Lavanderia 8 de Março: visibilizando mulheres por meio da economia solidária

Quando os tempos de crise batem à porta, a Economia Solidária se mostra uma importante ferramenta na recuperação de pessoas vulnerabilizadas à procura de novos caminhos para suas vidas. É isso que tem feito, há 12 anos, um Empreendimento Econômico Solidário localizado em Santos/SP, em uma das regiões mais precárias da cidade: a Lavanderia 8 de Março. Conheceremos a história de duas mulheres que trabalham no local, e que graças a ele tiveram suas vidas modificadas

Daniel Keppler *

Uma das maiores virtudes da Economia Solidária é a forma como ela exalta o desenvolvimento humano e a união em busca do crescimento e evolução da coletividade – o oposto do que se vê nas relações de trabalho no capitalismo.

É algo que se atesta fortemente nos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES). Se no trabalho organizado pelo capital a realidade é um processo violento (e acelerado) de opressão, precarização e perda de direitos, nos EES o que se vê é cada vez mais coletivos beneficiando comunidades, através do trabalho baseado na autogestão, lógica construtiva no que diz respeito à dignidade.

Por isso, importa contar histórias de pessoas cujas vidas foram impactadas pela Economia Solidária. Nesse artigo, vamos conhecer a Ana Paula e a Luiza, mulheres e militantes da vida, que participam da Lavanderia 8 de Março, em Santos/SP.

Cooperativismo em prol de uma comunidade

Para entender a história da lavanderia, uma experiência solidária desenvolvida em simbiose entre movimento e poder público, conversamos com Marcia Farah Reis, psicóloga clínica, membro do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e chefe da Seção de Cooperativas da Secretaria de Assistência Social (SEAS) da Prefeitura de Santos.

“A lavanderia foi uma sugestão de um partido político à prefeitura, e era uma demanda bastante antiga da região do Centro, para que as pessoas moradoras dos cortiços pudessem lavar e secar as suas roupas. A proposta era de que essas pessoas tivessem onde lavar as suas roupas”, afirma.

Mas no desenvolvimento do projeto, percebeu-se que ele podia mais. E se ele pudesse levar renda para as mulheres daquela região, e ser um agente de inclusão social e de transformação daquela comunidade, a partir da aplicação dos princípios da Economia Solidária? Foi quando se decidiu aplicar o modelo de cooperativa.

Os primeiros desafios vieram com sua inauguração, em janeiro de 2009. Percebeu-se que seu sucesso dependia de uma quebra da lógica capitalista que influenciava as relações de trabalho e consumo daquela comunidade. Isso foi feito com terapia comunitária, tanto para desconstruir a cultura que exaltava a relação patrão-empregado no ambiente de trabalho, quanto para combater o patriarcado capitalista que fazia as mulheres da lavanderia sofrerem com o preconceito, quando mais precisavam de apoio.

As sessões foram um sucesso, segundo Marcia. “As mulheres passaram a se olhar de uma maneira diferente, umas com as outras. Não mais competitivas, e sim solidárias. Os clientes passaram a ter um olhar mais respeitoso, e a comunidade começou a colaborar com o empreendimento”, diz.

Toda a administração e operação da lavanderia é feita pelas mulheres. Quando o SEAS indica uma nova mulher para ser acolhida, diretamente ou através do Projeto Fênix, deve ser aprovada pelas que já são cooperadas. Ao iniciar o trabalho, ela é ensinada pelas próprias colegas, que dividem seu conhecimento. As responsabilidades são partilhadas, e as decisões são tomadas em assembleias.

E assim, já são 12 anos de história, mudando a vida de muita gente, por meio do trabalho autogerido e também pelo exemplo. “A mudança de comportamento que ocorre dentro de um EES é cultural. Você leva para dentro da sua casa, para seus filhos. E assim esses ensinamentos vão se reproduzindo na sociedade. A princípio a gente pensa que a Economia Solidária é só sobre gerar renda, mas é muito mais do que isso. É uma transformação pessoal, e é a partir dessa transformação pessoal que a gente tem o ideal de transformar a sociedade”, conclui Marcia.

Luiza: uma chance de recomeçar

Luiza nos atendeu virtualmente, para sua segurança devido à pandemia. Com 59 anos e carreira na área administrativa, sua história é parecida com a de tantas outras mulheres Brasil afora: formada, experiente, mas empurrada para fora do mercado de trabalho pelas empresas capitalistas. “Minha mãe teve câncer, e eu tive que parar de trabalhar para cuidar dela. Quando voltei, me disseram que eu ‘não tinha o perfil’. Era 2013 nessa época”, conta.

Foram cinco anos desempregada, até que Luiza foi indicada por uma conhecida para trabalhar na Lavanderia 8 de Março. “Eu já sabia que a lavanderia existia, mas não sabia que era um projeto de Economia Solidária”, conta. Ela foi aprovada.

“Era algo totalmente novo né. Me deu um pouco de medo, mas eu tinha essa amiga que me indicou, que foi um ombro amigo, e todas as outras que me acolheram muito bem”, relembra ela, que continua: “Elas me ensinaram todos os procedimentos, e com o tempo tive a chance de também ajudar na parte administrativa, que faço de casa atualmente, por causa da pandemia”.

Agente de transformação

Para Luiza, a lavanderia representou não apenas a oportunidade de voltar a trabalhar, mas de mudar toda a vida a partir dos princípios da Economia Solidária e do cooperativismo. Segundo ela, muito do que aprendeu nesses três anos foi trazido para sua casa – ela vive com sua companheira, sogra e um filho.

“Estar na lavanderia é uma transformação, tanto como profissional como mulher. Você é empoderada, pois embora tudo seja feito em conjunto, você nunca está submissa a alguém. É libertador. E a profissão é muito boa, aprendi muito”, conta. “Até nosso dinheiro aprendemos a cuidar mais. Hoje, quando eu posso, eu guardo um pouco para emergências”.

Luiza também diz que o trabalho na lavanderia mudou radicalmente seu pensamento sobre muitas coisas. “A ideia de resolver os problemas na conversa, com paciência, é muito importante lá. Temos que resolver tudo entre nós, então fazemos várias reuniões, às vezes duas, três por semanas, e se alguém tem algum problema, vamos conversar até resolver”, diz.

Ela recomenda a toda mulher que estiver se sentindo vulnerável que peça ajuda. “Por mais dificuldades que existam, você sempre precisa acreditar. Há pessoas boas no mundo, e a Economia Solidária é um gigante que está acordando e fazendo essas pessoas se unirem e abrirem os braços a quem precisa. Então acreditem, e busquem auxílio. Eu sempre ouvi dizer quando trabalhava lá fora um ditado que falava ‘entre eu e você, dane-se você’. Aqui é o contrário: entre eu e você, somos nós”.

Ana Paula: um refúgio do sofrimento

Ana Paula recepcionou a reportagem na lavanderia, que acabara de abrir. Sua tarefa naquela segunda-feira era o atendimento no balcão, e foi lá, entre um atendimento e outro, que ela contou um pouco sobre si. “É uma história triste, mas não guardo mágoas”, disse.

Ana Paula nasceu em Santos, há 46 anos – mas não conhece sua origem. Sua mãe biológica a abandonou com três dias de vida. Com sua mãe de criação, aprendeu seus princípios e estudou. “Mas só até a sexta série, pois tinha que trabalhar para ajudar em casa”, conta.

Aos 17 anos, teve sua primeira filha, e logo em seguida se casou, com quem teve mais três filhos. Nessa época conheceu outros traços do capitalismo patriarcal: o machismo estrutural e a violência doméstica. Por isso, quando uma conhecida lhe ofereceu ajuda para sair daquela vida e trabalhar na colheita de morangos no sul da Inglaterra, ela viu uma chance de escapar.

Os anos difíceis na Europa

Mas Ana foi enganada e, por dois anos, foi vítima do pior tipo de escravização que se pode sofrer. Escapou graças a um português que a levou a seu país, e com quem teria um filho. Pouco depois se separou, e ficou sozinha em Portugal. Passou fome, trabalhou em diversos lugares, chegou a comer do lixo. “Mas tive uma vida honesta”, salienta.

Foi quando Ana Paula conheceu o pai de sua filha mais nova. “Foi o pior inferno da minha vida”, segundo ela. “Ele queria um filho, e apaixonada como eu estava, engravidei. Só que de uma menina”, lembra. As violências, ofensas e ameaças de todo tipo culminaram em uma surra que a levou ao hospital, já grávida de seis meses, com risco de morte – dela e da filha. Contra todos os diagnósticos, ambas sobreviveram. “Por isso minha filha se chama Vitória. Ela é um milagre”, recorda.

Vitória precisou de quatro meses em uma incubadora para sobreviver, o que prejudicou sua formação; já Ana ficou 48 horas em coma, e passou por uma longa recuperação. O ex-marido foi processado e condenado pela Justiça portuguesa a 16 anos de prisão, por homicídio na forma tentada.

A volta ao Brasil

Após viver três anos em uma instituição para mulheres vítimas de violência doméstica, Ana Paula precisou voltar ao Brasil para ajudar a mãe, que cuidava de suas filhas. E então, velhos problemas bateram à porta.

Ela foi para o morro do José Menino, onde vive até hoje. “Meu aluguel custava R$ 700, e quando o dinheiro que eu trouxe acabou, só o Bolsa Família não dava conta. Quando o aluguel atrasou cinco meses, a proprietária me disse: ‘ou você arruma o dinheiro, ou vou ter que te despejar’. Foi quando desabei”, diz.

Decidiu, então, procurar a SEAS, onde foi para o Projeto Fênix. Foram vários postos de trabalho, até que em setembro de 2020, foi encaminhada à lavanderia – um susto para ela, na época.

“Eu não queria ir no começo. Me sentia punida, porque não queria sair de onde estava. Não sabia fazer nada ali! Aí eu conheci a Marcia, que me acolheu e explicou: ‘A proposta do projeto é exatamente essa: te ensinar tudo o que você precisar saber para trabalhar lá’. Então eu fui”, conta.

Na lavanderia, Ana Paula aprendeu como o EES funcionava e o que era Economia Solidária. “Na lavanderia, todas me receberam muito bem, e ensinaram tudo que sabiam. Aprendi a etiquetar as peças, a dobrar, lavar e até mesmo a passadoria aprendi a fazer, o que era meu grande medo, pois o aparelho é para destros – eu sou canhota!”, lembra, rindo.

Ainda assim, o medo de decepcionar era forte. “Temia não conseguir agradar, não saber fazer. Mas minhas amigas não me deixaram sair, e hoje eu é que não quero. Aqui tem tudo o que prezo na vida”, revela.

Para complementar a renda, Ana faz trabalhos de manicure e faxina, e está fazendo um curso de cabeleireira. Mas dessa vez, ela encara os desafios de uma forma diferente, graças a tudo que tem aprendido na lavanderia. E é grata por isso.

“Aqui somos umas pelas outras. Se alguma máquina avariar, sai do bolso das cooperadas, que também só ganham se tiver cesto de roupa para lavar. É realmente como se a lavanderia fosse delas. E isso não tem preço, pois lá fora uma mulher de 35 anos já é velha para trabalhar, mas aqui somos mulheres de 40, 50, 60 anos, e somos todas iguais. É o que me faz querer ficar aqui”, finaliza.

* Daniel Keppler é jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; responsável pela gestão de redes sociais do Livres Baixada Santista, onde atua desde 2020.

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Relatos do campo: em busca da sintropia

Em um mundo que vê seus recursos naturais se esvairem com rapidez nunca antes vista, são cada vez mais necessários métodos inovadores de lidar com o solo, a água e todas as formas de vida. Por isso, o surgimento da Agricultura Sintrópica como método de cultivo agroflorestal representou uma verdadeira transformação. A criação do suíço Ernst Götsch vem inspirando milhares de pessoas Brasil afora, entre elas um professor de Gravataí/RS, que mudou seu estilo de vida e a forma como analisa nossa existência nesse planeta. É esse “neorrural” que conta um pouco mais sobre esse método revolucionário.

Vicente Guindani *

Escrever foi, por muito tempo, mais do que um hábito: era uma atividade militante. Mas era algo resumido a jornais, panfletos, alguns documentos teóricos e teses. Participei dos movimentos estudantil e depois sindical, integrei fileiras de organizações de esquerda marxistas e trotskystas e fui dirigente do sindicato dos Correios. Então era natural ter opinião e sugerir linhas políticas para diversos assuntos.

Mas desde que me afastei da militância organizada, mesmo quando estive em sala de aula por quatro anos, escrever foi deixando de ser algo natural. Fui ficando com mais dúvidas, mais criterioso e silencioso, o que se acentuou após a pandemia e a vinda para o sítio. Só que não resisti à chance de falar sobre esse tema tão importante para mim.

Um mundo novo

Morar no campo e ser agricultor nunca foi um sonho meu. Até meus 30 anos eu sequer cogitava essa hipótese. Vivi em Porto Alegre/RS até 2019, quando minha rotina fora de casa se dividia entre dar aulas e fazer música com meus amigos da banda Expresso Livre. Sou pai de dois filhos e sempre encarei as rotinas e o lazer urbanos com naturalidade, como jogar bola na pracinha, ou juntar a galera para um jantar musical. Mas isso mudaria em breve.

Em meados de 2018, quando dava aula para o sétimo ano sobre geografia do Brasil, notei que minhas pesquisas sobre agronegócio e agricultura familiar me provocavam maior interesse, ao mesmo tempo em que alguns estudos pessoais e imersões em contextos místicos colocaram a mim e minha família em contato com culturas da floresta amazônica, práticas e ensinamentos que desse universo provém. Não demorou até conhecermos o conceito de Agrofloresta e, mais especificamente, o sistema de Agricultura Sintrópica desenvolvido por Ernst Gotsh. Nos inscrevemos, então, em um curso sobre o tema, com um dos alunos e discípulo de Ernst, Namastê Messerschimidt. E dali para a frente, não paramos mais.

Mas afinal, o que é a Agricultura Sintrópica?

O método desenvolvido por Gotsh desenvolve uma forma genuína, potente e maravilhosa de nos relacionarmos com o solo, com a água e todas as formas de vida. Coloca a perspectiva da abundância, da soberania alimentar e da dignidade do trabalho em confluência não só com a preservação, mas com a implantação, a multiplicação e a edificação de novas florestas – provavelmente a maior tarefa histórica que nossa geração tem pela frente. E poder construir florestas enquanto se gera renda e alimento saudável, poder misturar o plantio de árvores nativas e de lenha, espécies de reflorestamento, junto com árvores exóticas de valor comercial, como banana, bergamota, abacate e hortaliças diversas, é muito mais atrativo e, principalmente, viável.

O método de manejo é muito interessante, baseado em um conjunto de princípios gerais, mas não restrito a determinadas receitas ou desenhos específicos de plantio. O solo deve estar sempre coberto, seja por cobertura morta ou culturas vivas verdes, como capins e feijões e outras espécies de grande biomassa. Os recursos materiais que produzem energia e promovem a complexificação do sistema vivo estão dentro do próprio local de plantio e manejo. As podas das árvores e a roçada de capins e outras plantas de cobertura são acumuladas nas linhas de plantio em forma de cobertura morta, o que deixa o solo mais úmido e mais vivificado pela presença de diversas formas de microvida (fungos, bactérias, minhocas, formigas). É daí que surge o conceito de Sintropia, em contraste com a lógica e a lei da entropia, que mensura e explica a capacidade que as coisas têm de perder energia e se reorganizar a partir da desordem. A Sintropia seria, ao contrário, o fenômeno e a capacidade que as coisas têm de se complexificarem, e cooperarem para evolução e o aumento da presença de vida e energia a partir da interação de uma diversidade de elementos em um espaço.

A Sintropia coloca a cooperação em destaque e procura agir a partir dessa dimensão de leis presentes na natureza, sobretudo em florestas e ecossistemas biodiversos, através de um número infinito de interações entre seres vivos

Com isso, a Agricultura Sintrópica se caracteriza pela crescente acumulação de matéria orgânica e a formação de solo vivo ao longo do tempo, enquanto as árvores crescem perto umas das outras, com todos os andares desse espaço ocupados pelas espécies de diferentes tamanhos e necessidade de luz. A Estratificação das Árvores, o arranho e distribuição das baixas, médias, altas, de sol ou sombra, como se relacionam e cooperam no espaço, estão também se comunicando na dimensão do tempo, uma vez que em uma mesma linha de 20 metros se planta espécies, com diferentes tempos de amadurecimento. A consequência disso é a qualificação da saúde, proteção e informação de vitalidade para as espécies cultivadas.

Quando estamos plantando couve, cenoura, alface, rúcula, berinjela, ao lado de bananeiras, laranjeiras, abacateiros, ipê roxo, canjerana, araucária, eucalipto, cedro, jerivá, pitangueira, goiabeira, ou quando estamos plantando roça de aipim abóbora, feijão e milho ao lado de crotalária, feijão de porco, bananeiras, chacronas e guapuruvu, na verdade estamos erguendo uma nova floresta, onde antes havia um pasto degradado.

A regeneração, ou seja, a melhoria de um solo degradado por meio do trabalho e de um manejo comprometido com a vida acima de tudo, acaba se tornando fruto de um trabalho que é o acúmulo de experiências e verdades que encontramos fazendo agrofloresta. Trabalhar no sol, mas também na sombra, com frutas variadas, madeira, com rotação de culturas anuais em diversidade e consorciamento, tudo isso chega à mesa e enriquece o espírito do agricultor e agricultora. É o resultado do trabalho feito após uma grande reflexão: se precisamos plantar florestas, como fazer com que isso se torne atrativo e, principalmente, viável? Como fazer do plantio de árvores uma atividade que não seja apenas uma iniciativa ambiental voluntariosa de grande valor, mas também, um negócio interessante para empreendimento, de modo que seja cada vez mais replicável?

O método desenvolvido por Ernst solucionou essa questão de maneira competente, nos dando a possibilidade e o conhecimento prático para plantar as árvores para reflorestamento em alta densidade, e essas por meio das podas irão alimentar a vida no solo onde estão nossas frutíferas. Os gastos menores (rumo ao zero) com adubação e irrigação e a maior variedade e colheita pagam o reflorestamento, porque as árvores e seu manejo é que são os adubos. É como se fosse uma adubação cognitiva entre as plantas, uma transmitindo informações de crescimento ou obsolescência às outras.

É uma ferramenta profundamente transformadora e com potenciais múltiplos, especialmente diante do desafio de levar soberania alimentar a toda a população brasileira. A cultura da abundância e da diversidade, são alicerces da dignidade e boa autoestima tanto para quem produz o alimento quanto para quem o consome.

Florestaria Tarumim: comercialização e redes

A Florestaria Tarumim é um espaço de agricultura familiar, localizada em um sítio de família em Gravataí/RS, onde desenvolvemos estudos práticos em agroecologia, com foco na implantação de sistemas agroflorestais com frutíferas, lenhas e hortaliças. Iniciamos a comercialização de pequenas cestas de hortaliças no outono de 2019, e atualmente temos uma feira no centro da cidade, além de manter nossa rede de entregas em domicílio duas vezes por semana.

Graças aos cultivos de ciclos curtos, a geração de renda é acelerada. Usando a bergamota como exemplo, não precisamos aguardar por anos uma boa colheita de um pomar só dessa fruta, pois ao plantarmos a mesma com outras árvores, a roça e a horta, beneficiamos todas as frutíferas por meio de ciclo de hortaliças e adubação verde e conseguimos obter renda mais cedo.

Além disso, desde o início foi muito importante e saudável estabelecer parcerias com outros produtores da rede agroecológica local. Assim aumentamos a variedade de produtos que oferecemos e acrescentamos bastante qualidade à rede de consumo, beneficiando a todos. Esse também é o propósito da parceria com o Livres, um coletivo que fomenta a agroecologia na cidade, auxiliando o produtor rural a escoar sua produção, facilitando a operação e logística de entrega diretamente ao consumidor. Iniciativas como essa demonstram o potencial da pauta agroecológica diante do atual momento histórico que vivemos.

Transições, esquinas geracionais

Aqui dentro do sítio, todos aprendemos todos os dias com a própria natureza, uns com os outros, com cada colheita, com cada perda. A convivência no trabalho é apimentada por um refinado choque geracional e que também revela o quanto a agroecologia, e sobretudo a Sintropia, entram em rota de colisão com muitos dos esquemas de pensamentos que herdamos de um modo de vida não sustentável e de uma forma de se relacionar com a terra pautado por uma agricultura dependente de insumos. Isso revela o quanto o método de Ernst difere não apenas do agronegócio exportador e da agricultura de monocultura, mas também, de certa forma, da agricultura familiar convencional, tão cara aos nossos pais, tios, avós, primos, funcionários e colegas.

Nesse sentido, a Agricultura Sintrópica permite uma interessante troca: aprendemos o tradicional com os que vieram antes de nós, e ao mesmo tempo ensinamos métodos e manejos novos. Por isso, atos como cobrir o solo, plantar capim, misturar culturas, não matar formiga, são coisas bastante difíceis de se introduzir em alguns contextos, mesmo entre quem quer realmente produzir alimento sem veneno. Até porque a Sintropia permite ir além disso: os alimentos também ganham valor nutricional e sabores oriundos dos processos que acontecem em um solo vivo – um benefício singular e que faz tudo valer a pena.

Solos vivos ou a morte desertificada

Se “nós somos aquilo que o solo faz de nós”, como ensinou a mestre Ana Primavesi, então tudo passa pela forma como nos relacionamos com o solo, com sua regeneração e conservação: o pão, o dinheiro, a água, a vida em si, toda a culpa, o perdão, as lutas, a resistência, a esperança, a memória, os sonhos sonhados aqui na Terra…

Portanto, somos espelho do que fazemos no solo. Toda dor do tamanho de uma pandemia, todo respeito à ciência e toda fé, tudo passa pela regeneração e conservação do solo fértil. O Inferno é o solo desertificado. Na floresta, as mortes alimentam a vida. Sempre é possível enxergar na morte a possibilidade de fortalecer a vida. Mas num deserto que era floresta, as mortes se tornam em vão, vazias. E as mortes não deveriam nunca ser em vão.

Acredito que nossa existência aqui na Terra depende da nossa luta para que ela seja um lugar melhor. E para que após a pandemia tenhamos algum aprendizado e evolução, temos urgentemente que olhar para a terra com mais atenção, respeito e consciência, a começar pela certeza de que sem floresta em pé não existe sequer a luta por justiça, saúde e liberdade.

A Sintropia não é a única ferramenta e nem o único método ou linha de agricultura ecológica, obviamente. Como diz o professor Fernando Rabello, a melhor agricultura é toda aquela que caminha para o aumento da vida, e o solo sempre é o critério de verificação desse melhoramento. Mas independente dos vários métodos existentes, aqui foi a Sintropia que nos despertou a vontade e a disposição de botar a mão na terra e plantar milhares de árvores.

Nela colocamos muita fé, foco e trabalho. Através dela, tenho conseguido entender e reunir as diferentes etapas da minha vida até aqui, a militância social, a arte e o amor pela natureza e seus mistérios. O sentido de futuro e a construção de sonhos alcançáveis vão se consolidando a cada dia de trabalho, e isso é nutrição e saúde para a nossa mente e nossa alma. Afinal, como afirmou um dia o genial Namastê Messerschmidt, “A Revolução será Agroflorestal”!

* Vicente Guindani é professor, músico e agricultor familiar, entusiasta da agricultura familiar e sintrópica. Responsável pela Florestaria Tarumin, em Gravataí/RS.

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Socialismo autogestionário como objetivo tático e estratégico

Para grandes mudanças sistêmicas, além dos grandes e barulhentos momentos históricos de ruptura (as chamadas revoluções), é preciso também de mudanças aparentemente mais silenciosas e profundas na lógica de vida de uma sociedade. Foi assim no capitalismo e isso terá de acontecer para que possamos construir uma transição que chegue ao Socialismo. O destino e o caminho seria a livre associação dos trabalhadores, algo que parece óbvio taticamente, mas que ainda não figura na estratégia de muitas organizações de esquerda. Quem anuncia a Revolução Silenciosa de um socialismo autogestionário é Newton Rodrigues.

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Agroecologia num contexto solidário e criativo

Os desafios pelos quais o mundo enfrenta precisam de soluções colaborativas, e entre elas a agroecologia assume destaque; conheça mais sobre esse conceito, a partir da visão de diversos autores, e entenda o motivo de a agroecologia ser vista, por muitos, como uma das alternativas mais viáveis para combatermos os males da globalização, que escasseia os recursos naturais e idolatra o consumismo desenfreado

Por Afonso Peche *

No mundo atual, vivemos duas situações opostas: de um lado uma globalização que impõe aos povos a economia do lucro rápido e do tecnicismo de consumo, gerando riqueza para poucos; e de outro lado, a realidade dos povos tradicionais, miseráveis e discriminados que juntos geram pobreza de muitos.

É evidente que a globalização explora a natureza de modo extrativista, gerando emprego e desemprego, renda e necessidades, acarreta em concentração de riqueza, segregação e interrupção no processo civilizatório tradicional – tudo isto, às custas da exaustão de recursos naturais e do consumo exagerado. É também evidente que, a cada ano, os movimentos populares ganham mais força, mais identidade e que a parte mais desassistida da população na busca da sobrevivência promove também a degradação ambiental e humana. Todos buscando alternativas para um desenvolvimento social com melhorias para a vida.

Nas questões relacionadas com a degradação do planeta, parece que há um consenso: é preciso mudar nossas atitudes e ações com a natureza. O modelo de convivência do homem com a natureza não é bom. Precisamos com urgência sair do extrativismo e construir bases sustentáveis com respeito a todas formas de vidas. Já nas questões relacionadas com o social, também parece ter outro consenso, o de que não estamos bem e a sociedade está mais segregadora, violenta e desumana. O modelo social das comunidades precisa ser trabalhado em busca do desenvolvimento local, bem estar e solidariedade.

As confluências e desafios de práticas alternativas para um desenvolvimento mais humano e racional levam à construção de uma plataforma de necessidades e saberes que se completam quando são tratados como bases de organização comunitária. Neste sentido, há uma imensa possibilidade de adoção das diretrizes da agroecologia, da economia solidária e da economia criativa. No caso de reestruturação nos rumos de cidades, bairros, localidades e outras formas comunitárias de se viver, a agroecologia solidária e criativa passa a existir como uma manifestação alternativa, estabelecendo objetivos e propósitos de promover um desenvolvimento mais inclusivo, com mais dignidade humana e mais sustentabilidade.

Há vertentes na academia que defendem que a agroecologia se apresenta como uma matriz disciplinar integradora, totalizante, holística, capaz de apreender e aplicar conhecimentos gerados em diferentes disciplinas científicas. Assim, ela vem se constituindo na ciência basilar de um novo paradigma de desenvolvimento rural, que tem sido construído ao longo das últimas décadas.

O propósito deste artigo é oferecer uma reflexão direcionada para os instrumentos de mudança que representam a junção de conceitos na tentativa de definir o que venha a ser agroecologia solidária e criativa.

Fundamentos sobre agroecologia

A agroecologia pode ser definida como uma ciência que estuda a agricultura local com base no ecossistema de referência. O produto da agroecologia é um agroecossistema, ou seja, um sistema de produção agrícola que leva em consideração as relações ecológicas locais na busca de uma ocupação e uso das terras de forma a construir ambientes com perenidade produtiva e ecologicamente equilibrados.

Ela tem como fundamento básico o desenvolvimento de sistemas agrários a partir da experiência em executar e experimentar práticas agrícolas. A agroecologia enfatiza a inovação a partir da capacidade da comunidade em experimentar, transformar e desenvolver o conhecimento local entre seus atores.

Segundo o professor Miguel Altieri, a agroecologia oferece orientações básicas para o desenvolvimento de agroecossistemas que se beneficiam dos efeitos da integração proporcionados pela biodiversidade de plantas e animais, o que favorece complexas interações e sinergismos assim como: regulação biótica de organismos prejudiciais, reciclagem de nutrientes e a produção e acumulação de biomassa, permitindo que o agroecossistema estabilize seu próprio funcionamento.

Para Altieri, o objetivo final do modelo agroecológico é melhorar a sustentabilidade econômica e ecológica dos agroecossistemas, ao propor um sistema de manejo que tenha como base os recursos locais e uma estrutura operacional adequada às condições ambientais e socioeconômicas existentes. Ao se adotar uma estratégia agroecológica, os componentes de manejo são geridos com o objetivo de garantir a conservação e aprimorar os recursos locais (germoplasma, solo, fauna benéfica, diversidade vegetal, etc.) enfatizando o desenvolvimento de metodologias que valorizem a participação dos agricultores, o conhecimento tradicional e a adaptação da atividade agrícola às necessidades locais e às condições socioeconômicas e biofísicas.

Para o autor de “Agroecologia Militante”, Ivani Guterres, a agroecologia não é uma disciplina, e sim um abordagem transdisciplinar que enfoca a atividade agrária desde uma perspectiva ecológica. É um enfoque teórico e metodológico que, utilizando várias disciplinas científicas, pretende estudar a atividade agrária vinculando essencialmente o que existe entre o solo, a planta, o animal e o ser humano. Segundo ele, a dinâmica das explorações agrárias não se explica só por condicionamentos agronômicos da parcela e sim por condicionamentos ambientais, sociais e econômicos. As variáveis sociais ocupam um papel muito relevante, dado que as relações estabelecidas entre seres humanos e as instituições que as regulam constituem a peça-chave dos sistemas agrários, que dependem do homem para sua manutenção.

Michael J. Dover e Lee M. Talbot afirmavam que a regra principal da agroecologia é que não há substituto para o conhecimento detalhado de um determinado terreno que está sendo planejado ou manejado. Para esses autores, princípios, teorias e, inclusive, aparentes “leis” devem submeter-se à realidade. O que os ecólogos oferecem à agricultura não é um conjunto de respostas fáceis, mas um conjunto de perguntas difíceis.

Por fim, Stephen Gliessman considera que a agricultura do futuro requer uma “nova” abordagem, tanto na forma de praticar como em questões do desenvolvimento agrícola. Para ele, o futuro passa por conservar os recursos da agricultura tradicional local, enquanto, ao mesmo tempo se exploram conhecimento e métodos ecológicos modernos.

Esta abordagem é configurada na ciência da agroecologia, que é definida como a aplicação de conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis. Ainda segundo o autor, a agroecologia proporciona o conhecimento e a metodologia necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente consistente, altamente produtiva e economicamente viável.

A agroecologia abre a porta para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura, em parte porque corta pela raiz a distinção entre a produção de conhecimento e a sua aplicação; valoriza o conhecimento local e empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e a sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade.

Buscando o desenvolvimento solidário e criativo

A agroecologia solidária e criativa é uma tentativa de estabelecer uma construção de convergências e identidades entre pólos de articulação social e política. Deve ser entendida como resultante de um sinergismo voltado para uma ampla rede de interesses, solidariedade e criatividade. Num campo dinâmico de relações pode ser considerado um grande entendimento de: “redes de redes”, “espaços de articulação e diálogos”, “articulações de movimentos sociais e organizações”. Esse grande entendimento pode ser o caminho de mobilização de um amplo grupo de entidades diversificadas e autônomas, cuja solidariedade e criatividade resultam em um permanente trabalho de construção e reconstrução.

A valorização de formas participativas para a promoção do desenvolvimento local é a proposta da agroecologia como um caminho que assegura atender as reais necessidades das comunidades rurais ou urbanas. O primeiro passo para criar um movimento agroecológico solidário e criativo é checar e alinhar, entre líderes e membros da comunidade, conceitos e significados práticos para que posteriormente se possa definir ações operacionais de um redesenho que agregue instrumentos para possibilitar a ampliação de oportunidades para valorização da cultura local, geração de renda, empregos, acesso a serviços sociais e ao equilíbrio ecológico territorial.

A adoção da agroecologia solidária e criativa propicia múltiplas incorporações na sociedade local, e aponta caminhos para aberturas de alternativas e escolhas baseadas na cultura local. O desenvolvimento ocorre a partir da experiência comunitária e das pessoas em conviver com a natureza e interagir com demandas para conhecimento e integração de saberes na construção de ambientes. Em agroecologia não existem receitas prontas, existe sim um resgate do conhecimento endógeno para construção de novas formas de aplicação da tecnologia.

Mais do que simplesmente tratar sobre o manejo ecologicamente responsável dos recursos naturais, a agroecologia constitui-se em um campo do conhecimento científico que, partindo de um enfoque holístico, pretende contribuir para que as sociedades redirecionem o desenvolvimento socioambiental. Assim, a agroecologia integra e articula conhecimentos de diferentes ciências, permitindo a compreensão e análise do atual modelo de desenvolvimento rural e o desenho de novas estratégias agrícolas sustentáveis.

Um ponto fundamental é o desenvolvimento de práticas agroecológicas para a produção de alimentos livres de contaminantes químicos e biológicos, que além de atender de maneira integrada à extinção da dependência de insumos externos, cria oportunidade para o desenvolvimento de ações da economia solidária focadas na soberania e segurança alimentar.

Além das atividades relacionadas com produção de alimentos, lembramos que a agroecologia preconiza ações comunitárias para o saneamento do meio, como por exemplo, práticas para controle da poluição ambiental, das zoonoses, das condições de trabalho e da saúde, abrindo aí outras formas de inserir e desenvolver a economia solidária.

Os autores Rodrigo Machado Moreira e Maristela Simões do Carmo sugerem sete princípios básicos para elaboração de um plano de desenvolvimento rural em bases agroecológicas. São eles:

1 – Integralidade (além da produção agrícola e o manejo dos recursos naturais, deve-se levar em conta o aproveitamento dos distintos elementos existentes na região estabelecendo atividades econômicas e socioculturais, abarcando a maior parte dos setores para permitir o acesso aos meios de vida pela população);

2 – Harmonia e equilíbrio (os esquemas de desenvolvimento devem contrabalançar crescimento econômico e qualidade do meio ambiente, buscando sempre o equilíbrio ecológico);

3 – Autonomia de gestão e controle (os habitantes da localidade é que devem gerar, gerir e controlar os elementos-chave do processo de desenvolvimento);

4 – Minimização das externalidades negativas nas atividades produtivas (estabelecimento de redes locais de produção, troca de insumos e consumo de produtos ecológicos, como forma de enfrentar o poder exercido pelo mercado convencional de insumos de origem industrial e sintética);

5 – Manutenção e fortalecimento dos circuitos curtos de comercialização (fortalecimento ao máximo dos mercados locais possibilita aos agricultores aprenderem e terem controle sobre os processos de comercialização, quando se deve então passar aos mercados micro e macrorregionais e tentar conquistar mercados externos vinculados às redes globais de mercado solidário);

6 – Utilização do conhecimento local de manejo dos recursos naturais (o conhecimento local, em interação horizontal com o conhecimento científico, que pode aportar soluções realmente sustentáveis para a região considerada);

7 – Pluriatividade, seletividade e complementaridade de rendas (a pluriatividade difere da simples introdução de atividades não agrícolas no meio rural, tão característica dos programas de desenvolvimento rural integrado; a seletividade está relacionado à escolha coletiva e, portanto, participativa, de que tipo de atividade produtiva complementar se introduzirá na localidade).

Não se trata de substituir, portanto, a atividade agrícola por outras como a atividade turística desordenada e controlada por grupos externos à comunidade e que se apropriam do potencial endógeno da localidade. É importante lembrar que pluriatividade oportuniza ações de economia criativa e fortalece as rendas complementares à renda agrícola. As ações da economia criativa ocorrem de forma individual ou por meio de estruturas associativas, gera laços de solidariedade tomando especial cuidado com a valorização da cultura local.

Outro importante autor, Eduardo Sevilla Guzmán, ainda levanta outras características compartilhadas pelas experiências alternativas de agricultura agroecológica que emergem na América Latina, como a endogeneização produtiva através de processos de transição para agricultura agroecológica; a diversificação da produção e dos mercados para eliminar os riscos sociais e ecológicos; a geração de redes locais de trocas produtivas em termos de sementes, conhecimentos de gestão e técnicas desenvolvidas nas propriedades; a geração de redes de intercâmbio regional para a criação de novos circuitos que entram “formas produtivas” descritos acima e a geração de redes globais para trocar as “experiências socioeconômicas” relativas à resistência ao modelo de produção gerado pelo paradigma da modernização.

Fica clara, portanto, a riqueza do universo no qual estão inseridos os pequenos agricultores e povos tradicionais e as infinitas oportunidades de convergências adaptativas das ações propostas pela agroecologia, e pelas economias solidária e criativa.

* Afonso Peche, pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC

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O desenvolvimento local costurado pela Justa Trama

A Justa Trama conecta mais de 500 trabalhadoras e trabalhadores espalhados por cinco estados – Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rondônia e Rio Grande do Sul, atuando em rede na cadeia de processamento do algodão, gerando trabalho, renda e regeneração ambiental em seus territórios. Por meio dela, plantio, fiação, tecelagem, coleta de sementes para confecção de botões e adornos, serigrafia, bordado e tingimento formam um circuito solidário por fora da lógica capitalista desde a semente até nossos guarda-roupas. A Justa Trama mostra que costurar outra economia baseada em desenvolvimento local – diferente daquele que só extrai, impacta e desagrega – é possível.

Por Nelsa Nespolo *

Não há dúvida que a Economia Solidária (Ecosol) é uma estratégia de desenvolvimento, especialmente no século XXI e na conjuntura em que vivemos, com um governo genocida que debocha da vida humana. Agravando esse quadro, um tempo de pandemia que já matou mais de 400 mil brasileiras e brasileiros que estavam cheios de vida. A consequência disso são os mais de 14 milhões de pessoas desempregadas e 6 milhões que desistiram de procurar trabalho, os 27,2 milhões de brasileiros (as) na miséria absoluta, vivendo com menos de R$ 8,20 por dia e, também, a explosão no número de bilionários do mundo – cerca de 660 novos super-ricos, que totalizam 2755 pessoas possuidoras de mais de 1 bilhão de dólares no mundo.

A Ecosol tem uma trajetória ainda curta de vida, porém se fortalece especialmente a partir da década de 1990, quando haviam cerca de 869 empreendimentos econômicos solidários (EES). Em 2020 pulamos para quase 20 mil empreendimentos. A Ecosol cresceu não só no Brasil, mas na América Latina, surgindo com uma influência forte da Igreja Católica, especialmente da Teologia da Libertação, e se fortalece sobretudo com governos populares e suas políticas públicas.

Apesar das várias experiências de políticas públicas, majoritariamente a nível dos municípios, em âmbito nacional a Ecosol surge com força a partir de 2002 com a eleição do presidente Lula, um trabalhador metalúrgico que tem conhecimento da Ecosol e do cooperativismo e cria a partir da demanda do movimento, uma Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES). Foi um período de fortes discussões, com dificuldades de lidar com o novo cenário em dois aspectos: de um lado está na gestão pública, que em alguns momentos se sente no controle das definições, e do outro lado está o movimento querendo fazer valer suas posições.

Apesar de muitas vezes as discussões serem acirradas, tal fato reflete também o bom debate. Não foram poucos os momentos de confronto e do não consenso como por exemplo a definição das organizações que comporiam o Conselho Nacional de Economia Solidária, ou na dinâmica do primeiro encontro nacional de EES e até mesmo a proposta de inclusão ou não do artigo 7º na nova lei das cooperativas de trabalho. Tarefa difícil.

Por que? Será que temos interesses diferentes? Ou será que temos visões diferentes? O papel do Estado é visto diferente por quem esta na gestão em relação aos que estão na ação?

A construção

A busca de fazer valer uma outra Economia acontecer nos trouxe ao encontro das políticas públicas, frente que veio com força nos últimos 20 anos também na América Latina, especialmente com a eleição de governos populares em seus países. A maioria das constituições ou leis destes países não contemplam a Ecosol, e a formação das equipes de governo nem sempre estão convencidas quanto a Economia Social e Solidária.

Quem ocupa esses postos na gestão pública geralmente são pessoas que com muita força e boa vontade abrem caminhos para o fortalecimento da Economia Solidária, encontrando dificuldades para construir políticas de fomento direto aos EES, tais como: fundos de Economia Solidária, programas de compra de equipamentos e compras públicas, construção de infraestrutura e capital de giro. Na maioria das vezes se prioriza políticas de convênios de formação e articulação com entidades e Universidades. Com isso temos muitos processos de formação, e que muitas das vezes ficam aquém da prioridade dos EES que necessitam produzir, comercializar, representar, administrar, articular e ainda participar de momentos de formação. Essa formação geralmente ou quase nunca acontece dentro dos EES e esses precisam se deslocar. Isso não contribui para uma formação dos vários trabalhadores e trabalhadoras, restringindo tais iniciativas a um ou mais associados, além de também não ajudar trazendo a entidade ou universidade para mais perto da realidade de cada EES.

Muitas vezes, os conceitos aprofundados nos momentos de formação não são aplicados na prática do dia a dia, pois o sistema capitalista nos coloca sempre em contradição, inclusive no momento do consumo. E neste sentido está a maior contradição: consumir da Ecosol, do orgânico, do agroecológico. Enfim, não é uma prática fácil.
Política de Estado ou Política de governo?

A Ecosol consolidou um conceito: “precisamos de políticas de Estado para ter continuidade pois as políticas de governo se acabam quando troca de governo”. Quem já não ouviu esta afirmação? Será ela contraditória? Seria tal afirmação verdadeira?

As políticas de governo se apresentam em formato de programas, as políticas de Estado se apresentam em formato de leis. Portanto, cabe aos trabalhadores (as) lutar pela conquista das leis, lutar pela aplicação e lutar pela manutenção. Lutar e lutar sempre, pois a garantia de essas políticas acontecerem é se tivermos governos comprometidos com as causas dos trabalhadores, as causas da Ecosol. E ainda assim, devemos continuar lutando, já que esta é a diferença entre as conquistas e as derrotas. Depois desta caminhada, podemos afirmar que a Ecosol, para se consolidar e avançar, precisa de políticas de Estado e de governos populares. É esse encontro que faz a diferença e promove o desenvolvimento que a Economia Solidária defende.

Uma Justa Trama construindo economia e vida

A caminhada da Ecosol fortaleceu o conceito de organização. Só conseguiremos avançar para esta estratégia de desenvolvimento se nos articularmos em redes ou cadeias. Redes são o encontro desses EES que estão em uma mesma área ou setor econômico atuando: como é uma rede de artesanato, ou de costura ou mesmo de bancos comunitários. Cadeia é quando juntamos todos os elos em processo de produção: podem ser locais, como é a cadeia do mel, ou podem ser nacionais, como é a cadeia do algodão. Contudo, o que queremos com essa estratégia é fortalecer a Ecosol, e este modelo de desenvolvimento que não concentra renda, que produz cuidando do planeta e da vida.

Neste conceito temos a Justa trama: a cadeia do algodão agroecológico que surgiu a partir da experiência de produzir de forma coletiva 60 mil sacolas para o Fórum Social Mundial (FSM) em 2005. A Justa Trama, assim, amadureceu nos espaços da Unisol Brasil e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.

Participam mais de 500 trabalhadores do Nordeste, Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil. Portanto, o algodão é plantado no Ceará e Mato Grosso do Sul, de forma consorciada e ecológica. Sem uso de agrotóxicos no plantio, toda a preservação é feita por meio de defensivos orgânicos, compostagens e com produtos naturais como o Nim. Os plantios agroecológicos consorciados são compostos por multiculturas como o gergelim, milho e o feijão, preservando o meio ambiente e a sustentabilidade dos agricultores. Paralelo a isso, nos últimos três anos o Governo Federal já liberou mais de 1100 agrotóxicos que antes eram proibidos e recusados em vários lugares do mundo.

Assim preservamos a vida e o planeta, já que o algodão convencional é responsável por 25% dos agrotóxicos do mundo aplicados nas plantações. Esse processo de preservação é feito também na fiação e tecelagem em Minas Gerais e na confecção no Rio Grande do Sul, mantendo os cuidados com o produto para que não se contamine com o convencional, além de serem aproveitados todos os retalhos. As sementes da Amazônia de Rondônia, que são nossos adereços e botões, são beneficiadas ecologicamente.

Não há intermediário ou atravessador nesta cadeia solidária e, portanto, todos recebem de forma justa, ou seja, desde o agricultor até a costureira todos ganham acima do que o mercado convencional paga. Assim, todas e todos que estão na cadeia fazem acontecer a distribuição de renda. O preço final de comercialização tem um valor agregado para garantir a sustentabilidade da cadeia, e no final do ano realizamos o balanço, onde parte das sobras são divididas entre os cinco elos, reforçando o desenvolvimento local das cinco regiões.

A Justa Trama é uma rede cooperativa de segundo grau formada por associações e cooperativas da Ecosol que realizam as várias etapas. A Justa Trama também é a marca das roupas, desde camisetas, saias, blusas, calças, bermudas, vestidos e colares, bonecas, bichos e adereços.

Resumindo, os principais valores desta cadeia é adquirir um produto que não tem agrotóxicos, com uma tecnologia limpa em todo o processo, diminuindo o uso dos já citados 25% de agrotóxicos que são jogados no planeta através do algodão convencional. Outro valor primordial é não ter atravessadores, o que permite que, desde o agricultor até a costureira, todas e todos ganhem de 50 a 100% pelo seu trabalho em relação ao valor de mercado. Assim, chegamos ao consumidor final em um valor justo e possível de ser adquirido inclusive pelos que estão no processo produtivo.

Precisamos do compromisso de cada um com a vida, a sua e a de todas e todos, pois só haverá ampliação do plantio do algodão agroecológico se todos optarem por uma forma de vestir ecologicamente correta, e só haverá consciência ecológica se também houver os que preconizam e construam consciência crítica sobre seu consumo. Precisamos intensificar as campanhas de informação ao consumidor, informando-o sobre quais são as fontes de onde vem o que ele vai vestir, assim formando um ciclo que transforma vidas.

São seis os elos dessa cadeia que forma a rede de desenvolvimento local da Justa Trama: Associação Adec, conjunto de quatro municípios do sertão do Ceará que cultivam o algodão; a Associação – AEFAF, dois núcleos de Assentamentos do Mato Grosso do Sul que cultivam o algodão rubi; a Coopertextil, cooperados por onde passa todo o acabamento dos tecidos, de Pará de Minas/MG; a Cooperativa Univens, costureiras que confeccionam, bordam, tingem e serigrafam as peças em série e fica em Porto Alegre/RS; a Cooperativa Açaí, artesãos que beneficiam as sementes e botões que são aplicados nas peças, e produzem bonecas de pano em Porto Velho/RO; e o Coletivo Inovarte, que produz os bichos de pano e jogos pedagógicos, também no Rio Grande do Sul.

Porque não fazemos todas as cadeias curtas e locais? Porque muitas vezes não existem empreendimentos no local para as várias etapas de produção dos produtos que consumimos, e na maioria das vezes nos falta o total conhecimento da tecnologia e mesmo os recursos de investimento para implantar todas as etapas próximas.
Essa caminhada da Ecosol já não deixa dúvida que não são as distâncias que inviabilizam, nem os custos de logística. As maiores dificuldades geralmente se localizam em nossa capacidade de articulação, investimentos e garantia de comercialização. A Justa Trama percorre 5 mil quilômetros do Brasil, e remunera de forma justa todos os processos, e mesmo assim, conforme pesquisa da PUC do Rio Grande do Sul, pratica o menor valor de venda de roupas de marcas orgânicas.

Na Ecosol, a grande maioria dos empreendimentos não têm domínio sobre as várias etapas: realizam a etapa inicial da cadeia como é o caso dos EES que estão na agricultura, e depois o mercado ganha realmente com a transformação e comercialização. Outro exemplo são os empreendimentos urbanos que geralmente estão na ponta final da cadeia e sofrem todo o tipo de dificuldade, já que a agregação de valores se concentrou nas etapas onde estão empreendimentos capitalistas, como é o caso da confecção, da construção civil e da alimentação.

A Ecosol, que hoje tem mais de 20 mil empreendimentos da Economia Solidária em quase todos os setores econômicos, urge construir uma estratégia de aproximação para esta outra economia, – a nova economia -, a que distribui renda, melhora a vida do povo, garante direitos, gera desenvolvimento local e preserva o meio ambiente. A economia gerada pelas pessoas e para as pessoas. A economia que respira vida. Que anseia pelo Bem Viver, pois como diria Paul Singer:

“A Economia Solidária se constrói nos interstícios que as crises inerentes ao capitalismo deixam desocupados. São empresas em crise “tomadas” pelos seus empregados e transformadas em cooperativas; terra deixada improdutiva que via reforma agrária é entregue a trabalhadores, que a cultivam em empreendimentos solidários; é o lixo que infesta as cidades que é reciclado por cooperativas de catadores, etc. O maior desafio é motivar e resgatar a multidão deixada à margem, fazendo-a ver que sua emancipação seja possível, desde que se tornem protagonistas dela.”

* Nelsa Inês Fabian Nespolo é costureira, militante da Economia Solidária, diretora presidente da Cooperativa Univens, da Justa Trama, da Unisol RS, sócia fundadora do banco comunitário Justa Troca e escritora dos livros Tramando Certezas e Esperanças e as Tramas da Esperança.

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