Para grandes mudanças sistêmicas, além dos grandes e barulhentos momentos históricos de ruptura (as chamadas revoluções), é preciso também de mudanças aparentemente mais silenciosas e profundas na lógica de vida de uma sociedade. Foi assim no capitalismo e isso terá de acontecer para que possamos construir uma transição que chegue ao Socialismo. O destino e o caminho seria a livre associação dos trabalhadores, algo que parece óbvio taticamente, mas que ainda não figura na estratégia de muitas organizações de esquerda. Quem anuncia a Revolução Silenciosa de um socialismo autogestionário é Newton Rodrigues.

Por Newton Rodrigues *

A revista Alternativas Solidárias, a Revolução Silenciosa é lançada no mesmo ano em que a Comuna de Paris completa 150 anos. Trata-se de um marco na luta dos trabalhadores pela autogestão que uniu diferentes correntes de pensamento e teve caráter internacionalista. Karl Marx e Mikhail Bakunin convergiram no apoio ao governo dos trabalhadores que durou apenas 72 dias, mas o suficiente para ser uma referência. Exerceu influência sobre outros movimentos revolucionários, como o de Maio de 68 em Paris que começou com os estudantes e se expandiu para outros países, assim como a Revolução Russa de 1917. Assim, esses três eventos que marcaram a trajetória da luta dos trabalhadores se inspiraram no pensamento do pai do socialismo científico e dos pensadores do anarquismo.

Na Proclamação da Comuna de Paris observa-se a autogestão como organização da sociedade que se queria construir, com os trabalhadores organizados em conselhos, gerindo serviços públicos e os meios de produção. No movimento de Maio de 68, também emerge a luta pela autogestão. Quanto à Revolução Russa, a sua base ideológica foi o pensamento de Marx. No entanto, é inegável a influência dos socialistas utópicos. O caso mais notável refere-se ao de Nikolai Tchernichevski, autor do livro “O que Fazer?”, escrito em 1862 e publicado em 1863. O autor é considerado o líder da nova geração de socialistas russos nos anos 1860, segundo Jacqueline Russ, autora de “O Socialismo Utópico”.

Tchernichevski publicava artigos em jornal que contestavam o governo czarista e faziam propaganda de seu grupo político, identificado como democratas socialistas. Foi preso em São Petersburgo com base em documentos falsificados pelo Ministério do Interior. No período que antecedeu o seu julgamento, solicitou autorização para escrever um livro. Em quatro meses escreveu um romance e a censura czarista não encontrou qualquer vestígio de ideias revolucionárias naquele texto. No entanto, esse livro incendiou a juventude russa aumentando a mobilização por mudanças, tendo influência direta na Revolução de 1917. Posteriormente, Lênin publicou “O que Fazer?”, com o título sendo um reconhecimento à importância da obra de Nikolai Tchernichevski.

Vera Pavlovna, personagem central da história que os censores do Czar entenderam como um simples romance inofensivo à ordem estabelecida, rompe com as imposições de um casamento arranjado com um homem rico e não abre mão de ser feliz da forma que entendia ser necessária, com liberdade. Constrói uma cooperativa de costureiras, proporciona oportunidades para outras mulheres e casa com quem deseja. Os demais personagens dedicam-se aos estudos, são solidários entre si e tratam-se com respeito.

Pavlovna é identificada por Georges Sourine no livro “Le Fouérisme em Russie” como adepta do pensamento do utopista Charles Fourier. Há dois elementos que o autor valoriza e mostram as bases de uma outra sociedade: a organização econômica de um empreendimento sem patrões ou vínculo com o Estado e posturas que expressam coerência com uma visão de mundo fundamentada na solidariedade em forma de reciprocidade e respeito. Em “O que fazer?”, a protagonista se emancipa com base nas suas escolhas e é respeitada por seu companheiro. Na sociedade sugerida, o patriarcado capitalista é superado. Ressalte-se que, apesar de ter motivado os trabalhadores e trabalhadoras à Revolução na Russa, a organização da economia do Estado Soviético foi centralizada e submetida ao comando partidário. Não houve qualquer estímulo à autogestão e, após a ascensão de Stálin ao poder, ocorreu um quadro de repressão que não se pode justificar.

Socializando os meios de autogestão

Claudio Nascimento, em seu livro “Do Beco dos Sapos aos Canaviais de Catende”, aborda as lutas e experiências autogestionárias na trajetória da humanidade. Beco dos Sapos faz referência ao local onde foi criada a Sociedade Equitativa dos Pioneiros de Rochdale, que emergiu da luta de tecelões no ano de 1844, em Manchester (Inglaterra). Considera-se esta cooperativa como pioneira na era moderna e seus princípios inspiram o cooperativismo popular até a atualidade.

Já Canaviais de Catende é uma citação à experiência autogestionária em uma usina no estado de Pernambuco. No entanto, o ponto de partida da abordagem que faz o autor são as experiências do século XVII e a chegada às do século XXI, com passagem pelo Leste Europeu entre as décadas de 1950 e 1980.

Nascimento cita Walter Benjamin sobre o fato de a luta dos trabalhadores não ter consolidado um modelo de autogestão que perdurasse: “a história dos oprimidos é marcada pela descontinuidade e a dos opressores pela continuidade”. Assim, emerge a questão: como atuar para construir sociedades com organizações duradouras que promovam a emancipação dos trabalhadores com base na superação do capitalismo?

O desaparecimento do chamado campo socialista na Rússia e Leste Europeu a partir de 1990 ampliou a lacuna dos partidos de esquerda brasileiros quanto à ausência de um modelo de socialismo a ser adotado, por mais que se afirmasse que havia distanciamento político em relação àquelas experiências.

Em 1999, uma década após a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), por solicitação de Lula, o professor Antônio Cândido iniciou a organização dos “Seminários Socialismo e Democracia”, que foram realizados em 2000. Para o ex-presidente, em texto publicado no livro “Economia Socialista”, o objetivo desses eventos era “discutir o que queremos entender como socialismo hoje, para o Brasil e para o mundo. E que não exista, de nossa parte, qualquer concepção prévia de socialismo e de como alcançá-lo”. Segundo Antônio Cândido, o debate sobre o socialismo era necessário pelo fato de haver muitas dúvidas após a derrocada da União Soviética e a descaracterização da social-democracia europeia. Para o professor, “o socialismo é algo mais vasto que suas manifestações históricas e continua a ser o caminho mais adequado às lutas sociais que tenham como finalidade estabelecer o máximo possível de igualdade econômica, social e educacional como requisito para a conquista da liberdade de todos e de cada um”. Afirmava, ainda, que estudar e debater o socialismo era necessário ao PT, para evitar o risco de perder a sua bússola ideológica na dispersão das necessárias operações táticas.

O primeiro tema a ser abordado na série de seminários foi intitulado “Socialismo no ano 2000: uma visão panorâmica”. Nesse evento, Marilena Chauí afirmou que não há socialismo sem a socialização dos meios de produção. Essa frase foi lembrada pelo Professor Paul Singer no segundo seminário, denominado “Economia Socialista”. Aparentemente óbvia, a afirmação da professora nos remete às seguintes questões: como seria a organização da economia em uma sociedade socialista? Como construí-la? Para Singer, os clássicos definem a economia socialista como constituída pela livre associação dos trabalhadores. Portanto, não há mais-valia.

Socializar os meios de produção não pode ser interpretado como submetê-los a um único centro de poder. O professor sugere que se deve construir um socialismo autogestionário, fundamentado nas relações de reciprocidade, com os meios de produção sob a gestão dos trabalhadores e não do Estado.

O professor denominou este tipo de organização da economia como Economia Solidária, ou seja, um conjunto de iniciativas socioeconômicas privadas de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito, comumente de natureza cooperativista e associativista, autônomas em relação ao Estado, fundamentadas na reciprocidade e autogestão. A Economia Solidária representa a democratização da economia, pois os meios de produção são dos trabalhadores que, ao mesmo tempo, fazem a gestão. Nesse tipo de economia os integrantes se empenham para realizar todas as atividades do empreendimento econômico solidário, seja uma associação, cooperativa ou grupo informal. Não há discriminação racial, étnica, etária ou de gênero. Paul Singer, no livro “Ensaios Sobre a Economia Solidária”, afirma que em seu processo de construção, o socialismo autogestionário proporciona o aumento de postos de trabalho. Esse fato pode reduzir o contingente de reserva da força de trabalho, o que melhora as condições de luta dos trabalhos empregados.

Polanyi e Rosa como referências para uma nova “Grande Transformação”

Em entrevista para a professora Isabel Loureiro e colaboradores publicada no livro “Socialismo ou Barbárie: Rosa Luxemburgo no Brasil”, Paul Singer afirma que, para ele, socialismo é sinônimo de Economia Solidária e que o socialismo democrático proposto por Rosa Luxemburgo deve ser considerado ao ressaltar a contemporaneidade do pensamento da revolucionária polonesa.

A revolucionária polonesa afirma em seu livro “A Acumulação do Capital”, de 1913, que o capitalismo para se viabilizar depende de expansão, com a incorporação de outros territórios e outras economias à sua lógica, visto que em um país capitalista existem modos de produção não capitalistas. Essa afirmação continua atual, considerando, por exemplo, a destruição da Amazônia, a invasão de terras indígenas pelo agronegócio, madeireiras e mineradoras. Essa expansão também ocorre com a privatização do Estado e a desregulamentação das leis trabalhistas com a “uberização” da sociedade. Enfim, a lógica da acumulação é o principal fator de manutenção do sistema capitalista desde a sua emergência. David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”, destaca que o processo de acumulação primitiva apontado por Karl Marx se aperfeiçoa ao longo do tempo e se torna uma acumulação por espoliação. Afirma ainda que a forte onda de financeirização, dominada pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973, foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório.

Fundamentado na mesma interpretação de Rosa Luxemburgo de que no sistema capitalista não existem somente patrões e empregados, Karl Polanyi publicou o livro “A Grande Transformação” em que detalha os princípios do sistema econômico capitalista. Para o autor, o sistema econômico é integrado por quatro princípios: maximização do lucro; redistribuição; reciprocidade e gestão familiar. O primeiro representa as empresas capitalistas. O segundo, o Estado, que arrecada impostos para redistribuir à sociedade em forma de serviços. No terceiro princípio inserem-se, sobretudo, as cooperativas e associações com atividade econômica, o que constitui a Economia Solidária. O quarto princípio representa os pequenos empreendimentos de gestão familiar, que expressam a economia popular, onde também não há patrão e empregado, como a agricultura familiar, por exemplo. Assim, produção, distribuição e comercialização são realizadas de diferentes formas quanto à gestão e têm objetivos específicos.

O Socialismo autogestionário realmente existente

O fortalecimento de modelos agroecológicos de produção se fundamentam atualmente no Brasil nos princípios gestão familiar e reciprocidade, principalmente com a organização de grupos de consumo de produtos da Agroecologia que colocam em relação direta o campo e a cidade em circuitos curtos. Como exemplo, há o Livres que já está organizado em Campinas, São Paulo, Baixada Santista e Porto Alegre e valoriza alimentos que são resultado de uma economia sem patrões, agrotóxicos, atravessamento ou exploração. Certamente se trata de uma iniciativa de Economia Solidária, de implante do socialismo autogestionário no seio do capitalismo. Pode-se citar ainda a Cooperativa Central Justa Trama, que é integrada por um conjunto de empreendimentos econômicos solidários situados em cinco estados brasileiros colocados em relação pela solidariedade em forma de reciprocidade. Há cerca de 500 cooperados que são agricultores familiares que produzem algodão sem agrotóxicos, coletores e beneficiadores de sementes, fiadores, tecedores, artesãs e costureiras. Integra também a cooperativa um banco comunitário. Estes bancos representam uma forma concreta de promoção do desenvolvimento local com base nas riquezas geradas nas comunidades, que deixam de ser drenadas para o sistema financeiro dos capitalistas para serem utilizadas no financiamento de empreendimentos econômicos solidários.

A proposta de Paul Singer é construir o socialismo autogestionário ao longo do tempo, com o fortalecimento do princípio reciprocidade do sistema econômico até que se torne o modo de produção dominante. Para o Professor, o desafio é construir um sistema reconhecido como melhor que o capitalismo, que ganhe adeptos, até que não haja mais pessoas interessadas em serem patrões ou empregados.

No livro “Paul Singer: democracia, economia e autogestão”, escrito por Aline Mendonça e Cláudio Nascimento, há a apresentação das oito hipóteses do professor Singer para um socialismo via autogestão. A quarta hipótese tem um caráter gramsciano: “Para que o modo de produção socialista algum dia se torne hegemônico, a instituição de uma superestrutura política, jurídica e cultural socialista terá de ser precedida da conquista de competência gerencial e domínio da tecnologia por parte de numerosos trabalhadores socialistas”.

Cuba em Transição Solidária?

Cuba reproduziu o modelo econômico soviético após a Revolução, certamente devido aos ataques e bloqueio econômico em ampla escala territorial, mantendo as atividades econômicas sob a gestão do Estado. Somente a partir de 2006, iniciou um processo de “atualização do socialismo” com o apoio ao trabalho autônomo de 201 profissões, inclusive possibilitando a instalação de restaurantes privados de gestão familiar. Posteriormente, em 2011, com base nas resoluções do VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, estimulou a ampliação do número de cooperativas – atualmente, são 500 cooperativas urbanas ao todo.

O governo cubano aposta na pluralidade da economia para a sua dinamização, com destaque para o fortalecimento do trabalho associado para produzir, distribuir e prestar serviços. No entanto, é importante ressaltar que Cuba jamais deixou de envidar esforços para construir o que Che Guevara definiu como Homem Novo e transformou esse objetivo em uma prática pedagógica e militante. Para Che, a formação no país deveria priorizar nos cubanos o pertencimento coletivo, com uma postura humanista, com fundamentação na simplicidade, organização e disciplina; sendo determinante o desprendimento do individualismo para a realização de trabalhos voluntários. Ele mesmo os realizava e até hoje há, nas escolas, estímulo para a sua adoção. O fato de o Estado cubano ter priorizado esse tipo de educação certamente facilita a migração dos servidores de empresas estatais para serem integrantes de cooperativas.

As Revoluções Silenciosas

Para Bénédicte Manier, no livro intitulado “Un Million de Révolutions Tranquilles”, as experiências fundamentadas no cooperativismo e autogestão são muitas em todo o mundo, que comumente são organizações que se baseiam nos princípios e valores da Economia Solidária.

Considerando somente as cooperativas, são gerados no mundo 100 milhões de postos de trabalho, representando 20% mais que todas as multinacionais. No Canadá e Noruega 33% da população está vinculada à Economia Solidária. Em Cingapura e Nova Zelândia 50% da população integra algum tipo de cooperativa. A Itália tem 83 mil cooperativas, enquanto a Bélgica possui 29.900 e os EUA outras 30 mil. Neste país, geram 2 milhões de postos de trabalho. No Equador a Economia Solidária representa 50% dos postos de trabalho e 30% do PIB. Na França há 1 milhão de postos de trabalho vinculados à Economia Solidária. No Japão as cooperativas de universitários são integradas por 1,3 milhão de jovens. Na Argentina existem 12.600 cooperativas que geram 233 mil postos de trabalho. Neste país, em 2004, havia 161 empresas recuperadas, sendo que em 2010 eram 240. Na Colômbia, a Economia Solidária é adotada para a organização da economia em áreas rurais pós-conflito, de acordo com a Unidad Administrativa Especial de Organizaciones Solidarias. Em 2008, no Québec (Canadá), o percentual de sobrevivência de cooperativas de produtores após dez anos de funcionamento era de 70% aproximadamente. Já nas empresas privadas era de 18%.

Segundo Claude Dorion em “Ecossistema de Financiamento da Economia Social do Québec”, trabalho apresentado na VI Conferência Internacional sobre Pesquisa em Economia Social e Solidária em Manaus, esse fato se deve às redes de assessoramento técnico e organizacional aos empreendimentos econômicos solidários, que aumenta a capacidade de inovação para superar as crises cíclicas do capitalismo.

Para se construir uma sociedade em que os meios de produção estejam sob a gestão dos trabalhadores organizados em cooperativas e o Estado seja administrado com ampla participação popular, deve-se adotar o socialismo autogestionário como objetivo tático e estratégico. A Economia Solidária é mais do que uma forma de organização da economia, trata-se de um processo pedagógico que se constrói cotidianamente. Fortalecer a lógica trabalho/renda dos trabalhadores associados e não a do emprego/salário da relação patrão – empregado, é promover melhores condições de vida no presente com a preparação dos trabalhadores para uma caminhada consistente e consciente para uma transformação mais ampla – social e política – para a gestão do Estado. Assim, o socialismo autogestionário permite transformar o presente e apontar para o futuro.

As políticas públicas de Economia Solidária em interação com as organizações feministas podem proporcionar inclusão plena das mulheres, com geração de renda e apoio mútuo para o enfrentamento das opressões. Este fato é confirmado quando se observa que o número de mulheres nos empreendimentos econômicos solidários é expressivo. Importante citar que a Comuna de Paris e a Revolução Russa também foram iniciadas pela ação das mulheres.

A Economia Solidária é construída de baixo para cima, agrega as lutas sociais e ambientais, se apresenta como a antítese do projeto neoliberal e representa a construção de um socialismo autogestionário. Por isso, deveria ser assumida por todos os movimentos e partidos políticos comprometidos com a construção de uma sociedade fraterna, justa e igualitária.

Que o poder seja de fato exercido pelos trabalhadores. O socialismo somente é possível se for autogestionário, fundamentado na democracia e se fizer a humanidade chegar ao encontro da liberdade.

* Newton José Rodrigues da Silva é graduado em Zootecnia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; doutorado em Halieutique – École Nationale Supérieure Agronomique de Rennes (França); doutorado em Aquicultura pelo Centro de Aquicultura da Unesp; extensionista e membro da secretaria executiva do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista.