavam que a regra principal da agroecologia é que não há substituto para o conhecimento detalhado de um determinado terreno que está sendo planejado ou manejado. Para esses autores, princípios, teorias e, inclusive, aparentes “leis” devem submeter-se à realidade. O que os ecólogos oferecem à agricultura não é um conjunto de respostas fáceis, mas um conjunto de perguntas difíceis.

Por fim, Stephen Gliessman considera que a agricultura do futuro requer uma “nova” abordagem, tanto na forma de praticar como em questões do desenvolvimento agrícola. Para ele, o futuro passa por conservar os recursos da agricultura tradicional local, enquanto, ao mesmo tempo se exploram conhecimento e métodos ecológicos modernos.

Esta abordagem é configurada na ciência da agroecologia, que é definida como a aplicação de conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis. Ainda segundo o autor, a agroecologia proporciona o conhecimento e a metodologia necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente consistente, altamente produtiva e economicamente viável.

A agroecologia abre a porta para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura, em parte porque corta pela raiz a distinção entre a produção de conhecimento e a sua aplicação; valoriza o conhecimento local e empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e a sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade.

Buscando o desenvolvimento solidário e criativo

A agroecologia solidária e criativa é uma tentativa de estabelecer uma construção de convergências e identidades entre pólos de articulação social e política. Deve ser entendida como resultante de um sinergismo voltado para uma ampla rede de interesses, solidariedade e criatividade. Num campo dinâmico de relações pode ser considerado um grande entendimento de: “redes de redes”, “espaços de articulação e diálogos”, “articulações de movimentos sociais e organizações”. Esse grande entendimento pode ser o caminho de mobilização de um amplo grupo de entidades diversificadas e autônomas, cuja solidariedade e criatividade resultam em um permanente trabalho de construção e reconstrução.

A valorização de formas participativas para a promoção do desenvolvimento local é a proposta da agroecologia como um caminho que assegura atender as reais necessidades das comunidades rurais ou urbanas. O primeiro passo para criar um movimento agroecológico solidário e criativo é checar e alinhar, entre líderes e membros da comunidade, conceitos e significados práticos para que posteriormente se possa definir ações operacionais de um redesenho que agregue instrumentos para possibilitar a ampliação de oportunidades para valorização da cultura local, geração de renda, empregos, acesso a serviços sociais e ao equilíbrio ecológico territorial.

A adoção da agroecologia solidária e criativa propicia múltiplas incorporações na sociedade local, e aponta caminhos para aberturas de alternativas e escolhas baseadas na cultura local. O desenvolvimento ocorre a partir da experiência comunitária e das pessoas em conviver com a natureza e interagir com demandas para conhecimento e integração de saberes na construção de ambientes. Em agroecologia não existem receitas prontas, existe sim um resgate do conhecimento endógeno para construção de novas formas de aplicação da tecnologia.

Mais do que simplesmente tratar sobre o manejo ecologicamente responsável dos recursos naturais, a agroecologia constitui-se em um campo do conhecimento científico que, partindo de um enfoque holístico, pretende contribuir para que as sociedades redirecionem o desenvolvimento socioambiental. Assim, a agroecologia integra e articula conhecimentos de diferentes ciências, permitindo a compreensão e análise do atual modelo de desenvolvimento rural e o desenho de novas estratégias agrícolas sustentáveis.

Um ponto fundamental é o desenvolvimento de práticas agroecológicas para a produção de alimentos livres de contaminantes químicos e biológicos, que além de atender de maneira integrada à extinção da dependência de insumos externos, cria oportunidade para o desenvolvimento de ações da economia solidária focadas na soberania e segurança alimentar.

Além das atividades relacionadas com produção de alimentos, lembramos que a agroecologia preconiza ações comunitárias para o saneamento do meio, como por exemplo, práticas para controle da poluição ambiental, das zoonoses, das condições de trabalho e da saúde, abrindo aí outras formas de inserir e desenvolver a economia solidária.

Os autores Rodrigo Machado Moreira e Maristela Simões do Carmo sugerem sete princípios básicos para elaboração de um plano de desenvolvimento rural em bases agroecológicas. São eles:

1 – Integralidade (além da produção agrícola e o manejo dos recursos naturais, deve-se levar em conta o aproveitamento dos distintos elementos existentes na região estabelecendo atividades econômicas e socioculturais, abarcando a maior parte dos setores para permitir o acesso aos meios de vida pela população);

2 – Harmonia e equilíbrio (os esquemas de desenvolvimento devem contrabalançar crescimento econômico e qualidade do meio ambiente, buscando sempre o equilíbrio ecológico);

3 – Autonomia de gestão e controle (os habitantes da localidade é que devem gerar, gerir e controlar os elementos-chave do processo de desenvolvimento);

4 – Minimização das externalidades negativas nas atividades produtivas (estabelecimento de redes locais de produção, troca de insumos e consumo de produtos ecológicos, como forma de enfrentar o poder exercido pelo mercado convencional de insumos de origem industrial e sintética);

5 – Manutenção e fortalecimento dos circuitos curtos de comercialização (fortalecimento ao máximo dos mercados locais possibilita aos agricultores aprenderem e terem controle sobre os processos de comercialização, quando se deve então passar aos mercados micro e macrorregionais e tentar conquistar mercados externos vinculados às redes globais de mercado solidário);

6 – Utilização do conhecimento local de manejo dos recursos naturais (o conhecimento local, em interação horizontal com o conhecimento científico, que pode aportar soluções realmente sustentáveis para a região considerada);

7 – Pluriatividade, seletividade e complementaridade de rendas (a pluriatividade difere da simples introdução de atividades não agrícolas no meio rural, tão característica dos programas de desenvolvimento rural integrado; a seletividade está relacionado à escolha coletiva e, portanto, participativa, de que tipo de atividade produtiva complementar se introduzirá na localidade).

Não se trata de substituir, portanto, a atividade agrícola por outras como a atividade turística desordenada e controlada por grupos externos à comunidade e que se apropriam do potencial endógeno da localidade. É importante lembrar que pluriatividade oportuniza ações de economia criativa e fortalece as rendas complementares à renda agrícola. As ações da economia criativa ocorrem de forma individual ou por meio de estruturas associativas, gera laços de solidariedade tomando especial cuidado com a valorização da cultura local.

Outro importante autor, Eduardo Sevilla Guzmán, ainda levanta outras características compartilhadas pelas experiências alternativas de agricultura agroecológica que emergem na América Latina, como a endogeneização produtiva através de processos de transição para agricultura agroecológica; a diversificação da produção e dos mercados para eliminar os riscos sociais e ecológicos; a geração de redes locais de trocas produtivas em termos de sementes, conhecimentos de gestão e técnicas desenvolvidas nas propriedades; a geração de redes de intercâmbio regional para a criação de novos circuitos que entram “formas produtivas” descritos acima e a geração de redes globais para trocar as “experiências socioeconômicas” relativas à resistência ao modelo de produção gerado pelo paradigma da modernização.

Fica clara, portanto, a riqueza do universo no qual estão inseridos os pequenos agricultores e povos tradicionais e as infinitas oportunidades de convergências adaptativas das ações propostas pela agroecologia, e pelas economias solidária e criativa.

* Afonso Peche, pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC