Quando os tempos de crise batem à porta, a Economia Solidária se mostra uma importante ferramenta na recuperação de pessoas vulnerabilizadas à procura de novos caminhos para suas vidas. É isso que tem feito, há 12 anos, um Empreendimento Econômico Solidário localizado em Santos/SP, em uma das regiões mais precárias da cidade: a Lavanderia 8 de Março. Conheceremos a história de duas mulheres que trabalham no local, e que graças a ele tiveram suas vidas modificadas
Daniel Keppler *
Uma das maiores virtudes da Economia Solidária é a forma como ela exalta o desenvolvimento humano e a união em busca do crescimento e evolução da coletividade – o oposto do que se vê nas relações de trabalho no capitalismo.
É algo que se atesta fortemente nos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES). Se no trabalho organizado pelo capital a realidade é um processo violento (e acelerado) de opressão, precarização e perda de direitos, nos EES o que se vê é cada vez mais coletivos beneficiando comunidades, através do trabalho baseado na autogestão, lógica construtiva no que diz respeito à dignidade.
Por isso, importa contar histórias de pessoas cujas vidas foram impactadas pela Economia Solidária. Nesse artigo, vamos conhecer a Ana Paula e a Luiza, mulheres e militantes da vida, que participam da Lavanderia 8 de Março, em Santos/SP.
Cooperativismo em prol de uma comunidade
Para entender a história da lavanderia, uma experiência solidária desenvolvida em simbiose entre movimento e poder público, conversamos com Marcia Farah Reis, psicóloga clínica, membro do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e chefe da Seção de Cooperativas da Secretaria de Assistência Social (SEAS) da Prefeitura de Santos.
“A lavanderia foi uma sugestão de um partido político à prefeitura, e era uma demanda bastante antiga da região do Centro, para que as pessoas moradoras dos cortiços pudessem lavar e secar as suas roupas. A proposta era de que essas pessoas tivessem onde lavar as suas roupas”, afirma.
Mas no desenvolvimento do projeto, percebeu-se que ele podia mais. E se ele pudesse levar renda para as mulheres daquela região, e ser um agente de inclusão social e de transformação daquela comunidade, a partir da aplicação dos princípios da Economia Solidária? Foi quando se decidiu aplicar o modelo de cooperativa.
Os primeiros desafios vieram com sua inauguração, em janeiro de 2009. Percebeu-se que seu sucesso dependia de uma quebra da lógica capitalista que influenciava as relações de trabalho e consumo daquela comunidade. Isso foi feito com terapia comunitária, tanto para desconstruir a cultura que exaltava a relação patrão-empregado no ambiente de trabalho, quanto para combater o patriarcado capitalista que fazia as mulheres da lavanderia sofrerem com o preconceito, quando mais precisavam de apoio.
As sessões foram um sucesso, segundo Marcia. “As mulheres passaram a se olhar de uma maneira diferente, umas com as outras. Não mais competitivas, e sim solidárias. Os clientes passaram a ter um olhar mais respeitoso, e a comunidade começou a colaborar com o empreendimento”, diz.
Toda a administração e operação da lavanderia é feita pelas mulheres. Quando o SEAS indica uma nova mulher para ser acolhida, diretamente ou através do Projeto Fênix, deve ser aprovada pelas que já são cooperadas. Ao iniciar o trabalho, ela é ensinada pelas próprias colegas, que dividem seu conhecimento. As responsabilidades são partilhadas, e as decisões são tomadas em assembleias.
E assim, já são 12 anos de história, mudando a vida de muita gente, por meio do trabalho autogerido e também pelo exemplo. “A mudança de comportamento que ocorre dentro de um EES é cultural. Você leva para dentro da sua casa, para seus filhos. E assim esses ensinamentos vão se reproduzindo na sociedade. A princípio a gente pensa que a Economia Solidária é só sobre gerar renda, mas é muito mais do que isso. É uma transformação pessoal, e é a partir dessa transformação pessoal que a gente tem o ideal de transformar a sociedade”, conclui Marcia.
Luiza: uma chance de recomeçar
Luiza nos atendeu virtualmente, para sua segurança devido à pandemia. Com 59 anos e carreira na área administrativa, sua história é parecida com a de tantas outras mulheres Brasil afora: formada, experiente, mas empurrada para fora do mercado de trabalho pelas empresas capitalistas. “Minha mãe teve câncer, e eu tive que parar de trabalhar para cuidar dela. Quando voltei, me disseram que eu ‘não tinha o perfil’. Era 2013 nessa época”, conta.
Foram cinco anos desempregada, até que Luiza foi indicada por uma conhecida para trabalhar na Lavanderia 8 de Março. “Eu já sabia que a lavanderia existia, mas não sabia que era um projeto de Economia Solidária”, conta. Ela foi aprovada.
“Era algo totalmente novo né. Me deu um pouco de medo, mas eu tinha essa amiga que me indicou, que foi um ombro amigo, e todas as outras que me acolheram muito bem”, relembra ela, que continua: “Elas me ensinaram todos os procedimentos, e com o tempo tive a chance de também ajudar na parte administrativa, que faço de casa atualmente, por causa da pandemia”.
Agente de transformação
Para Luiza, a lavanderia representou não apenas a oportunidade de voltar a trabalhar, mas de mudar toda a vida a partir dos princípios da Economia Solidária e do cooperativismo. Segundo ela, muito do que aprendeu nesses três anos foi trazido para sua casa – ela vive com sua companheira, sogra e um filho.
“Estar na lavanderia é uma transformação, tanto como profissional como mulher. Você é empoderada, pois embora tudo seja feito em conjunto, você nunca está submissa a alguém. É libertador. E a profissão é muito boa, aprendi muito”, conta. “Até nosso dinheiro aprendemos a cuidar mais. Hoje, quando eu posso, eu guardo um pouco para emergências”.
Luiza também diz que o trabalho na lavanderia mudou radicalmente seu pensamento sobre muitas coisas. “A ideia de resolver os problemas na conversa, com paciência, é muito importante lá. Temos que resolver tudo entre nós, então fazemos várias reuniões, às vezes duas, três por semanas, e se alguém tem algum problema, vamos conversar até resolver”, diz.
Ela recomenda a toda mulher que estiver se sentindo vulnerável que peça ajuda. “Por mais dificuldades que existam, você sempre precisa acreditar. Há pessoas boas no mundo, e a Economia Solidária é um gigante que está acordando e fazendo essas pessoas se unirem e abrirem os braços a quem precisa. Então acreditem, e busquem auxílio. Eu sempre ouvi dizer quando trabalhava lá fora um ditado que falava ‘entre eu e você, dane-se você’. Aqui é o contrário: entre eu e você, somos nós”.
Ana Paula: um refúgio do sofrimento
Ana Paula recepcionou a reportagem na lavanderia, que acabara de abrir. Sua tarefa naquela segunda-feira era o atendimento no balcão, e foi lá, entre um atendimento e outro, que ela contou um pouco sobre si. “É uma história triste, mas não guardo mágoas”, disse.
Ana Paula nasceu em Santos, há 46 anos – mas não conhece sua origem. Sua mãe biológica a abandonou com três dias de vida. Com sua mãe de criação, aprendeu seus princípios e estudou. “Mas só até a sexta série, pois tinha que trabalhar para ajudar em casa”, conta.
Aos 17 anos, teve sua primeira filha, e logo em seguida se casou, com quem teve mais três filhos. Nessa época conheceu outros traços do capitalismo patriarcal: o machismo estrutural e a violência doméstica. Por isso, quando uma conhecida lhe ofereceu ajuda para sair daquela vida e trabalhar na colheita de morangos no sul da Inglaterra, ela viu uma chance de escapar.
Os anos difíceis na Europa
Mas Ana foi enganada e, por dois anos, foi vítima do pior tipo de escravização que se pode sofrer. Escapou graças a um português que a levou a seu país, e com quem teria um filho. Pouco depois se separou, e ficou sozinha em Portugal. Passou fome, trabalhou em diversos lugares, chegou a comer do lixo. “Mas tive uma vida honesta”, salienta.
Foi quando Ana Paula conheceu o pai de sua filha mais nova. “Foi o pior inferno da minha vida”, segundo ela. “Ele queria um filho, e apaixonada como eu estava, engravidei. Só que de uma menina”, lembra. As violências, ofensas e ameaças de todo tipo culminaram em uma surra que a levou ao hospital, já grávida de seis meses, com risco de morte – dela e da filha. Contra todos os diagnósticos, ambas sobreviveram. “Por isso minha filha se chama Vitória. Ela é um milagre”, recorda.
Vitória precisou de quatro meses em uma incubadora para sobreviver, o que prejudicou sua formação; já Ana ficou 48 horas em coma, e passou por uma longa recuperação. O ex-marido foi processado e condenado pela Justiça portuguesa a 16 anos de prisão, por homicídio na forma tentada.
A volta ao Brasil
Após viver três anos em uma instituição para mulheres vítimas de violência doméstica, Ana Paula precisou voltar ao Brasil para ajudar a mãe, que cuidava de suas filhas. E então, velhos problemas bateram à porta.
Ela foi para o morro do José Menino, onde vive até hoje. “Meu aluguel custava R$ 700, e quando o dinheiro que eu trouxe acabou, só o Bolsa Família não dava conta. Quando o aluguel atrasou cinco meses, a proprietária me disse: ‘ou você arruma o dinheiro, ou vou ter que te despejar’. Foi quando desabei”, diz.
Decidiu, então, procurar a SEAS, onde foi para o Projeto Fênix. Foram vários postos de trabalho, até que em setembro de 2020, foi encaminhada à lavanderia – um susto para ela, na época.
“Eu não queria ir no começo. Me sentia punida, porque não queria sair de onde estava. Não sabia fazer nada ali! Aí eu conheci a Marcia, que me acolheu e explicou: ‘A proposta do projeto é exatamente essa: te ensinar tudo o que você precisar saber para trabalhar lá’. Então eu fui”, conta.
Na lavanderia, Ana Paula aprendeu como o EES funcionava e o que era Economia Solidária. “Na lavanderia, todas me receberam muito bem, e ensinaram tudo que sabiam. Aprendi a etiquetar as peças, a dobrar, lavar e até mesmo a passadoria aprendi a fazer, o que era meu grande medo, pois o aparelho é para destros – eu sou canhota!”, lembra, rindo.
Ainda assim, o medo de decepcionar era forte. “Temia não conseguir agradar, não saber fazer. Mas minhas amigas não me deixaram sair, e hoje eu é que não quero. Aqui tem tudo o que prezo na vida”, revela.
Para complementar a renda, Ana faz trabalhos de manicure e faxina, e está fazendo um curso de cabeleireira. Mas dessa vez, ela encara os desafios de uma forma diferente, graças a tudo que tem aprendido na lavanderia. E é grata por isso.
“Aqui somos umas pelas outras. Se alguma máquina avariar, sai do bolso das cooperadas, que também só ganham se tiver cesto de roupa para lavar. É realmente como se a lavanderia fosse delas. E isso não tem preço, pois lá fora uma mulher de 35 anos já é velha para trabalhar, mas aqui somos mulheres de 40, 50, 60 anos, e somos todas iguais. É o que me faz querer ficar aqui”, finaliza.
* Daniel Keppler é jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; responsável pela gestão de redes sociais do Livres Baixada Santista, onde atua desde 2020.