A esquerda deve defender o decrescimento

Neste texto, inédito em português, trazemos um pouco das reflexões de um dos teóricos e militantes do decrescimento, o grego Giorgos Kallis*. Nele, nos perguntamos porque a esquerda ainda se mantém pouco cética em relação à ideia de buscar um crescimento econômico infinito e de forma exponencial mesmo em meio ao Antropoceno. As evidências climáticas e ecológicas se empilham, e as taxas de crescimento da economia mundial (cada vez mais tímidas) nos indicam que – mais cedo ou mais tarde – iremos esbarrar na ideia de limites e teremos de aprender a governar sem crescimento (por bem ou por mal) para gerar a boa vida, escapando do colapso. Seria um socialismo sem crescimento possível? Talvez, mas só será viável com a aliança da economia solidária. É o que também nos ensina essa importante reflexão baseada na crise que o norte global já enfrenta, além de nos dar inspiração para criar novos caminhos pelo Sul. Deixemos Kallis nos guiar!

Intelectualmente, as origens do “decrescimento” são encontradas no debate sobre Ecologia Política de 1970. André Gorz (foto) falou sobre décroissance (decrescimento) em 1972, questionando a compatibilidade do capitalismo com o equilíbrio da terra  “para o qual (…) o decrescimento da produção material é uma condição necessária” (BOSQUET, 1972). A menos que consideremos a ideia de uma “equidade sem crescimento”, Gorz argumentou, reduziríamos o socialismo para nada além da “continuação do capitalismo através de outros meios – um extensão dos valores da classe média, estilos de vida e padrões sociais” (GORZ, VIGDERMAN, CLOUD, 1980).

“Demain la décroissance” (“amanhã o decrescimento”, no sentido de regressão regressão econômica) foi título de uma coleção de ensaios de 1979 de Nicolas Georgescu-Roegen, um imigrante romeno lecionando nos EUA e um economista ecológico que argumentou que o crescimento econômico acelera a entropia. Eram os tempos da crise do petróleo e do Clube de Roma. Para os pensadores europeus “vermelhos e verdes”, porém, a questão dos limites do crescimento era antes – e principalmente – uma questão política. Diferente das preocupações malthusianas preocupadas com o esgotamento de recursos, superpopulação e colapso do sistema, a deles era o desejo de puxar o freio de emergência do capitalismo, ou, para citar Ursula Le Guin, “colocar um porco nos trilhos de um futuro de mão única que consiste apenas em crescimento”.

O slogan décroissance (decrescimento) renasceu no início dos anos 2000 por ativistas na cidade de Lyon em ações diretas contra mega infraestruturas e propaganda. Serge Latouche, um professor de antropologia econômica e crítico dos programas de desenvolvimento na África, popularizou o termo com seus livros, clamando por um “fim ao desenvolvimento sustentável” em “Farewell to Growth” [Adeus ao Crescimento]. Para o intelectual Francês Paul Ariès, decrescimento era uma “palavra míssil”, um termo subversivo que questiona o desejo pelo – sempre tido como certo – desenvolvimento baseado em crescimento. Uma pequena mas dedicada rede de decrescentistas surgiu em torno da revista mensal “La Decroissance”. A palavra foi registrada nos debates políticos da França, inclusive com uma tentativa falha de fundar um partido político do decrescimento.

Decrescimento hoje

Da França, o novo jargão irradiou para a Itália, Espanha e Grécia. Em 2008, logo antes da crise espanhola, o decrescentista catalão Enric Duran “expropriou” 492 mil euros via empréstimos de 39 bancos. Ele deu o dinheiro a movimentos sociais, denunciando o sistema financeiro especulativo espanhol e o crescimento econômico fictício impulsionado por ele.

Começando por Paris em 2008, uma série de encontros internacionais – um mix de conferências científicas com fóruns sociais – introduziram o Decrescimento ao mundo da língua inglesa. Em setembro de 2014, 3500 pesquisadores, estudantes e ativistas se encontraram em Leipzig pela 4ª conferência internacional sobre o Decrescimento. As atividades abrangiam desde painéis sobre crescimento e mudança climática, críticas gramscianas ao capitalismo,  à semana de trabalho de 20 horas, até desobediência civil contra uma usina de carvão e cursos sobre como fazer o seu próprio pão. 

Uma literatura acadêmica se prolifera em periódicos revisados apoiando as reivindicações do decrescimento: a impossibilidade de evitar mudanças climáticas desastrosas com a manutenção do crescimento como conhecemos; os limites fundamentais em descasar o consumo de recursos ao crescimento; a desconexão entre crescimento e a melhora do bem-estar em economias avançadas; o aumento dos custos sociais e psicológicos do crescimento. Trabalhos recentes destacam o imperativo do crescimento composto para o capitalismo – o que David Harvey (2014) chamou de “a mais letal de suas contradições” – e exploram como o emprego ou a igualdade poderiam ser sustentados em economias pós-capitalistas sem crescimento. 

Propostas políticas miram desde um teto de emissão de carbono e moratórias na extração de recursos até uma renda básica de cidadania, redução da jornada de trabalho, reivindicação de recursos comuns em um jubileu da dívida (algo como uma moratória), assim como uma reestruturação radical do sistema tributário com impostos de carbono ao invés de renda, e taxação de capital. Ao demandar o impossível, tais “reformas não reformistas” – como André Gorz as chamou – clamam por transformação sistêmica (como Slavoj Žižek notou, reformas social-democratas são revolucionárias em uma era em que o capitalismo não pode mais acomodá-las).

Politicamente, há um claro entendimento que a mudança do sistema é necessária, e que isso requer um movimento de movimentos, ou uma aliança dos despossuídos, incluindo uma coalizão global dos movimentos social e ambiental. Enquanto o decrescimento é incompatível com o capitalismo, ele rejeita a ilusão do assim chamado “crescimento socialista”, por meio do qual uma economia racionalmente e centralmente planejada, de alguma forma mágica, iria trazer desenvolvimentos tecnológicos que permitirão um crescimento razoável sem que sejam degradadas as condições ecológicas.

Outro caminho

Para outros, “decrescimento” significa centralmente uma prática de vida diária. Nosso fórum de três dias em Atenas em 2015 teve participação de centenas de participantes: não só acadêmicos, ativistas ambientais e de direitos humanos ou membros do Syriza, os Verdes, e a esquerda “anti-autoritária”, mas também neorrurais e agricultores orgânicos da Grécia rural, e vários militantes de base da economia solidária, das clínicas das pessoas e agricultura urbana. Em Barcelona, o decrescimento é simbolizado em projetos como o Can Masdeu, uma ocupação com uma rede de jardins de comida no bairro operário de Nou Barris e a história do ativismo do “direito à moradia”; ou a Cooperativa Integral Catalã, uma cooperativa composta por 600 membros e 2000 participantes, que também funciona como guarda-chuva de produtores independentes e consumidores de orgânicos e produtos artesanais, ecovilas, e que opera cooperativas e redes regionais de trocas que emitem suas próprias moedas.

François Schneider, mobilizador das conferências internacionais e fundador do think thank Research & Degrowth em Paris (agora em Barcelona), encorpa a hibridez do decrescimento: um PhD graduado em ecologia industrial que andou com um burro pela França explicando o decrescimento para os passantes que paravam perplexos. Ele vive agora em Can Decreix, em uma casa simples na fronteira franco-catalã, também um centro de experimentação e educação da vida frugal.

Alguns falam de um “movimento” de base do decrescimento, mas aqueles que atenderam à conferência não são um grupo coeso de pessoas com uma agenda comum ou propósito único (EVERSBERG; SCHMELZER, 2016), tampouco alcançaram os números de um movimento. Diferente do movimento “antiglobalização”, não há prédio da OMC para ser invadido ou acordo de livre-comércio a ser parado. O decrescimento oferece um slogan que mobiliza, une, e dá sentido a um nicho diverso de pessoas e movimentos sem ser seu único, ou mesmo principal, horizonte. É uma rede de ideias, um vocabulário – como chamamos em nosso último livro -, que mais e mais pessoas sentem que dialoga com suas preocupações.

Redistribuição, não crescimento

Uma nova esquerda tem que ser uma esquerda ecológica, ou não será de esquerda de forma alguma. A questão ambiental “muda tudo” para a esquerda também, como Naomi Klein (2015) argumentou. O capitalismo requer expansão contínua, uma expansão assentada na exploração de humanos e não-humanos, que irreversivelmente impacta o clima. Uma economia não capitalista terá que sustentar a si mesma enquanto se contrai.  Mas como nós podemos redistribuir ou assegurar trabalho que tenha sentido sem crescimento? Não existe ainda uma concreta “economia do decrescimento”. Lamentavelmente, o Keynesianismo é a mais poderosa ferramenta que a esquerda, e até a esquerda marxista, possuem para lidar com as questões políticas. Mas esse é um ideário econômico de 1930, quando expansão ilimitada ainda era possível e desejável. 

Sem uma maré para levantar todos os barcos, é tempo de repensar qual barco leva o que. A resposta da esquerda para o dilema r>g de Piketty (2013) não deve ser “nós aumentaremos g”. Até porque nós sempre quisemos decrescer “r”, ou seja reduzir o acúmulo de capital! Piketty, não exatamente um ecologista, não acredita na possibilidade de maior crescimento. Redistribuição é a questão central para um século XXI sem crescimento.

A Esquerda tem que se liberar do imaginário do crescimento. O crescimento de qualquer coisa sob uma taxa composta rapidamente se coloca ao infinito, uma ideia absurdamente perigosa. O Crescimento é uma ideia imbricada ao capitalismo. É o nome que o sistema deu ao sonho que estava produzindo, o sonho da abundância material (YARROW, 2010). O PIB foi inventado para contar a produção da guerra (MITCHEL, 2011), e evoluiu para um indicador que objetivamente confirmava o “sucesso” dos EUA na Guerra Fria (YARROW, 2010). Crescimento é o que o capitalismo precisa, sabe e faz. Como Gareth Dale (2012) assinala, políticas socialistas nunca foram sobre aumentos quantitativos em valores de troca abstratos. Elas são sobre coisas específicas, sobre valores de uso concretos: emprego, salário decente, condições dignas de vida, um ambiente saudável, educação, saúde pública ou água limpa para todos. Todas essas são necessidades, mas não há razão pela qual tais políticas demandariam uma expansão perpétua de recursos, 3% ao ano. 

E há uma demanda mais forte: as coisas que nós na esquerda gostaríamos de ver “crescer”não trariam crescimento agregado (a menos que redefiníssemos o que medimos como atividade econômica, mas então teríamos um jogo de palavras apenas). Distribuir a riqueza igualmente, usando mais mãos e mentes do que antes era necessário, tornar ambientes e pessoas livres, gastar tempo para cuidar um do outro: todas essas são “taxações” sobre a produtividade e crescimento. Nós estaríamos melhores se fôssemos menos produtivos (JACKSON, 2012). Mas a industrialização decolou concentrando excedentes na mão de poucos (capitalistas ou Estados), reinvestindo lucros para mais crescimento; e não distribuindo a riqueza para todos, ou deixando para trás as pastagens e as fontes de combustíveis fósseis ociosas. 

Mudar os sonhos

Isso pode ser meio difícil de engolir. Ao fim e ao cabo, muitos de nós advogamos por igualdade, democracia, pleno emprego, salário mínimo, educação ou energias renováveis em nome do crescimento. A crença é que uma alternativa ao sistema capitalista que só possui olhos nos lucros será mais “racional” e fará melhor o que o capitalismo faz, e até mais. Isso é errado politicamente: como afirma Slavoj Žižek, a esquerda não pode se exaurir em busca de meios de realizar os mesmos sonhos; ela tem que mudar esses sonhos por ela mesma. Buscar os mesmos sonhos é também errado factualmente. A “gloriosa” (sic) era do pós-guerra de reconstrução e de “catch-up” acabou. Há poucos indícios que um Keynesianismo regado a dívida, marrom ou verde, capitalista ou socialista, pode reviver tal era. Isso é independente do fato de que a austeridade neoliberal é desastrosa. Redistribuição, democracia e igualdade, sim; mas não em nome do crescimento.  

O decrescimento revive o espírito da “austeridade revolucionária” [no sentido de autonomia], de Enrico Berlinguer, uma austeridade nascida da solidariedade. O petróleo que abastece nossos carros, aquece nossas casas e faz nossos hospitais e escolas funcionarem é o mesmo que destrói meios de vida e florestas na Amazônia peruana e na Nigéria. Não precisamos do Papa para nos lembrar disso (KRUGER, 2015).  A razão para uma vida “sóbria”, como Berlinguer antes ou o Papa agora chama, é porque nossas ações “aqui” afetam pessoas e ecossistemas “lá”. Não porque a máquina capitalista está se esgotando sem coisas (preocupação Malthusiana), ou porque, como os neoliberais querem, “nós vivemos sob nossos próprios meios” (pelos quais eles querem dizer “nós, os 99%”, que usamos os serviços do Estado de bem-estar social, não o 1% que vivem pelo seu capital).

De uma perspectiva do decrescimento, o ponto não é que o norte global consome mais do que produz (ou produz mais do que consome, à la Keynesianos). O ponto é que ele produz e consome mais do que é necessário, às custas do sul global, outros seres, e futuras gerações. Consumir e produzir menos reduzirá o impacto feito nos outros. Isso é uma questão de justiça social e ambiental: um “encolhimento e redistribuição” do 1% global (e em uma menor medida dos 10%, o que inclui as classes médias da EuroAmérica) para o resto. Tais invocações da simplicidade sóbria podem ressoar com o latente senso comum sobre a “boa vida” presente em várias culturas, do Ocidente e Oriente. Pode recuperar a crítica comum ao excesso das mãos dos austericidas que hipocritamente a usam para justificar suas políticas regressivas.

Possibilidades políticas

O decrescimento é uma palavra-chave circulando principalmente nos círculos de ativistas. Na Grécia e Espanha, ela circula entre anarco-cooperativistas e eco-comunalistas, incluindo muitos nas bases jovens de partidos como Syriza e Podemos. É uma palavra presente, ainda que não dominante, nas praças ocupadas e nas economias solidárias que delas nasceram. Já não é nova entre os verdes, já vem de antes do “desenvolvimento sustentável” e as divisões entre radicais “fundamentalistas” e pragmáticos “realistas”. Um sinal da re-radicalização dos verdes europeus, é que o Equo, partido espanhol, representado no Parlamento Europeu, apoiou explicitamente uma agenda “pós-crescimento” (seu parlamentar Florent Marcellesi se colocou a favor do decrescimento). A campanha nacional dos verdes britânicos também foi “pós-crescimento” ou “decrescentista” em espírito, ainda que não em nome.

Clamar pelo decrescimento explicitamente é um suicídio eleitoral em um ambiente dominado pela mídia corporativa. Mas o trabalho de base é necessário para fazer do decrescimento um senso comum difundido. Nesse momento, quanto maior a proximidade de um partido do poder, maior a probabilidade de que ele se dissocie da ideia de decrescimento.  Pablo Iglesias assinou o manifesto decrescentista “Última Chamada”. Mas como a The Economist notou acertadamente, ao passo que o Podemos amadureceu, deixou para trás ideias “malucas” como “decrescimento” e “anticapitalismo”. Os paralelos com a nova esquerda na América são óbvios. Correa ou Morales foram eleitos a partir do apoio de movimentos ecológicos e indígenas com filosofias similares ao decrescimento. Uma vez no poder, a realpolitik e políticas redistributivas baseadas em crescimento ditaram que o capital seria acomodado e a economia seria abastecida pelo extrativismo.

Alguém poderia esperar que pelo menos os partidos da nova esquerda da Europa rejeitariam a ideia de colocar o crescimento como sua meta principal. Sem dúvidas, as crises reassentam o imaginário do crescimento, sempre como uma meta progressista. Um ativista do Podemos na Catalunha comentou para mim que “na crise atual, só podemos falar em crescimento”.    Ainda assim, isso não é totalmente verdade. Demanda coragem e imaginação, mas não é impossível. A coligação Barcelona em Comum ganhou as eleições sem mencionar o crescimento nenhuma vez em seu programa. Isso pode ter a ver com as raízes orgânicas do movimento do decrescimento e ideias relacionadas já presentes na sociedade civil de Barcelona, além do florescente movimento de economia solidária da cidade. Muitos dos meus amigos e colegas trabalharam para o programa do partido, que se compromete com uma renda cidadã, taxação verde, demanda por espaços verdes, uma cooperativa municipal de energia, menos uso de recursos e lixo, e moradia social. Entre as primeiras decisões da nova prefeita, Ada Colau, foi uma moratória na criação de novos hotéis e o abandono da proposta de sediar as Olímpiadas de Inverno de 2026. Santi Villa, ministra do ambiente da Catalunha até 2015 e uma jovem aspirante a conservadora, acusou-a de liderar um “partido do decrescimento” ( porém omitindo que ele, uns meses atrás, tentando ficar no topo das últimas ideias internacionais acerca dos debates sobre aquecimento global, também advogou em favor do decrescimento).   

Keynesianismo sem crescimento

O programa econômico do Podemos foi desenhado por dois economistas socialistas e keynesianos (Vicenc Navarro e Juan Torres), que frequentemente têm escrito opiniões contrárias ao decrescimento. Pelo menos, o programa evita referências claras ao crescimento. Poderia este ser um sinal de espaço para um “Keynesianismo sem crescimento”? Eu defendi que há. Pode-se imaginar políticas fiscal e tributária que mudem em favor das classes trabalhadoras e rumo à alternativa verde, do cuidado, ou estímulo a atividades de consumo de baixa intensidade por aqueles em necessidade, ainda dentro de um padrão médio de contração econômica. Essa é dificilmente seria uma visão de Keynes, mas talvez esteja apta para economias secularmente estagnadas. 

Diferente do município, cujas responsabilidades fiscais são limitadas, uma nação sem crescimento pode ter problemas para financiar seus serviços de bem-estar social. Pelo menos a princípio, porém, não vejo motivo pelo qual os custos da educação e da saúde devam aumentar de 2% a 3% por ano (a taxa do suposto crescimento necessário). Há um imenso espaço para reverter terceirização e compras superfaturadas, banimento de megaprojetos, ou descentralização de serviços, como saúde preventiva ou creches, e compartilhá-los com com redes de solidariedade. Países mais pobres como Cuba e Costa Rica possuem educação e saúde de ponta. Impostos mais altos sobre o capital podem compensar a perda de receitas decorrente do decrescimento. Bem-estar sem crescimento é teoricamente possível, mas nenhum partido de esquerda ousou pensar o que seria necessário para colocá-lo em prática. 

Um grande obstáculo é a dívida. Sem crescimento, a dívida como percentual do PIB aumenta. As taxas de empréstimo disparam vertiginosamente, à medida que a probabilidade de pagamento dos mesmos diminui. Isso é o que faz o Keynesianismo do decrescimento menos plausível. Sem crescimento, a dívida pública tem que ser, mais cedo ou mais tarde, reestruturada ou eliminada por decreto ou por inflação. Há precedentes históricos para isso. Mas uma vez feito, não pode ser repetido. Sem dívida, o espaço para expansão fiscal fica limitado.

A urgência sobre a questão da dívida pública pode explicar as diferenças entre Espanha e Grécia. A ascensão do Syriza inicialmente encheu de esperança por “outro mundo” que se tornava possível: a base, especialmente a juventude, do partido consistia de cooperativistas mais verdes que, similar a um espírito decrescentista, apostavam em – uma não totalmente definida – “economia solidária”. Todos os grandes quadros do partido, porém, falaram sem maiores asteriscos a favor do crescimento, enquadrando-o como uma alternativa à austeridade. Nas negociações com o Eurogrupo houve uma tentativa de vida curta em avançar com a proposta de Joseph Stiglitz por uma “cláusula de crescimento”: a Grécia condicionaria ao crescimento seus pagamentos da dívida. Tais demandas eram condenadas como “ultrarradicais”; falar sobre economia solidária sem crescimento seria mais insano do que a insanidade. 

Uma Economia Solidária

Alguns comentaristas internacionais sonharam que um “não” à Troika e uma saída do Euro abriria o caminho para uma transição para o decrescimento e para a Economia Solidária (Hinton 2015). Porém, não houve força política na Grécia advogando por isso. A esquerda pró-dracma do Syriza, agora um outro partido chamado “Unidade Popular” é ardentemente produtivista; seu líder possui um histórico ambiental como Ministro da Energia, que inclui planos para novas plantas domésticas de carvão e combustível como subsídio para indústrias. Apesar da fenomenal expansão e importantes conquistas da Economia Solidária na Grécia, ela ainda é um movimento social marginal (bem menor que na Espanha) e suas redes são insuficientes para satisfazer as necessidades da população no caso de um período de transição. Uma suave contração econômica fora da zona do euro é improvável: era precisamente o medo da comida importada ou escassez de remédios e caos econômico no período de crise que assustou Alexis Tsipras a assinar um novo memorando. Países como Japão, com independência fiscal, monetária, e capacidade de emitir e financiar dívida na sua própria moeda, estão melhor posicionados para sustentar o emprego e bem-estar social sem crescimento (o Japão não vê crescimento há mais de 10 anos, uma década “perdida” só aos olhos dos economistas). Mas, claro, um capitalismo sem crescimento é inconcebível, e o Japão tenta arduamente relançar o crescimento (com pouco sucesso até então). 

A impossibilidade de imaginar forças políticas ascendendo ao poder com uma agenda do decrescimento faz alguns decrescenstistas argumentarem que a mudança só pode vir a partir da base da sociedade e não do Estado, através de um caminho “involuntário”, por onde os cidadãos se auto-organizarão ao passo que a economia estagnará com a falta de crescimento, trazendo crises. Eu concordo que uma transição ao decrescimento dificilmente seja voluntária e que aconteça em nome do “decrescimento”; ela será um processo de adaptação ao estágio estagnado da economia. Eu não posso ver, porém, como isso pode acontecer sem também ocupar o Estado, com um reforço mútuo da sociedade civil e da sociedade política, práticas militantes de base, e novas instituições.

Talvez nenhum partido de esquerda ousaria questionar abertamente o crescimento, mas, querendo ou não, eu acho difícil de ver a longo prazo a esquerda europeia (que, diferente da sua contraparte latinoamericana, não pode contar com uma bolha de commodities) poder evitar de se debruçar sobre o problema de como governar sem crescimento. O crescimento não é somente ecologicamente insustentável mas, como economistas abertamente admitem (de Piketty à Lawrence Sumers e os “estagnacionistas seculares) será cada vez mais improvável para as economias avançadas (SUMMERS, 2013).

O Capitalismo sem crescimento é selvageria. O decrescimento não é uma teoria clara, um plano, ou um movimento político. Ainda assim é uma hipótese cujo tempo chegou, à qual a esquerda não pode mais se dar ao luxo de evitar. 

REFERÊNCIAS

Bosquet, M. Proceedings from a public debate organized in Paris by the Club du Nouvel Observateur. Nouvel Observateur, Paris, 397, p. IV. 1972.

DALE, G.. “The growth paradigm: a critique.” International Socialism, 134, 2012

EVERSBERG, D.; SCHMELZER, M. “Über die Selbstproblematisierung zur Kapitalismuskritik.” Forschungsjournal Soziale Bewegungen, 29(1), 9-17. 2016.

GORZ, A.; VIGDERMAN, P.; CLOUD, J. Ecology as politics. Black Rose Books, p.13. 1980.

HARVEY, D. Seventeen contradictions and the end of capitalism. Oxford University Press (UK), 2014.

HINTON, J. This endless quest for growth will see Greece self-destruct. The Guardian, 2015. The Guardian. Disponível em: < https://www.theguardian.com/sustainable-business/2015/jul/07/this-endless-quest-for-growth-will-see-greece-self-destruct>. Acesso em: 11 de novembro de 2021.

JACKSON, T. Let’s be less productive. The New York Times. NY Times, 2012. Disponível em <https://www.nytimes.com/2012/05/27/opinion/sunday/lets-be-less-productive.html>. Acesso em: 11 de novembro de 2021. 

KLEIN, N. This changes everything: Capitalism vs. the climate. Simon and Schuster, 2015.

KRUGER, O. Laudato Si as signalling towards Degrowth. 2015.

MITCHELL, T. Carbon democracy: Political power in the age of oil. New York: Verso, 2011.

PIKETTY, T. Capital in the twenty-first century. Belknap Press, 2013.

YARROW, A. L. Measuring America: How economic growth came to define American greatness in the late twentieth century. University of Massachusetts Press, 2010

SUMMER, L. Transcript of Larry Summers speech at the IMF Economic Forum. 2013. Disponível em: < https://www.facebook.com/notes/randy-fellmy/transcript-of-larry-summers-speech-at-the-imf-economic-forumnov-8-2013/585630634864563>. Acesso em: 11 de novembro de 2021.

* Economista grego e cientista ambiental. Trabalha com economia ecológica e economia política. É membro do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados (Icrea) e professor da Universidade Autônoma de Barcelona, e um dos mais reconhecidos defensores da teoria do decrescimento.

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Ecofeminismo e economia feminista para tecer a sustentabilidade da vida

O ecofeminismo nasceu antes do surgimento do próprio termo. E isso se deve a um motivo simples: a História sempre contou com mulheres de luta em suas páginas, que não aceitavam as imposições e amarras da sociedade. Algumas foram líderes de suas comunidades, outras lideraram revoluções. E hoje, o desafio que se coloca é aliar essa luta a outra, tão importante quanto: a defesa do meio ambiente e a busca por uma economia justa, para além das mazelas do capitalismo. Neste texto, Miriam Nobre * apresenta princípios do ecofeminismo e da economia feminista, seguidos por sua concretização em  práticas coletivas de mulheres agroecológicas

Mulheres que se afirmam como sujeitos coletivos, lutam contra a opressão e concomitantemente afirmam uma relação harmoniosa com a natureza, existem desde muito tempo. Quilombos liderados por mulheres, por exemplo, constituíam-se em espaços de liberdade ao mesmo tempo em que seu plantio diverso voltado para o autoconsumo fazia frente à monocultura da cana que esgotava o solo e as pessoas.

Como diz o belo conto de Eduardo Galeano (2015), as mulheres escravizadas no Suriname antes de escapar enchiam a cabeleira de sementes de milho, feijão, abóbora e chegando nos refúgios dentro da mata “sacodem a cabeça e fecundam, assim, a terra livre”. 

Porém, o termo “ecofeminista” foi publicado pela primeira vez pela feminista francesa Françoise D’Eaubonne em 1974 (Siliprandi, 2015). A relação entre o feminismo e o ambientalismo se dava no âmbito das lutas de feministas pacifistas contra a energia nuclear e o militarismo. Esta corrente feminista com trajetórias diversas pontuou debates dentro do movimento ambientalista, mas também do feminismo. Um exemplo é a contestação de vertentes neomalthusianas que consideram o aumento populacional, em especial entre mulheres pobres do sul, como pressão sobre os recursos naturais.

As ecofeministas questionam o olhar sobre a natureza como recurso e denunciam que sua destruição deriva de um consumo excessivo pelos países do norte e elites do sul global. Frente ao controle da natalidade imposto, chegando à violenta esterilização em massa de mulheres pobres e indígenas no Peru durante a ditadura de Fujimori, elas afirmam os direitos reprodutivos das mulheres e o uso de métodos contraceptivos com seu pleno conhecimento e controle. 

Do ponto de vista epistemológico, sua contribuição é o questionamento da separação entre natureza e cultura, e a ideia de superioridade da cultura, que caracterizam o pensamento e a ciência ocidental.  Nós seres humanos também somos natureza. Natureza e sociedade evoluíram e evoluem de forma conjunta (co-evolução). Exemplo disto é que nos territórios de comunidades tradicionais, inclusive nos caminhos por onde transitam, existe uma grande diversidade de plantas e animais, ou seja, constituem uma sociobiodiversidade. Além do mais, há uma correspondência entre as necessidades alimentares de nosso corpo e os ciclos das plantas. A ideia de que a humanidade e sua cultura são superiores à natureza justifica violências, como os desmatamentos e monoculturas, que têm a mesma motivação que a violência contra as mulheres. 

Esta associação aparece nos escritos do filósofo Francis Bacon que, no final do século XVI, instaura as bases da ciência moderna descrevendo a natureza como uma mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante tortura. Neste mesmo momento histórico, mulheres conhecedoras das ervas e seus usos, que acompanhavam outras mulheres em partos e abortos, eram julgadas nos tribunais da Inquisição e queimadas como bruxas. A imposição de uma lógica mecanicista na ciência demandou a derrota das mulheres que vivenciavam relações complexas com a natureza (Frederici, 2017).

Por esta razão o ecofeminismo manifestou sua crítica a vertentes feministas movidas pela inclusão das mulheres na sociedade e na economia tal como estão estruturadas (feminismo liberal), com demandas como a entrada das mulheres nas forças armadas, o acesso das agricultoras às tecnologias da chamada revolução verde (ver abaixo) ou sua integração nos postos de comando de corporações transnacionais. Também questionou setores do movimento que apostaram em tecnologias desconectadas da natureza para liberar o tempo das mulheres dedicado ao trabalho doméstico (como o uso de comida rápida e ultraprocessada), ou que consideram o corpo e as fases da vida como um constrangimento (uso de supressores da menstruação ou adição de hormônios na menopausa).

No entanto, vertentes do ecofeminismo que defendem a existência de uma essência feminina, associada à maternidade biológica, têm sido questionadas por ocultar diferenças e desigualdades entre mulheres, por considerar a oposição masculino/feminino característica das sociedades ocidentais como universal e a-histórica, por dar justificativa à responsabilização exclusiva das mulheres e no âmbito privado pelos cuidados.

Aquelas vertentes nomeadas de construtivistas pela filósofa feminista Alicia Puleo (2012) têm maior diálogo e mesmo inserção em movimentos sociais, e contribuem fortemente para uma crítica à ideia de desenvolvimento e os projetos de desenvolvimento impostos ao sul global. A física indiana Vandana Shiva expressa este debate desde seus relatos sobre o Movimento Chipko, de camponesas indianas que abraçaram árvores para impedir sua derrubada, como os empates que famílias seringueiras realizaram no Acre nos anos 1980 no mesmo período, além de criticar a chamada revolução verde, onde os manejos tradicionais perderam espaço para a tecnologia na produção, com a participação de grandes corporações, causando endividamento, perda de terras pelos camponeses, expansão de monoculturas, perda de biodiversidade, contaminação de água e solos, e mesmo a fome que supostamente iria combater.

Estes sistemas supostamente superam as incertezas da natureza, mas a única certeza que de fato podem dar é a concentração de poder e o controle nas mãos de corporações transnacionais.

Economia feminista

No final dos anos 1990, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial impunham mundo afora políticas de ajuste estrutural para manter o pagamento da dívida pública e seus juros escorchantes. O neoliberalismo sustentava estas políticas, argumentando que o mercado poderia prover estes serviços melhor do que o Estado.

Parte do movimento feminista se posicionava contra estas políticas, denunciando que a redução dos índices de desigualdade entre homens e mulheres não poderia se dar pela piora da situação dos homens, nem pelo acesso das mulheres à remuneração por meio de trabalhos precários e sem direitos. Mas é o que ocorria nas chamadas maquiladoras, empresas latino-americanas que apenas juntam peças produzidas em outros países, outras empresas ou mesmo domicílios só maquiando o produto final, ou sweatshops na Ásia, literalmente fábricas movidas a suor. 

Foi neste contexto que nós da SOF (Sempreviva Organização Feminista) conhecemos a REMTE (Red Latinoamericana Mujeres Transformando la Economia) (Faria e Moreno, 2015). Com elas buscamos entender como o neoliberalismo e as políticas de ajuste estrutural se assentavam no patriarcado, para aumentar a exploração do trabalho das mulheres e transferir custos das empresas e do Estado para as mulheres em seus domicílios. Quando uma empresa fecha o refeitório alegando reduzir custos, as pessoas trabalhadoras não deixam de comer, mas trazem comida feita em casa, muito provavelmente por sua companheira ou mãe. Quando o Estado corta recursos que mantém creches, as crianças não deixam de necessitar material de higiene ou brinquedos que serão comprados muito provavelmente com recursos mobilizados por mães e avós em bingos e quermesses. A proposta era construir uma análise que fosse além dos impactos diferenciados para homens e mulheres destas políticas, mas entender como se entrelaçam construções de gênero, classe e raça na sustentação do capitalismo nesta fase de acumulação.

A economia feminista foi então a ferramenta analítica que passamos a usar com leitura coletiva de livro organizado pela economista chilena Cristina Carrasco (1999) e a organização da Rede Economia e Feminismo com agenda de diálogo e ação na economia solidária, agroecologia e trabalho, além de artigos que apresentavam uma visão articulada entre produção (produção de bens e serviços que circulam no mercado ou por meio do Estado) e a reprodução (produção das pessoas, da relação entre elas e entre gerações e da natureza).

No entendimento da sociedade e da economia capitalista destacamos a separação entre produção e reprodução, inclusive espacialmente na fábrica e na casa; a atribuição prioritária dos homens à produção e das mulheres, à reprodução; e a hierarquia: as lógicas e tempos da produção organizam a vida e são considerados mais importantes ou determinantes do que a reprodução. No entanto, este exercício didático pode esconder alguns fatos, como o de que mulheres negras e pobres sempre trabalharam e nunca se restringiram ao cuidado de sua família; ou que a casa pode ser um local de produção, como no trabalho em domicílio; ou que há outras formas de organização econômica, como o campesinato ou as comunidades tradicionais, em que as fronteiras entre produção e reprodução são muito mais fluídas. Para além disto, o que estas autoras nos chamam a atenção é que mesmo no sistema capitalista não existe produção sem reprodução social da vida e que nossa atenção deve voltar-se para os nexos entre elas.

Com a percepção voltada para a vida, (nos) compreendemos como interdependentes e ecodependentes (Herrero, 2020). Nós, seres humanos, necessitamos de cuidados em alguma etapa de nossas vidas – quando somos crianças, quando estamos doentes ou no avançar da idade, quando diminuem nossas capacidades motoras ou intelectuais. Também somos intrinsecamente seres relacionais. Precisamos de segurança emocional e afeto para desenvolver nossa autoconfiança e nossas habilidades de interação com outras pessoas e seres. A fim de nos tornarmos seres humanos autônomos, nós sempre necessitamos de cuidado.

A sociedade capitalista, patriarcal e racista se baseia na distribuição desigual dos cuidados. Em geral, as mulheres cuidam mais do que os homens. As mulheres negras, indígenas e migrantes cuidam mais ainda. Esta imposição é velada, pela naturalização das habilidades desenvolvidas pelas mulheres ao longo de sua socialização como mulheres para estarem atentas ao cuidado do outro e pela ideologia da maternidade como destino.

Somos natureza e dela provém alimento, abrigo, energia, minerais que necessitamos para responder às necessidades básicas que temos. Da mesma forma, nesta sociedade a distribuição desigual do acesso à natureza se manifesta pela propriedade privada que impede trabalhadoras sem terra de produzir alimentos e que aloja resíduos tóxicos em comunidades racializadas e pobres.

Sendo assim, a economia feminista destaca que a contradição do capital vai além do trabalho e se constitui em um conflito capital X vida (SOF e XXK, 2021). A precariedade e as incertezas marcam a vida da maioria das pessoas que se tornam descartáveis mediante a superexploração no trabalho, a violência policial ou o descaso com a saúde pública. Enquanto a vida de pessoas em posição de privilégio – homens, burgueses, brancos, adultos e heterossexuais – drena recursos materiais, afetivos e simbólicos.

A organização econômica desta fase do capital se entrelaça com o conservadorismo moral e político. As inovações tecnológicas vão no sentido de maior controle da vida pelas corporações transnacionais. Os aplicativos de entrega, fazem com que as pessoas permaneçam disponíveis para o trabalho em extensas jornadas. As redes sociais fazem com que as pessoas permaneçam disponíveis para os dispositivos (aparelhos celulares, tablets, computadores) em tempo quase integral.

Diálogos entre ecofeminismo e economia feminista em práticas coletivas

Várias iniciativas articulam a economia feminista e o ecofeminismo atualmente. Citaremos três exemplos que se inserem na atuação do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT de mulheres da ANA). O GT, criado em 2004, reúne agricultoras, técnicas, pesquisadoras, servidoras públicas e de ONGs, mulheres organizadas em movimentos mistos (onde participam mulheres e homens) e autônomos (onde participam mulheres). A SOF participa do GT desde sua criação e com muitas das companheiras que o compõem compartilham atuação na REF Rede Economia e Feminismo e na Marcha Mundial das Mulheres. Já foram realizados processos nacionais de formação feminista, de sistematização de experiências agroecológica de mulheres, co-construção de políticas públicas e mobilizações várias.

As Cadernetas Agroecológicas são um instrumento político-pedagógico de registro do destino da produção pelas agricultoras: autoconsumo, doação, troca e venda. Este processo coordenado pelo GT de mulheres da ANA envolveu 299 agricultoras de todo o Brasil que fizeram o registro entre março de 2017 e fevereiro de 2018. A totalização dos valores anotados na Caderneta alcançou quase R$ 1,5 milhão, sendo 40,2% de relações não mercantis (autoconsumo, doação e troca) usualmente invisíveis para a economia dominante. 

Outro dado interessante é que mesmo nas vendas, as agricultoras participam de circuitos de comercialização de proximidade, que em sua maioria se organizam com base na reciprocidade e solidariedade e valorizam produtos considerados femininos e “miudezas”. 52% das agricultoras vendiam em casa, na maior parte das vezes para vizinhas, 49% participavam das compras governamentais (PAA, PNAE) e 39% participavam de feiras agroecológicas. No Sudeste o valor médio comercializado nas feiras agroecológicas (R$ 638,84), cerca de 44% superior ao comercializado em feiras convencionais. 

A relação com a dimensão ambiental se dá pela constatação da grande variedade de produtos anotados, como 627 tipos de alimentos vegetais, 138 de sementes e mudas e 133 de plantas medicinais e ervas aromáticas. Entre os vegetais também é grande a variedade. Na região Sudeste foram 37 tipos de frutas, entre elas 10 variedades de banana e 5 de laranja. (Weitzman e outras, 2021). A variedade dos cultivos das mulheres também foi representada em mapas da sociobiodiversidade que demonstraram os espaços de produção sobre sua responsabilidade ao redor da casa, os quintais, como espaços de experimentação.

A Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER Agroecologia realizada durante os governos populares envolveu mais de 55 mil famílias de agricultores. A construção desta política pública contou com intensa participação dos movimentos sociais, inclusive de feministas agroecológicas. Desta forma foi definido que o público deveria contemplar pelo menos 50% de mulheres, e pelo menos 30% dos recursos deveriam ser destinados a atividades realizadas com mulheres. A caracterização da unidade de produção realizada junto com as famílias envolvia um exercício de registro dos usos do tempo pelos diferentes integrantes da família segundo sexo e idade e organizados em tempos de trabalho de mercado, de trabalho doméstico e de cuidados, de necessidades pessoais, de participação cidadã e lazer.

Durante a formação com as técnicas que executavam a ATER, ouvimos relatos de quão instigadora esta atividade havia sido. A reflexão realizada por técnicas, agricultoras e agricultores que nunca haviam participado de um debate feminista constatou desigualdades e injustiças. As mulheres são as primeiras que levantam, as últimas a irem se deitar e realizam uma série de atividades simultaneamente. Ainda assim, quando nós da SOF, utilizando o mesmo quadro, perguntamos quanto tempo uma agricultora dedicava ao cuidado dos filhos, ela respondeu que era todo o tempo. Mesmo dormindo ela estava pendente deles e podia levantar-se prontamente caso a chamassem. Por este motivo que economistas feministas se referem ao cuidado como uma disponibilidade permanente das mulheres em relação ao outro. 

Pesquisa dos usos do tempo realizada no Sertão do Pajeú junto a mulheres rurais também identificou a dificuldade em registrar a simultaneidade das tarefas e em classificá-las (Moraes e outras, 2020). Uma visita à vizinha poderia ser considerada uma atividade de lazer. No entanto, elas perceberam que as visitas aconteciam porque a agricultora se preocupava com o risco de depressão de sua vizinha, o que elas consideraram muito mais próximo a uma atividade de cuidado e a uma obrigação moral. 

Por outro lado, muitas vezes as agricultoras estão na horta, na agrofloresta trabalhando, experimentando, observando e desfrutando há um só tempo. Os tempos da natureza, a estação de seca e de chuva, os ciclos das plantas demandam mais ou menos atenção e cuidado que se combinam com os tempos das relações. Como nos contou Aparecida XX agricultora da Barra do Turvo: ela cuida da planta e a planta cuida dela.

A dimensão do cuidado se evidenciou durante a pandemia. Memórias sistematizadas nas regiões Nordeste e Sudeste demonstram como as redes de agricultoras fortaleceram e criaram alianças com coletivos de pessoas trabalhadoras na cidade na compra de alimentos agroecológicos (Nobre, 2021). Muitos destes coletivos ampliaram suas ações ou se organizaram em torno à solidariedade com pessoas em situação de vulnerabilidade, como indígenas guarani, estudantes privados de alimentação escolar ou mães solo, além de terem mantido canais de comercialização quando outros foram interrompidos. Alguns coletivos envolveram a reflexão sobre a alimentação, recuperando sabores e texturas perdidos devido à imposição de padrões alimentares homogêneos e controlados por corporações transnacionais. Comer foi sendo vivenciado como cuidado à saúde, aumento da imunidade e um ato político. 

As redes de agricultoras rurais ou urbanas funcionaram como acolhimento e escuta. Tantas demandas e tensões colocou para os grupos a importância do autocuidado e do cuidado coletivo. O GT de mulheres da Articulação Agroecológica do Rio de Janeiro (AARJ ), por exemplo, organizou cestas de alimentos, ervas medicinais e homeopatia popular entregues a 200 mulheres. Em muitas regiões, saberes ancestrais de plantas medicinais foram resgatados para tratar dos sintomas da Covid-19. Mulheres lideranças permaneceram atentas às pessoas necessitando de cuidados físicos e emocionais em seu entorno. Atentas também estiveram aos necessários cuidados ao território afetado por mudanças climáticas (seca, muita chuva, geada) e ameaças de fazendeiros e empresas.  

Estes processos coletivos de produção e distribuição de comida agroecológica reorganizam práticas econômicas e políticas. Desvelam que a natureza e os cuidados sustentam a vida e sua reprodução. Realizados majoritariamente por mulheres, muitas delas negras e indígenas, são trabalhos e conhecimentos desvalorizados e ocultados pelo capitalismo patriarcal e racista. O ecofeminismo e a economia feminista são como um tear para tessituras de memórias e (re)invenções. 

Bibliografia

Carrasco, Cristina. Mujeres y economía: nuevas perspectivas para viejos y nuevos problemas. Barcelona: Ed. Icaria, 1999

Faria, Nalu e Moreno, Renata (org.). Las mujeres contra el libre comercio. Una historia de resistencia y lucha. São Paulo: REMTE, 2015.

Frederici, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.

Galeano, Eduardo. Mulheres. Porto Alegre/São Paulo: Ed. LP&M, 2015.

Herrero, Yayo. Economia ecológica e economia feminista: um diálogo necessário. In SOF: Economia feminista e ecológica. Resistências e retomadas de corpos e território. São Paulo: SOF, 2020. 

Moraes, Lorena Lima, Ponter, Nicole, Sieber, Shana, Funari, Juliana, Nascimento, Nathália, Marques, Patrícia. Metodologias, trabalho uso do tempo: compreendendo a rotina de mulheres rurais. In Melo, Hildete Pereira de e Moraes, Lorena Lima de. A arte de tecer o tempo. Perspectivas feministas. Campinas: Pontes editores, 2020.

Nobre, Miriam (org). Um meio tempo preparando outro tempo.  Cuidados, produção de alimentos e organização de mulheres agroecológicas na pandemia. São Paulo: SOF, 2021.

Nobre, Miriam. Gênero e autonomia econômica para as mulheres. Caderno de formação. Brasília: Secretaria Nacional de Política para as Mulheres e ONU Mulheres, 2016.

Puleo, Alicia. Anjos do ecossistema? In Faria, Nalu e Moreno, Tica (org.). Análises feministas: outro olhar sobre economia e ecologia. São Paulo: SOF, 2012.

Shiva, Vandana. Abrazar la vida: mujer, ecología y supervivencia. Madri:  Ed. Horas y Horas, 1995

Siliprandi, Emma. Mulheres e Agroecologia. Transformando o campo, a floresta e as pessoas. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2015.

SOF e XXK. Juntas e misturas: explorando territórios da economia feminista. São Paulo/Bilbao: SOF e XXK, 2021. Disponível em  https://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2021/06/Juntas-e-misturadas_V7.pdf 

Weitzman, Rodica, Schottz, Vanessa e Pacheco, Maria Emília. Mulheres construindo a agroecologia: caminhos para a soberania e segurança alimentar e nutricional. In Rody, Thalita; Telles, Liliam (org). Caderneta Agroecológica: o saber e o fazer das mulheres do campo, das florestas e das águas. Viçosa: CTA-ZM, UFV, 2021. No prelo.

* Agrônoma, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, da coordenação do GT de mulheres da ANA e da REF Rede Economia e Feminismo. Militante da Marcha Mundial das Mulheres

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Recompor a relação entre economia, sociedade e ecologia: agenda para uma transição solidária

A economia solidária muitas vezes é atrelada a uma agenda de microeconomia. Reforçar laços econômicos de forma solidária no bairro e na comunidade local não é menos importante. Porém, entender a Ecosol como uma transição ao socialismo autogestionário, – onde se reorganizarão múltiplas economias com relações mais harmoniosas, despatriarcalizadas, cooperativas e ecológicas sob um Estado profundamente redistributista -, é também uma questão da macroeconomia. Como ressocializar a economia para chegar a tal objetivo é motivo de reflexão para Genauto França Filho *

Será que temos efetiva compreensão sobre o alcance da agenda de mudança social na qual a economia solidária é portadora? Ou costumamos tirar conclusões mais limitadas sobre esse tema? Neste texto tentaremos indicar a amplitude da economia solidária enquanto temática, cujo significado nos permite pensar tanto a originalidade de variadas formas de auto-organização socioeconômicas, quanto um outro cenário em termos de sistema macroeconômico envolvendo a relação entre Estado, mercado e sociedade. Segundo nossa abordagem, a agenda da economia solidária aponta múltiplos níveis e escalas em termos de cenário de sociedade. O paradigma de mudança social na qual ela é portadora nos parece mais em fase com a noção de transição social e ecológica, em razão dos valores que a orientam. No intuito de esclarecer tais argumentos, começaremos sugerindo um outro olhar acerca da crise que se vive em diferentes sociedades atualmente e salientaremos seus efeitos. Isto já permite posicionar a problemática situando a razão de ser da economia solidária. Na sequência, abordaremos os seus fundamentos, enfatizando o como ela redefine o sentido do agir econômico na vida em sociedade, para então explorar a agenda de transformação social nela contida.

A solidariedade invisibilizada …

Uma entrada pouco explorada na compreensão sobre a natureza da crise que vivemos no capitalismo consiste em entender o modo como nele se estabelece a relação entre economia e sociedade e seus efeitos decorrentes. Aqui, uma primeira constatação salta a percepção: economia e vida estão separadas, como se fossem domínios distintos. O modo compartimentado pelo qual a ciência tratou os dois objetos contribuiu para invisibilizar este fato. Entretanto, áreas do conhecimento como história e antropologia nos trazem importantes ensinamentos sobre a íntima relação entre economia e vida. Primeiro porque ampliam seu significado: a economia é compreendida como o meio de garantia das condições materiais de existência, assumindo diversas formas. Na história das sociedades humanas observa-se que essa garantia não se realiza sem um imperativo de solidariedade, pois as culturas e povos antigos sempre reconheceram, na busca pela sustentabilidade, uma dupla dependência dos seres humanos: entre si e em relação à natureza. Dois princípios então, muito diferentes do mercado, tiveram prevalência nos processos de organização social e econômica na história: a redistribuição e a reciprocidade. O mercado, na sua versão de um princípio de auto-regulação prescindindo da solidariedade, é uma invenção bastante recente, nascendo com a revolução industrial. Todavia, trata-se de uma invenção portadora de um profundo paradoxo, como nos ensina a história econômica: às suas virtudes extraordinárias de criação de riqueza se somam, na mesma medida, um notável poder destrutivo dessa mesma riqueza. Isto se deve ao caráter intrinsecamente concentrador e excludente desse mecanismo, cujo efeito mais conhecido é a produção de desigualdades. 

O curioso é que, embora essa forma de economia tenha nascido da própria sociedade, através de uma engenhosa operação de economia política, seu movimento é de uma busca incessante em separar-se, devido justamente ao seu caráter autocentrado. Diferentemente das demais formas de economia, que estão submetidas às regras de organização da vida social, este mecanismo inverte a relação entre economia e sociedade na história, em nome de uma reivindicação de liberdade bastante específica (pois pretensamente desprovida de regras ou de limites). Dessa vez é a sociedade que deve estar submetida às regras do mercado concebido como ente deificado. O destino das economias de mercado, conforme notou Polanyi (1986), é de tornarem-se sociedades de mercado, devido a extensão sem fim das relações mercantis. 

Contudo, esse movimento de expansão sem limites do mercado encontra historicamente a resistência da própria sociedade através de variadas expressões da proteção social. Sendo esta tratada como um empecilho ao desenvolvimento das forças de mercado, a história do capitalismo pode ser lida como um processo de tensionamento permanente (POLANYI, 1986) entre esse mecanismo econômico tentando subordinar a sociedade à sua racionalidade, e a sociedade, por sua vez, lutando para “domar a fera” e fazer prevalecer as necessidades sociais.

É neste tensionamento que localizamos com mais clareza a natureza da crise que vivemos. Primeiro é importante reconhecer que ela decorre de um divórcio entre economia e sociedade produzido no bojo de uma concepção de economia como um fim em si mesmo. Este, tem engendrado uma série de outros afastamentos bem conhecidos: entre economia e meio ambiente, economia e território ou, nos tempos de pandemia, economia e saúde. Em segundo lugar, cabe salientar um outro divórcio relativo à expulsão da solidariedade. Afinal de contas, na imaginação que se torna real de uma vida em sociedade regulada através de uma generalização das relações de compra e venda, de fato, não apenas deixa de haver espaço para a solidariedade, como ela é vista como indesejável. Essa visão atualizada através do neoliberalismo considera também a democracia como um elemento indesejável, pois perturbador da suposta ordem natural em que leis sociais seriam substituídas por regras tecnocráticas. Num mundo governado como uma empresa, é a própria ideia de sociedade que também perde sentido, como nos vaticinou Margareth Thatcher: there’s no society. Ela não fez mais do que seguir pressupostos de uma filosofia política utilitarista rudimentar, segundo a qual a ganância ou a sede do lucro fazem bem (the greed is good). Na utopia de um mundo governado pela generalização dos interesses privados, onde a ideia de empresa substitui aquela de sociedade e uma governança tecnocrática se impõe no lugar da democracia, parece que estamos mais próximos de um cenário de distopia totalitarista, já anunciada em inúmeras obras de ficção científica, sobretudo no cinema e na literatura. Na prática, tal ideologia não seria indesejável se não trouxessem consequências tão dramáticas. 

As insustentabilidades em curso…

Quatro insustentabilidades, absolutamente indissociáveis, refletem grandes dilemas que vivemos atualmente. Elas decorrem do modelo econômico que predomina no capitalismo contemporâneo, cuja principal caraterística é seu elevado grau de financeirização. Tal fenômeno representa um deslocamento do principal centro de produção de valor ou de “riqueza econômica”: da atividade produtiva concreta para o mercado financeiro (DOWBOR, 2017). Com isso, aquilo que é nomeado comumente de “economia real” se torna subordinada à lógica de reprodução e ampliação de um capital especulativo e rentista que é desterritorializado e mundializado. 

Uma primeira insustentabilidade é de natureza socioambiental e compreende-se através dos efeitos de exaustão sobre os recursos naturais que são provocados pelos níveis de consumo desenfreados decorrentes da necessidade de crescimento ilimitado. Tal lógica é geradora de uma grande crise ambiental verificada hoje através do aquecimento climático e uma série de outros indicadores como desmatamento, poluição dos oceanos, contaminação química dos solos e água, e destruição da biodiversidade (IPCC, 2014; IPBES, 2017). Alguns cientistas da Terra e ecologistas mencionam uma “grande aceleração” ocorrida desde os anos 1970 – coincidindo, portanto, com o avanço do modelo neoliberal – e que nos conduz, provavelmente, a uma série de catástrofes ambientais já fora do controle. Desta forma, com a entrada nos tempos de “antropoceno”, a humanidade está diante da necessidade de transformações imediatas tanto no nível da economia quanto no das formas de vida (BONNEUIL & FRESSOZ, 2013; LATOUR, 2020).

Uma segunda insustentabilidade é socioeconômica e está refletida nos níveis de recrudescimento incessante das desigualdades no mundo como fruto das tendências de concentração da renda e da riqueza. Em um dos estudos internacionais recentes mais conhecidos sobre a dinâmica do capital no século XXI, o economista francês Thomas Piketty demonstra com elevado rigor essa escalada ao evidenciar os graus cada vez maiores de desigualdade socioeconômica na dinâmica histórica do capitalismo e que se acentuam nas três últimas décadas (PIKETTY, 2013; CAPRARA, 2017). Vários outros estudos também evidenciam o aumento das desigualdades  relacionados à concentração de renda e riqueza no planeta (EPSTEIN, MONTECINO, 2016; OXFAM, 2017; DOWBOR, 2017). Tais abordagens descortinam uma nova lógica econômica, atualizando a problemática da apropriação e indicando as incongruências entre esforço produtivo e remuneração.

Os fatores climáticos e a concentração da renda se conjugam para explicar os movimentos migratórios no mundo. Estes reacendem uma terceira dimensão das insustentabilidades que é de caráter sociocultural. Elas dizem respeito aos níveis cada vez mais elevados de intolerância à diversidade de grupos sociais refletindo uma problemática racial, de gênero, de orientação sexual ou de opção religiosa. Atestam isso o recrudescimento dos casos de racismo, misoginia e feminicídio, homofobia e perseguição religiosa em diversos países. Esses problemas de preconceito e discriminação não estão atrelados apenas aos imigrantes, mas são vividos no interior de diferentes sociedades como heranças históricas da condição de não reconhecimento de “minorias” como um traço cultural. Nestes tempos de ascensão ao poder de governos populistas de extrema direita em diferentes países, tal problemática se torna muito mais aguda e dramática.

Finalmente, uma quarta dimensão é de natureza sociopolítica e diz respeito ao enfraquecimento da democracia enquanto forma de governança desde a escala global até o nível local. De fato, a lógica de apropriação desigual das riquezas e da desterritorialização da produção e das finanças está, obviamente, na origem de um enfraquecimento da capacidade de organização da vida econômica e de promoção dos direitos por parte dos Estados-nação. Isso gera uma quarta dimensão da crise, de natureza eminentemente política. Trata-se do fato das sociedades contemporâneas estarem confrontadas a uma nova forma de governança internacional, cuja principal característica é o deslocamento tácito do poder decisório mundial de um lócus público, representado pelos Estados e organismos supranacionais, para o setor privado, representado pelo poder real dos poucos grandes grupos corporativos, baseados sobretudo no capital financeiro, cujas atividades estão espalhadas nos mais diversos países (DOWBOR, 2017; CHOMSKY, 2017). A proporção do endividamento público dos Estados nacionais no mundo aumenta em uma medida praticamente simétrica ao crescimento econômico desses gigantes corporativos mundiais, que aliás, tornam-se seus credores. Tal fenômeno acontece, ainda, na mesma proporção do enfraquecimento das instâncias supranacionais de decisão no mundo. Com o poder econômico concentrado em gigantes corporativos transnacionais, os Estados-nação se encontram em situação de dependência em relação a estes atores considerados como investidores, sendo suas políticas públicas diretamente influenciadas por estes (DOWBOR, 2017). Com a fragilização da soberania dos países, são as próprias democracias que se encontram então ameaçadas.

A necessidade de ampliar nossa visão sobre o econômico

A mudança que o mundo precisa para enfrentar tais insustentabilidades pressupõe a reafirmação de uma série de princípios e valores basilares na garantia de uma efetiva capacidade de convivência dos humanos entre si e com o seu meio ambiente: democracia, solidariedade, liberdade, diversidade, bens comuns e bens públicos, são alguns desses valores. Todavia, uma questão salutar se coloca: qual concepção e/ou modelo econômico parece compatível com uma tal agenda de valores ? 

De fato, as práticas de economia solidária são incompreensíveis sem a adoção de uma concepção ampliada de economia. Esta, conforme salientamos no início, pode ser extraída de um olhar sobre a história de diferentes culturas e sociedades humanas em relação ao modo como organizaram, em termos institucionais, a garantia dos meios materiais para viver, isto é, o modo como fizeram economia. A dupla definição do econômico identificada por Polanyi (2012), esclarece este aspecto. Para além da chamada definição formalista, que reduz a compreensão do econômico a um cálculo maximizador em situação de escassez, este autor defende uma visão substantiva. Nesta, a economia é pensada como o que permite a garantia dos meios de existência, através de interações humanas e de interações com a natureza. Essa abordagem insiste numa relação íntima entre economia e vida, rompendo com a ideia de uma economia isolada da vida que se encontra na base do sofisma que confunde economia com mercado (definição formalista). Essa ficção alimentou a pretensão ocidental de superioridade, segundo a qual não há nada a aprender das sociedades ditas “primitivas” e “arcaicas”.

Num sentido absolutamente diferente, a visão substantiva evidencia que outros princípios, para além do mercado, desempenham um importante papel em todas as economias humanas ao longo da história: a redistribuição (ou seja, a realocação de recursos tomados por um poder central e controlados, no caso do estado de bem-estar social, pela democracia representativa); a reciprocidade (ou seja, os tipos de produção e troca que são governados não pelo lucro, mas pela preocupação de fortalecer os vínculos sociais entre pessoas ou grupos); e, o compartilhamento doméstico (ou seja, as atividades econômicas realizadas no seio de um agrupamento social de base como a família).

Economia plural e ressignificação dos mercados: caminhos para a transição social e ecológica

Desse conjunto de ideias, deduzimos a noção de economia plural enquanto um esforço de atualização dessa outra visão do econômico que orienta a agenda da economia solidária. Como vimos, a definição substantiva do econômico, por ser ampliada, engloba a definição formalista. Da mesma forma, o conceito de economia plural envolve ou ultrapassa a noção de economia de mercado. Nessa relação, a noção de economia plural parece cumprir um propósito analítico-normativo, conforme esclarece a dupla acepção do verbo conter. Em um primeiro sentido, a economia plural contém a ideia de mercado, pois este é apenas parte de uma concepção mais ampla. Em um segundo sentido, a economia plural contém a economia de mercado em termos de refrear seus efeitos de externalidade negativa ou barrar sua pretensão de subordinar a sociedade à sua lógica (FRANÇA FILHO, 2019; EYNAUD, FRANÇA FILHO, 2019). 

Podemos notar então que o conceito de economia plural guarda grande fecundidade heurística ao indicar uma atualização do olhar sobre as dinâmicas econômicas contemporâneas. Com este conceito podemos pensar novas possibilidades de ação coletiva para o desenvolvimento, segundo pelo menos três matrizes analíticas: a) relativo a especificidade de cada uma das distintas lógicas socioeconômicas; b) relativo às possibilidades de articulação entre tais lógicas, apontando caminhos inovadores em termos de arranjos institucionais; e c) relativo às possibilidades de ressignificação das próprias práticas de mercado, através de inovações institucionais nos próprios modos de produzir, comercializar, consumir e se relacionar financeiramente (FRANÇA FILHO, 2019). Neste esforço de atualização conceitual, importa salientar a relação de cada uma das formas de economia com a democracia. É um imperativo de solidariedade democrática que acompanha a proposição de uma outra ideia de economia contida na noção de economia plural. Se ela nos ajuda a refletir sobre outro modo de enxergar o funcionamento da economia real, pelo menos três níveis indissociavelmente articulados podem ser vislumbrados (FRANÇA FILHO, 2019).

Um primeiro nível, micro-sistêmico, consiste em identificar práticas organizativas no seio da sociedade, baseado em mecanismos de solidariedade econômica, como uma projeção miniaturizada do conceito mais amplo de economia plural. Isto porque tais práticas podem ser vistas com ênfase nos modos de gestão de diferentes lógicas em tensão nas respectivas dinâmicas organizativas que são analisadas. Nessas, enfatiza-se o desafio da busca do equilíbrio necessário à sustentabilidade de tais práticas, em meio à tensão entre as lógicas mercantil, redistributista e reciprocitária. Isso significa reconhecer que uma mesma iniciativa, a exemplo de um empreendimento de economia solidária no seu funcionamento cotidiano, pode estar mobilizando recursos simultaneamente: via atividade de comercialização e contraprestação financeira (lógica mercantil), via financiamento público governamental ou não governamental (lógica redistributista) ou via relações de solidariedade na forma de ajuda mútua, de contribuições voluntárias, de produção para autoconsumo, de mutualização de recursos, ou de financiamentos coletivos, entre outros (lógica reciprocitária). Neste sentido, o desafio da gestão encontra-se em aproveitar o potencial sinérgico contido nas três lógicas do ponto de vista da capacidade reunida pelo empreendimento para a sua mobilização de recursos e, ao mesmo tempo, manter a lógica mercantil subordinada às lógicas solidárias enquanto esforço de equilibrar distintas racionalidades. 

Um segundo nível, meso-sistêmico, consiste em identificar o potencial de fortalecimento de dinâmicas locais ou territoriais de desenvolvimento contidas na articulação entre esses vários princípios de ação econômica, isto é, entre a lógica redistributista, a lógica reciprocitária e a lógica de mercado ressignificada. Se tal abordagem implica em pensar a pluralidade das formas de economia a serviço do seu contexto territorial, é porque existe um valor importante em cada uma delas e um campo aberto de possibilidades para pensar sua articulação segundo as características específicas e demandas de cada contexto. As diferentes redes e parcerias institucionais possíveis neste caso devem obedecer aos pressupostos básicos da democracia e da solidariedade como condição para sua inovação territorial e institucional. Arranjos institucionais específicos, a exemplo de redes reunindo atores locais diversos (poder público, setor privado, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e empreendimentos de economia solidária) voltadas ao fortalecimento de uma dada territorialidade, constituem um caminho importante neste segundo nível. 

Finalmente, no terceiro nível, macro-sistêmico, o conceito de economia plural pode nos ajudar a melhor compreender a relação entre Estado, mercado e sociedade em termos de novas formas de regulação socioeconômicas. Trata-se nesse caso de superar enfoques funcionais, que tentam entender a regulação a partir de setores, para valorizar uma abordagem mais sociopolítica sobre o papel ressignificado do mercado, do Estado e, sobretudo, da sociedade, na provisão de bens e serviços de modo efetivamente acessível ao conjunto da população.

Este nível macro deve integrar uma agenda de desenvolvimento mais amplo em que princípios de economia solidária transmutados na ideia de economia plural nos ajuda a pensar uma renovação das relações entre Estado, mercado e sociedade. Escapando das visões mercadocêntricas do desenvolvimento, em que tudo estaria resumido no potencial da racionalidade empresarial, trata-se tanto de readequar e ressignificar a ação privada no sentido de conter seu caráter predatório, quanto de valorizar o potencial das iniciativas partindo da sociedade e baseadas em cooperação para reativar as economias territoriais, além de melhor aproveitar a capacidade redistributista e de investimento público do estado no redirecionamento dos fluxos da riqueza.

Essa outra regulação tem como objetivo uma agenda de valores pautados no combate às causas das insustentabilidades: defesa e preservação ambiental; respeito à diversidade e promoção dos direitos de grupos sociais marginalizados; inclusão social e distribuição equitativa da renda e da riqueza; valorização dos distintos saberes de povos e culturas, além de preservação da sua memória histórica; e, valorização da democracia.

O cumprimento de uma tal agenda de valores é precisamente o que define a transição social e ecológica como um novo paradigma da transformação das sociedades de hoje. Neste sentido, as práticas de economia solidária são uma inspiração importante, pois elas já carregam em seu bojo a totalidade desse ideário. São inciativas pautadas na gestão e controle democrático dos seus mecanismos de decisão; surgem em grande parte dos casos da iniciativa de grupos sociais marginalizados; estão enraizadas localmente, ou seja, identificam-se com a realidade do seu território de pertencimento, pautando suas ações na valorização das identidades do lugar e na preservação do seu ecossisitema; baseiam-se numa distribuição equitativa dos rendimentos econômicos e na valorização do direito ao trabalho associado; e, se organizam com base em tecnologias sociais e de preservação do ecossistema em que vive.

Em resumo, urge a necessidade de reativarmos as solidariedades públicas e democráticas, tanto aquelas que partem do Estado e atualizam o princípio redistributista, quanto aquelas que partem da sociedade e atualizam o princípio reciprocitário. O papel das políticas públicas torna-se um elemento central neste esforço de mudança institucional cujo paradigma é inclusivo, democrático e ecológico.

Bibliografia

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* Professor Titular da UFBA (Escola de Administração). Coordenador do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA/EAUFBA) e da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária e Gestão do Desenvolvimento Territorial da Universidade Federal da Bahia (ITES/UFBA). Pesquisador CNPq: Bolsista de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora. Doutorado em Sociologia pela Université de Paris VII (Dennis Diderot). Mestrado e Graduação em Administração pela Universidade Federal da Bahia

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O que cresce nas brechas pode derrubar muros? O projeto da outra economia

Karl Marx e Rosa Luxemburgo apontaram que, de alguma forma, o comunismo seria uma ligação entre o passado de nossos povos originários, – sociedades que compartilhavam o fruto do seu trabalho -, e o futuro da humanidade – que ao superar o capitalismo voltaria a socializar as riquezas. No mesmo sentido, a Ecosol também postula-se como um modo de produção com tal síntese, porém já projetando o futuro em práticas autogestionárias no aqui e agora. Lembrando os ensinamentos de Marx como, por exemplo, o de ver o assalariamento como uma opressão, Egeu Esteves e Cris Andrada nos apontam tal alternativa sistêmica como projeto de sociedade. Agucem os ouvidos para escutar tal Revolução Silenciosa.

Por Egeu Esteves e Cris Andrada *

Todos conhecemos as desgraças do capitalismo. A conversão de tudo e todos em mercadorias já possibilitou o comércio de pessoas, a superexploração dos trabalhadores, a dominação de povos inteiros e, no ritmo atual, ameaça a biosfera de nosso planeta. Compreendidos como recursos, tudo está lá, ao aguardo dos desígnios do Capital. Até nossa subjetividade e personalidade são convocadas a existir como ativos, transformadas em competências, valorizadas como capital humano e extraídas para servir aos mesmos de sempre. 

Também queremos crer que o capitalismo irá findar um dia, o quanto antes, e pensamos nas condições necessárias para esse inevitável passo, prometido desde o famoso manifesto. Mas quando? Será que o que ainda não existe, mas que já poderia existir, nos aguarda em algum lugar? Será a realização da utopia um sonho ou um pesadelo? Em outras palavras, a nova economia será equitativa e solidária? O Estado será participativo e democrático? Teremos direitos a garantir? Haverá leis a cumprir e liberdades a realizar?

Se tivesse rumo certo o futuro seria o esperar de um porvir, uma inevitável consequência do desenvolvimento dessas ou daquelas forças. Mas o futuro, por si só, não tem bússola e é preciso lutar para que o porvir seja melhor que o presente. É justamente a incerteza que convoca a política para dar direção a um futuro que, embora aberto, torna-se tema do presente.

Em busca de definições

Provavelmente seria muita pretensão apontar um caminho, uma direção, para a superação do capitalismo. Mas parece que é isso que trabalhadores e trabalhadoras, consumidores e consumidoras, vêm fazendo. Segundo Paul Singer (2000) “A economia solidária é o projeto que, em inúmeros países há dois séculos, trabalhadores vêm ensaiando na prática e pensadores socialistas vêm estudando, sistematizando e propagando.” (p.14). 

No exercício do direito à livre associação, trabalhadores/as unidos/as em bases equitativas e solidárias, investem suas reservas, recursos e trabalho para atuar coletivamente nos mercados de produção e de serviços e, ao fazê-lo, modificam a estrutura desses mercados. Essa economia invertida, em que o trabalho contrata o capital, tem sido chamada de Economia Solidária. Mas, afinal, o que é economia solidária? 

Provocada pela mesma pergunta, Sylvia Leser de Mello (2018) respondeu em entrevista:

— A Economia Solidária é basicamente aquilo que se propõe: uma outra economia, na qual não há um patrão e não há um empregado. Uma economia feita coletivamente e acompanhada democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores envolvidos. A decisão e a organização do trabalho estão nas mãos, na cabeça, na inteligência dos trabalhadores. Não tem um patrão, mas um coletivo de pessoas que vivem de um trabalho que é essencial para eles, mas sem subordinação, sujeição. O controle é feito coletivamente, nas assembleias e através da discussão dos problemas. – Sylvia Leser de Mello (Paixão, 2018)

Essa resposta indica que a Economia Solidária deve ser entendida como a economia dos/as trabalhadores/as, com caráter coletivo, igualitário e democrático. Uma economia autogerida, ou seja, sem intermediários (investidores, patrões, rentistas, usurários, atravessadores) na qual as pessoas, articulando suas capacidades de trabalho e necessidades de consumo, realizam juntos/as toda a variedade de atividades necessárias para a vida em sociedade. 

As iniciativas dos/as trabalhadores/as de criar empresas associativas para atuar coletivamente são tão antigas e presentes que permitem a ver a Economia Solidária como vertente da luta histórica dos/as trabalhadores/as de resistência ao avanço do capitalismo. Na fundação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, seus/suas trabalhadores/as afirmaram: 

Nos primórdios do capitalismo, as relações de trabalho assalariado […] levaram a um tal grau de exploração do trabalho humano que os(as) trabalhadores(as) organizaram-se em sindicatos e em empreendimentos cooperativados. Os sindicatos como forma de defesa e conquista de direitos dos/as assalariados/as e os empreendimentos cooperativados, de autogestão, como forma de trabalho alternativa à exploração assalariada. (Carta de Princípios do FBES, 2003)

Embora sindicatos e cooperativas tenham surgido na mesma época e com finalidades complementares na luta dos/as trabalhadores/as, Paul Singer (2002) argumentou que as conquistas do movimento sindical ofuscaram a forma associativa de luta contra o assalariamento:

Este avanço […] debilitou a crítica à alienação que o assalariamento impõe ao trabalhador. Em vez de lutar contra o assalariamento e procurar uma alternativa emancipatória ao mesmo, o movimento operário passou a defender os direitos conquistados e a sua ampliação. (p.109)

É necessário, portanto, perceber a Economia Solidária como parte da luta dos/as trabalhadores/as e reconhecer que ela assume um lado na luta de classes, o lado dos/as trabalhadores/as que constroem uma alternativa ao capitalismo. Voltemos à Carta de Princípios da Economia Solidária no Brasil: 

A Economia Solidária ressurge hoje como resgate da luta histórica dos(as) trabalhadores(as), como defesa contra a exploração do trabalho humano e como alternativa ao modo capitalista de organizar as relações sociais dos seres humanos entre si e destes com a natureza. (Carta de Princípios do FBES, 2003)

Neste sentido, entendemos a Economia Solidária como movimento social de resistência ao avanço do capitalismo:

É preciso caracterizar a Economia Solidária como um movimento de segundo grau, que atrai, põe em rede e aglutina, trabalhadores/as de outros movimentos sociais, com reivindicações e processos organizativos próprios: trabalhadores assentados da reforma agrária, atingidos por barragens, pescadores, ribeirinhos, agricultores familiares, trabalhadores de fábricas recuperadas, catadores de resíduos urbanos, artesãs, artistas de rua, usuários de serviços de Saúde Mental, membros de comunidades tradicionais se encontraram e, de alguma forma, amalgamaram suas lutas na Economia Solidária. (Andrada & Esteves, 2017, p. 177)

Por fim, defendemos que a Economia Solidária pode também ser definida como uma utopia concreta anticapitalista que, ao ser realizada pelos trabalhadores/as em muitos lugares e épocas, demonstra que outra realidade não só é possível, mas que também  acontece. 

Por consistir em um outro modo de trabalhar, produzir, obter crédito e comercializar, a Economia Solidária é, em suas origens, princípios e bases, uma ética e uma prática francamente anticapitalista. Um movimento social de resistência ao capitalismo tramado nas fendas do sistema, por trabalhadores dele excluídos ou em franca recusa às mazelas do assalariamento, com vistas a superá-lo. (Andrada & Esteves, 2017, p.176)

Ninguém melhor que uma trabalhadora do movimento apresentar o poder que viver a Economia Solidária entrega à possibilidade de sonhar. Ouçamos a costureira Nelsa Nespolo, trabalhadora da cooperativa Unidas Venceremos, de Porto Alegre:

Provar que a gente é capaz de ter o controle de todo o processo de produção. Os trabalhadores organizados em Economia Solidária, de forma coletiva. Isso é mexer na estrutura da sociedade. Isso é você de fato construir algo que o capitalismo não te tira, nenhum outro sistema te tira. É importante pra gente, é importante pro mundo. Tu pode acreditar que o mundo pode mudar, não só nas belas palavras, mas porque está mudando aqui, e porque também ele está mudando numa dimensão maior. Nelsa Nespolo, Cooperativa Univens. (Andrada & Sato, 2014, p. 12).

Até aqui vimos a Economia Solidária como prática, como movimento e como utopia. Vimos que o propósito dos/as trabalhadores/as do movimento não é criar uma economia paralela ou um setor da economia, mas sim substituir a economia capitalista por uma economia dos/as trabalhadores/as

Somente é possível vislumbrar essa possibilidade radical pois, na visão de Paul Singer, a Economia Solidária pode ser entendida como um modo de produção:

A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação destes princípios une todos os que produzem em uma única classe de trabalhadores que são possuidores do capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. (Singer, 2002, p. 10.)

Na Economia Solidária os trabalhadores/as associados/as detém, controlam e governam os meios de produção por meio de associações ou cooperativas, ambas sociedades de pessoas. A unidade entre posse, controle e uso dos meios de produção significa que os/as membros são sócios, trabalham e governam sua empresa. Significa também a integralidade dessa condição de sócio-trabalhador-administrador, ou seja, que não deve existir membros parciais, apenas sócios ou apenas trabalhadores ou apenas administradores.

A economia solidária casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição com o princípio da socialização destes meios. (…) O modo solidário de produção e distribuição parece à primeira vista um híbrido entre capitalismo e a pequena produção de mercadorias. Mas, na realidade, ele constitui uma síntese que supera a ambos. (Singer, 2000, p.13)

Essa formulação guarda o tesouro de um inédito viável, o projeto de uma economia em que trabalhadores/as-consumidores/as, livremente unidos por meio de associações e cooperativas, podem autogovernar todo o processo de produção, consumo e crédito, sem intermediários. Essa constitui a maior radicalidade da Economia Solidária como projeto de outra economia.

Porém, para compreender em detalhe o Projeto da Economia Solidária será preciso, antes, falar novamente do capitalismo. Para Paul Singer, 

O capitalismo é um modo de produção cujos princípios são o direito de propriedade individual aplicado ao capital e o direito à liberdade individual. A aplicação destes princípios divide a sociedade em duas classes básicas: a classe proprietária ou possuidora do capital e a classe que (por não dispor de capital) ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade (Singer, 2002, p.10).

O sistema capitalista foi estabelecido para manter ricos os que já são ricos, a classe possuidora de capital, por meio do recebimento de lucros, juros e rendas pagos pelo conjunto das atividades da economia, ou seja, ao fim e ao cabo, pagos pelo trabalho. No capitalismo há um ato que caracteriza o sistema econômico: a obtenção de excedente, seja pela extração de mais valia (trabalho não pago) ou de lucro, comercial ou financeiro. Nas empresas capitalistas o excedente gerado é utilizado para pagar os lucros dos sócios ou acionistas, os juros dos investidores e a renda imobiliária dos proprietários. Todo o sistema econômico capitalista é regido e medido por essa lógica, a tal ponto de a eficiência das empresas ser confundida com a lucratividade dos negócios. 

Se o propósito da Economia Solidária é ser o inverso do capitalismo, ou seja, um sistema econômico que produza igualdade ao distribuir a propriedade do capital diretamente onde o valor é gerado nas empresas, então é necessário que exista algo diferente entre as empresas dos/as trabalhadores/as e suas congêneres capitalistas. Pois bem, no interior das empresas dos/das trabalhadores/as ocorre um ato econômico que fundamenta a Economia Solidária como sistema econômico, trata-se do ato cooperativo. Em sentido amplo, o ato cooperativo é a própria atividade solidária, de ajuda mútua e sem fins de lucro, de pessoas que se associam para satisfazer necessidades comuns. 

Lembremos que associações e cooperativas são sociedades de pessoas, democráticas (um voto por pessoa) e que, embora tenham atividade e finalidade econômica, elas não têm fins de lucro. Ou seja, cooperativas e associações são criadas justamente para substituir intermediários capitalistas (comercial, trabalhista ou financeiro) por meio da solidariedade econômica. É essa “substituição” que recebe o nome de ato cooperativo. 

Embora fundamental, o ato cooperativo é tão simples que geralmente é negligenciado e subestimado em sua capacidade explicativa. Ele pode ser assim descrito: os/as trabalhadores/as aplicam coletivamente sua força de trabalho aos seus meios de produção e obtém um resultado que -descontado o pagamento de insumos, serviços e impostos- pertence integralmente ao coletivo de trabalhadores/as. Essa simples equação explica a presença da palavra solidariedade pois, ao não extraírem excedentes dos/as trabalhadores/as, suas empresas não produzem a desigualdade. Dito de outro modo, ao pagarem aos/às trabalhadores/as todo o valor gerado por seu trabalho, essas empresas produzem solidariedade.

Existem apenas três modalidades de ato cooperativo: um relacionado ao trabalho, pelo qual a solidariedade substitui intermediários trabalhistas (empregadores); outro ao comércio (compra e/ou venda), em que a solidariedade substitui intermediários comerciais (atravessadores); e outro às finanças, no qual a solidariedade substitui a intermediação bancária (realizada por agiotas, bancos ou financeiras). 

Agora, tendo em consideração o ato cooperativo em suas três modalidades, podemos finalmente detalhar o Projeto da Economia Solidária em quatro atividades fundamentais:

1) Trabalho: os/as trabalhadores/as se unem para deter, controlar e usar coletivamente os meios de produção, a exemplo das empresas recuperadas pelos/as trabalhadores/as, das cooperativas de trabalho autênticas (que não comercializam mão-de-obra), e dos coletivos de trabalho em geral, presentes em todos os segmentos econômicos (agricultura, reciclagem, vestuário, manufatura, alimentação, serviços de cuidado, saúde, educação, entre outros);

2) Comercialização: produtores/as se unem para vender coletivamente seus produtos e serviços, a exemplo das associações e cooperativas de produção e de comercialização que existem em todos os segmentos econômicos. Aqui é importante frisar que a produção pode não acontecer somente no interior da empresa solidária, pois muitas vezes ela inicia antes, na atividade familiar ou individual, ao exemplo das associações e cooperativas de pesca, de extração, de coleta, de agricultura familiar, entre outros; 

3) Consumo: consumidores/as se unem para adquirir coletivamente produtos e serviços. Neste item, a forma de organização varia conforme a durabilidade da relação comercial (esporádica, durável ou permanente). São exemplos as cooperativas de plataforma (promovem a compra de produtos e serviços diversos) as cooperativas de infraestrutura (provém saneamento básico, eletricidade e gás, telefonia, Internet, entre outros) e as cooperativas de habitação (constroem e administram moradias); 

4) Financiamento: trabalhadores/as e consumidores/as se unem para prover coletivamente serviços financeiros de poupança e crédito, a exemplo dos bancos comunitários, cooperativas de crédito e fundos rotativos. Aqui cabe dizer que prover um meio de financiamento solidário das atividades econômicas dos trabalhadores/as-consumidores/as é um pilar central encontrado em todo projeto bem sucedido de economia solidária relacionado com desenvolvimento local e/ou regional. 

Ressalvas necessárias

Uma das maneiras de enfraquecer a luta pela construção de uma economia de trabalhadores/as e consumidores/as é ocultá-la, tornando-a invisível e inaudível ao confundi-la com as propostas do momento. Atualmente estão na moda propostas de outras “economias” -criativas, circulares, do compartilhamento, do conhecimento, entre outras. Ao aproximar a economia dos/as trabalhadores/as de tais conceitos, sem as devidas ponderações, a Economia Solidária não se renova ou revigora, como gostariam alguns, pelo contrário, seus limites e contornos se tornam indefinidos, aparentemente imprecisos, e a força de suas experiências é enfraquecida. 

Contudo, ao nosso ver, as confusões mais danosas à Economia Solidária são duas antigas conhecidas, a informalidade e o empreendedorismo. É fundamental dizer que:

– A Economia Solidária não é informal. Ela é uma luta contra a informalidade. Certamente há muitos coletivos de trabalho informais na Economia Solidária, podem ser agrupamentos transitórios, formados por trabalhadores/as que se unem para realizar um evento, como uma feira ou um festival, ou coletivos de trabalho solidário que emergem no interior de atividades informais preexistentes, no seio de relações de trabalho familiares ou comunitárias. Porém, a Economia Solidária não é um campo de relações de trabalho informais e precárias em si, mas o seu oposto: representa, no interior da viração familiar ou individual, a busca e experimentação de formas organizativas coletivas que possibilitem a conquista do direito ao trabalho associado digno, formal e regulado.

– A Economia Solidária não é o empreendedorismo, mas seu contrário. Enquanto o discurso empreendedor veicula o heroísmo, enfatizando a capacidade individual, o “espírito empreendedor” e o “comportamento proativo” como fundamentais para a superação de dificuldades estruturais que são tratadas como problemas de ordem pessoal ou subjetiva, a ética solidária entende que a emancipação social, econômica ou política só é possível coletivamente, a partir do reconhecimento recíproco e da luta coletiva pela transformação das condicionantes estruturais que possibilitam a dominação e produzem a pobreza. Em outras palavras, enquanto a “ética do herói” incentiva a superação individual da pobreza por meio da competição de todos contra todos, a “ética da coletividade” promove a solidariedade como condição para a transformação social, política e econômica.

Ocupar e resistir para usar, produzir e consumir

Talvez o lema “ocupar, resistir, produzir” seja o que melhor caracterize este movimento social de luta emancipatória da classe trabalhadora, que põe lado a lado a luta pela terra, pela reforma agrária, pela regularização fundiária, pela recuperação de fábricas pelos trabalhadores, por condições dignas de trabalho de catadores/as de materiais recicláveis, pescadores/as artesanais ou quebradoras/es de coco de babaçu ou, ainda, a luta pelo reconhecimento das formas tradicionais de vida, produção e reprodução social de comunidades de terreiro, quilombolas, indígenas ou ribeirinhas. 

Para sintetizar, pode-se dizer que a Economia Solidária é um modo de produção, distribuição, consumo e financiamento construído no seio do movimento internacional de luta coletiva dos/as trabalhadores/as contra a opressão e a dominação capitalista e também no cotidiano de trabalhadores/as concretos, com suas necessidades e capacidades particulares. A Economia Solidária é uma vertente legítima dessa luta, suas armas ou ferramentas são controle coletivo e autogestão dos meios de produção, consumo e crédito. Embora reserve um sentido utópico, esse outro modo de produção não é um sonho, ele existe e acontece na prática cotidiana de trabalho coletivo e gestão democrática das empresas dos/as trabalhadores/as. Ele cresce silenciosamente nas brechas do sistema e, por vezes, derruba alguns de seus muros.

Referências

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SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

* Egeu Esteves é psicólogo, doutor em Psicologia Social pela USP e professor na Unifesp. Cris Andrada é psicóloga, doutora em Psicologia Social pela USP e professora na PUC-SP.

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Para grandes mudanças sistêmicas, além dos grandes e barulhentos momentos históricos de ruptura (as chamadas revoluções), é preciso também de mudanças aparentemente mais silenciosas e profundas na lógica de vida de uma sociedade. Foi assim no capitalismo e isso terá de acontecer para que possamos construir uma transição que chegue ao Socialismo. O destino e o caminho seria a livre associação dos trabalhadores, algo que parece óbvio taticamente, mas que ainda não figura na estratégia de muitas organizações de esquerda. Quem anuncia a Revolução Silenciosa de um socialismo autogestionário é Newton Rodrigues.

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