A Justa Trama conecta mais de 500 trabalhadoras e trabalhadores espalhados por cinco estados – Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rondônia e Rio Grande do Sul, atuando em rede na cadeia de processamento do algodão, gerando trabalho, renda e regeneração ambiental em seus territórios. Por meio dela, plantio, fiação, tecelagem, coleta de sementes para confecção de botões e adornos, serigrafia, bordado e tingimento formam um circuito solidário por fora da lógica capitalista desde a semente até nossos guarda-roupas. A Justa Trama mostra que costurar outra economia baseada em desenvolvimento local – diferente daquele que só extrai, impacta e desagrega – é possível.
Por Nelsa Nespolo *
Não há dúvida que a Economia Solidária (Ecosol) é uma estratégia de desenvolvimento, especialmente no século XXI e na conjuntura em que vivemos, com um governo genocida que debocha da vida humana. Agravando esse quadro, um tempo de pandemia que já matou mais de 400 mil brasileiras e brasileiros que estavam cheios de vida. A consequência disso são os mais de 14 milhões de pessoas desempregadas e 6 milhões que desistiram de procurar trabalho, os 27,2 milhões de brasileiros (as) na miséria absoluta, vivendo com menos de R$ 8,20 por dia e, também, a explosão no número de bilionários do mundo – cerca de 660 novos super-ricos, que totalizam 2755 pessoas possuidoras de mais de 1 bilhão de dólares no mundo.
A Ecosol tem uma trajetória ainda curta de vida, porém se fortalece especialmente a partir da década de 1990, quando haviam cerca de 869 empreendimentos econômicos solidários (EES). Em 2020 pulamos para quase 20 mil empreendimentos. A Ecosol cresceu não só no Brasil, mas na América Latina, surgindo com uma influência forte da Igreja Católica, especialmente da Teologia da Libertação, e se fortalece sobretudo com governos populares e suas políticas públicas.
Apesar das várias experiências de políticas públicas, majoritariamente a nível dos municípios, em âmbito nacional a Ecosol surge com força a partir de 2002 com a eleição do presidente Lula, um trabalhador metalúrgico que tem conhecimento da Ecosol e do cooperativismo e cria a partir da demanda do movimento, uma Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES). Foi um período de fortes discussões, com dificuldades de lidar com o novo cenário em dois aspectos: de um lado está na gestão pública, que em alguns momentos se sente no controle das definições, e do outro lado está o movimento querendo fazer valer suas posições.
Apesar de muitas vezes as discussões serem acirradas, tal fato reflete também o bom debate. Não foram poucos os momentos de confronto e do não consenso como por exemplo a definição das organizações que comporiam o Conselho Nacional de Economia Solidária, ou na dinâmica do primeiro encontro nacional de EES e até mesmo a proposta de inclusão ou não do artigo 7º na nova lei das cooperativas de trabalho. Tarefa difícil.
Por que? Será que temos interesses diferentes? Ou será que temos visões diferentes? O papel do Estado é visto diferente por quem esta na gestão em relação aos que estão na ação?
A construção
A busca de fazer valer uma outra Economia acontecer nos trouxe ao encontro das políticas públicas, frente que veio com força nos últimos 20 anos também na América Latina, especialmente com a eleição de governos populares em seus países. A maioria das constituições ou leis destes países não contemplam a Ecosol, e a formação das equipes de governo nem sempre estão convencidas quanto a Economia Social e Solidária.
Quem ocupa esses postos na gestão pública geralmente são pessoas que com muita força e boa vontade abrem caminhos para o fortalecimento da Economia Solidária, encontrando dificuldades para construir políticas de fomento direto aos EES, tais como: fundos de Economia Solidária, programas de compra de equipamentos e compras públicas, construção de infraestrutura e capital de giro. Na maioria das vezes se prioriza políticas de convênios de formação e articulação com entidades e Universidades. Com isso temos muitos processos de formação, e que muitas das vezes ficam aquém da prioridade dos EES que necessitam produzir, comercializar, representar, administrar, articular e ainda participar de momentos de formação. Essa formação geralmente ou quase nunca acontece dentro dos EES e esses precisam se deslocar. Isso não contribui para uma formação dos vários trabalhadores e trabalhadoras, restringindo tais iniciativas a um ou mais associados, além de também não ajudar trazendo a entidade ou universidade para mais perto da realidade de cada EES.
Muitas vezes, os conceitos aprofundados nos momentos de formação não são aplicados na prática do dia a dia, pois o sistema capitalista nos coloca sempre em contradição, inclusive no momento do consumo. E neste sentido está a maior contradição: consumir da Ecosol, do orgânico, do agroecológico. Enfim, não é uma prática fácil.
Política de Estado ou Política de governo?
A Ecosol consolidou um conceito: “precisamos de políticas de Estado para ter continuidade pois as políticas de governo se acabam quando troca de governo”. Quem já não ouviu esta afirmação? Será ela contraditória? Seria tal afirmação verdadeira?
As políticas de governo se apresentam em formato de programas, as políticas de Estado se apresentam em formato de leis. Portanto, cabe aos trabalhadores (as) lutar pela conquista das leis, lutar pela aplicação e lutar pela manutenção. Lutar e lutar sempre, pois a garantia de essas políticas acontecerem é se tivermos governos comprometidos com as causas dos trabalhadores, as causas da Ecosol. E ainda assim, devemos continuar lutando, já que esta é a diferença entre as conquistas e as derrotas. Depois desta caminhada, podemos afirmar que a Ecosol, para se consolidar e avançar, precisa de políticas de Estado e de governos populares. É esse encontro que faz a diferença e promove o desenvolvimento que a Economia Solidária defende.
Uma Justa Trama construindo economia e vida
A caminhada da Ecosol fortaleceu o conceito de organização. Só conseguiremos avançar para esta estratégia de desenvolvimento se nos articularmos em redes ou cadeias. Redes são o encontro desses EES que estão em uma mesma área ou setor econômico atuando: como é uma rede de artesanato, ou de costura ou mesmo de bancos comunitários. Cadeia é quando juntamos todos os elos em processo de produção: podem ser locais, como é a cadeia do mel, ou podem ser nacionais, como é a cadeia do algodão. Contudo, o que queremos com essa estratégia é fortalecer a Ecosol, e este modelo de desenvolvimento que não concentra renda, que produz cuidando do planeta e da vida.
Neste conceito temos a Justa trama: a cadeia do algodão agroecológico que surgiu a partir da experiência de produzir de forma coletiva 60 mil sacolas para o Fórum Social Mundial (FSM) em 2005. A Justa Trama, assim, amadureceu nos espaços da Unisol Brasil e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
Participam mais de 500 trabalhadores do Nordeste, Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil. Portanto, o algodão é plantado no Ceará e Mato Grosso do Sul, de forma consorciada e ecológica. Sem uso de agrotóxicos no plantio, toda a preservação é feita por meio de defensivos orgânicos, compostagens e com produtos naturais como o Nim. Os plantios agroecológicos consorciados são compostos por multiculturas como o gergelim, milho e o feijão, preservando o meio ambiente e a sustentabilidade dos agricultores. Paralelo a isso, nos últimos três anos o Governo Federal já liberou mais de 1100 agrotóxicos que antes eram proibidos e recusados em vários lugares do mundo.
Assim preservamos a vida e o planeta, já que o algodão convencional é responsável por 25% dos agrotóxicos do mundo aplicados nas plantações. Esse processo de preservação é feito também na fiação e tecelagem em Minas Gerais e na confecção no Rio Grande do Sul, mantendo os cuidados com o produto para que não se contamine com o convencional, além de serem aproveitados todos os retalhos. As sementes da Amazônia de Rondônia, que são nossos adereços e botões, são beneficiadas ecologicamente.
Não há intermediário ou atravessador nesta cadeia solidária e, portanto, todos recebem de forma justa, ou seja, desde o agricultor até a costureira todos ganham acima do que o mercado convencional paga. Assim, todas e todos que estão na cadeia fazem acontecer a distribuição de renda. O preço final de comercialização tem um valor agregado para garantir a sustentabilidade da cadeia, e no final do ano realizamos o balanço, onde parte das sobras são divididas entre os cinco elos, reforçando o desenvolvimento local das cinco regiões.
A Justa Trama é uma rede cooperativa de segundo grau formada por associações e cooperativas da Ecosol que realizam as várias etapas. A Justa Trama também é a marca das roupas, desde camisetas, saias, blusas, calças, bermudas, vestidos e colares, bonecas, bichos e adereços.
Resumindo, os principais valores desta cadeia é adquirir um produto que não tem agrotóxicos, com uma tecnologia limpa em todo o processo, diminuindo o uso dos já citados 25% de agrotóxicos que são jogados no planeta através do algodão convencional. Outro valor primordial é não ter atravessadores, o que permite que, desde o agricultor até a costureira, todas e todos ganhem de 50 a 100% pelo seu trabalho em relação ao valor de mercado. Assim, chegamos ao consumidor final em um valor justo e possível de ser adquirido inclusive pelos que estão no processo produtivo.
Precisamos do compromisso de cada um com a vida, a sua e a de todas e todos, pois só haverá ampliação do plantio do algodão agroecológico se todos optarem por uma forma de vestir ecologicamente correta, e só haverá consciência ecológica se também houver os que preconizam e construam consciência crítica sobre seu consumo. Precisamos intensificar as campanhas de informação ao consumidor, informando-o sobre quais são as fontes de onde vem o que ele vai vestir, assim formando um ciclo que transforma vidas.
São seis os elos dessa cadeia que forma a rede de desenvolvimento local da Justa Trama: Associação Adec, conjunto de quatro municípios do sertão do Ceará que cultivam o algodão; a Associação – AEFAF, dois núcleos de Assentamentos do Mato Grosso do Sul que cultivam o algodão rubi; a Coopertextil, cooperados por onde passa todo o acabamento dos tecidos, de Pará de Minas/MG; a Cooperativa Univens, costureiras que confeccionam, bordam, tingem e serigrafam as peças em série e fica em Porto Alegre/RS; a Cooperativa Açaí, artesãos que beneficiam as sementes e botões que são aplicados nas peças, e produzem bonecas de pano em Porto Velho/RO; e o Coletivo Inovarte, que produz os bichos de pano e jogos pedagógicos, também no Rio Grande do Sul.
Porque não fazemos todas as cadeias curtas e locais? Porque muitas vezes não existem empreendimentos no local para as várias etapas de produção dos produtos que consumimos, e na maioria das vezes nos falta o total conhecimento da tecnologia e mesmo os recursos de investimento para implantar todas as etapas próximas.
Essa caminhada da Ecosol já não deixa dúvida que não são as distâncias que inviabilizam, nem os custos de logística. As maiores dificuldades geralmente se localizam em nossa capacidade de articulação, investimentos e garantia de comercialização. A Justa Trama percorre 5 mil quilômetros do Brasil, e remunera de forma justa todos os processos, e mesmo assim, conforme pesquisa da PUC do Rio Grande do Sul, pratica o menor valor de venda de roupas de marcas orgânicas.
Na Ecosol, a grande maioria dos empreendimentos não têm domínio sobre as várias etapas: realizam a etapa inicial da cadeia como é o caso dos EES que estão na agricultura, e depois o mercado ganha realmente com a transformação e comercialização. Outro exemplo são os empreendimentos urbanos que geralmente estão na ponta final da cadeia e sofrem todo o tipo de dificuldade, já que a agregação de valores se concentrou nas etapas onde estão empreendimentos capitalistas, como é o caso da confecção, da construção civil e da alimentação.
A Ecosol, que hoje tem mais de 20 mil empreendimentos da Economia Solidária em quase todos os setores econômicos, urge construir uma estratégia de aproximação para esta outra economia, – a nova economia -, a que distribui renda, melhora a vida do povo, garante direitos, gera desenvolvimento local e preserva o meio ambiente. A economia gerada pelas pessoas e para as pessoas. A economia que respira vida. Que anseia pelo Bem Viver, pois como diria Paul Singer:
“A Economia Solidária se constrói nos interstícios que as crises inerentes ao capitalismo deixam desocupados. São empresas em crise “tomadas” pelos seus empregados e transformadas em cooperativas; terra deixada improdutiva que via reforma agrária é entregue a trabalhadores, que a cultivam em empreendimentos solidários; é o lixo que infesta as cidades que é reciclado por cooperativas de catadores, etc. O maior desafio é motivar e resgatar a multidão deixada à margem, fazendo-a ver que sua emancipação seja possível, desde que se tornem protagonistas dela.”
* Nelsa Inês Fabian Nespolo é costureira, militante da Economia Solidária, diretora presidente da Cooperativa Univens, da Justa Trama, da Unisol RS, sócia fundadora do banco comunitário Justa Troca e escritora dos livros Tramando Certezas e Esperanças e as Tramas da Esperança.