Em um mundo que vê seus recursos naturais se esvairem com rapidez nunca antes vista, são cada vez mais necessários métodos inovadores de lidar com o solo, a água e todas as formas de vida. Por isso, o surgimento da Agricultura Sintrópica como método de cultivo agroflorestal representou uma verdadeira transformação. A criação do suíço Ernst Götsch vem inspirando milhares de pessoas Brasil afora, entre elas um professor de Gravataí/RS, que mudou seu estilo de vida e a forma como analisa nossa existência nesse planeta. É esse “neorrural” que conta um pouco mais sobre esse método revolucionário.
Vicente Guindani *
Escrever foi, por muito tempo, mais do que um hábito: era uma atividade militante. Mas era algo resumido a jornais, panfletos, alguns documentos teóricos e teses. Participei dos movimentos estudantil e depois sindical, integrei fileiras de organizações de esquerda marxistas e trotskystas e fui dirigente do sindicato dos Correios. Então era natural ter opinião e sugerir linhas políticas para diversos assuntos.
Mas desde que me afastei da militância organizada, mesmo quando estive em sala de aula por quatro anos, escrever foi deixando de ser algo natural. Fui ficando com mais dúvidas, mais criterioso e silencioso, o que se acentuou após a pandemia e a vinda para o sítio. Só que não resisti à chance de falar sobre esse tema tão importante para mim.
Um mundo novo
Morar no campo e ser agricultor nunca foi um sonho meu. Até meus 30 anos eu sequer cogitava essa hipótese. Vivi em Porto Alegre/RS até 2019, quando minha rotina fora de casa se dividia entre dar aulas e fazer música com meus amigos da banda Expresso Livre. Sou pai de dois filhos e sempre encarei as rotinas e o lazer urbanos com naturalidade, como jogar bola na pracinha, ou juntar a galera para um jantar musical. Mas isso mudaria em breve.
Em meados de 2018, quando dava aula para o sétimo ano sobre geografia do Brasil, notei que minhas pesquisas sobre agronegócio e agricultura familiar me provocavam maior interesse, ao mesmo tempo em que alguns estudos pessoais e imersões em contextos místicos colocaram a mim e minha família em contato com culturas da floresta amazônica, práticas e ensinamentos que desse universo provém. Não demorou até conhecermos o conceito de Agrofloresta e, mais especificamente, o sistema de Agricultura Sintrópica desenvolvido por Ernst Gotsh. Nos inscrevemos, então, em um curso sobre o tema, com um dos alunos e discípulo de Ernst, Namastê Messerschimidt. E dali para a frente, não paramos mais.
Mas afinal, o que é a Agricultura Sintrópica?
O método desenvolvido por Gotsh desenvolve uma forma genuína, potente e maravilhosa de nos relacionarmos com o solo, com a água e todas as formas de vida. Coloca a perspectiva da abundância, da soberania alimentar e da dignidade do trabalho em confluência não só com a preservação, mas com a implantação, a multiplicação e a edificação de novas florestas – provavelmente a maior tarefa histórica que nossa geração tem pela frente. E poder construir florestas enquanto se gera renda e alimento saudável, poder misturar o plantio de árvores nativas e de lenha, espécies de reflorestamento, junto com árvores exóticas de valor comercial, como banana, bergamota, abacate e hortaliças diversas, é muito mais atrativo e, principalmente, viável.
O método de manejo é muito interessante, baseado em um conjunto de princípios gerais, mas não restrito a determinadas receitas ou desenhos específicos de plantio. O solo deve estar sempre coberto, seja por cobertura morta ou culturas vivas verdes, como capins e feijões e outras espécies de grande biomassa. Os recursos materiais que produzem energia e promovem a complexificação do sistema vivo estão dentro do próprio local de plantio e manejo. As podas das árvores e a roçada de capins e outras plantas de cobertura são acumuladas nas linhas de plantio em forma de cobertura morta, o que deixa o solo mais úmido e mais vivificado pela presença de diversas formas de microvida (fungos, bactérias, minhocas, formigas). É daí que surge o conceito de Sintropia, em contraste com a lógica e a lei da entropia, que mensura e explica a capacidade que as coisas têm de perder energia e se reorganizar a partir da desordem. A Sintropia seria, ao contrário, o fenômeno e a capacidade que as coisas têm de se complexificarem, e cooperarem para evolução e o aumento da presença de vida e energia a partir da interação de uma diversidade de elementos em um espaço.
A Sintropia coloca a cooperação em destaque e procura agir a partir dessa dimensão de leis presentes na natureza, sobretudo em florestas e ecossistemas biodiversos, através de um número infinito de interações entre seres vivos
Com isso, a Agricultura Sintrópica se caracteriza pela crescente acumulação de matéria orgânica e a formação de solo vivo ao longo do tempo, enquanto as árvores crescem perto umas das outras, com todos os andares desse espaço ocupados pelas espécies de diferentes tamanhos e necessidade de luz. A Estratificação das Árvores, o arranho e distribuição das baixas, médias, altas, de sol ou sombra, como se relacionam e cooperam no espaço, estão também se comunicando na dimensão do tempo, uma vez que em uma mesma linha de 20 metros se planta espécies, com diferentes tempos de amadurecimento. A consequência disso é a qualificação da saúde, proteção e informação de vitalidade para as espécies cultivadas.
Quando estamos plantando couve, cenoura, alface, rúcula, berinjela, ao lado de bananeiras, laranjeiras, abacateiros, ipê roxo, canjerana, araucária, eucalipto, cedro, jerivá, pitangueira, goiabeira, ou quando estamos plantando roça de aipim abóbora, feijão e milho ao lado de crotalária, feijão de porco, bananeiras, chacronas e guapuruvu, na verdade estamos erguendo uma nova floresta, onde antes havia um pasto degradado.
A regeneração, ou seja, a melhoria de um solo degradado por meio do trabalho e de um manejo comprometido com a vida acima de tudo, acaba se tornando fruto de um trabalho que é o acúmulo de experiências e verdades que encontramos fazendo agrofloresta. Trabalhar no sol, mas também na sombra, com frutas variadas, madeira, com rotação de culturas anuais em diversidade e consorciamento, tudo isso chega à mesa e enriquece o espírito do agricultor e agricultora. É o resultado do trabalho feito após uma grande reflexão: se precisamos plantar florestas, como fazer com que isso se torne atrativo e, principalmente, viável? Como fazer do plantio de árvores uma atividade que não seja apenas uma iniciativa ambiental voluntariosa de grande valor, mas também, um negócio interessante para empreendimento, de modo que seja cada vez mais replicável?
O método desenvolvido por Ernst solucionou essa questão de maneira competente, nos dando a possibilidade e o conhecimento prático para plantar as árvores para reflorestamento em alta densidade, e essas por meio das podas irão alimentar a vida no solo onde estão nossas frutíferas. Os gastos menores (rumo ao zero) com adubação e irrigação e a maior variedade e colheita pagam o reflorestamento, porque as árvores e seu manejo é que são os adubos. É como se fosse uma adubação cognitiva entre as plantas, uma transmitindo informações de crescimento ou obsolescência às outras.
É uma ferramenta profundamente transformadora e com potenciais múltiplos, especialmente diante do desafio de levar soberania alimentar a toda a população brasileira. A cultura da abundância e da diversidade, são alicerces da dignidade e boa autoestima tanto para quem produz o alimento quanto para quem o consome.
Florestaria Tarumim: comercialização e redes
A Florestaria Tarumim é um espaço de agricultura familiar, localizada em um sítio de família em Gravataí/RS, onde desenvolvemos estudos práticos em agroecologia, com foco na implantação de sistemas agroflorestais com frutíferas, lenhas e hortaliças. Iniciamos a comercialização de pequenas cestas de hortaliças no outono de 2019, e atualmente temos uma feira no centro da cidade, além de manter nossa rede de entregas em domicílio duas vezes por semana.
Graças aos cultivos de ciclos curtos, a geração de renda é acelerada. Usando a bergamota como exemplo, não precisamos aguardar por anos uma boa colheita de um pomar só dessa fruta, pois ao plantarmos a mesma com outras árvores, a roça e a horta, beneficiamos todas as frutíferas por meio de ciclo de hortaliças e adubação verde e conseguimos obter renda mais cedo.
Além disso, desde o início foi muito importante e saudável estabelecer parcerias com outros produtores da rede agroecológica local. Assim aumentamos a variedade de produtos que oferecemos e acrescentamos bastante qualidade à rede de consumo, beneficiando a todos. Esse também é o propósito da parceria com o Livres, um coletivo que fomenta a agroecologia na cidade, auxiliando o produtor rural a escoar sua produção, facilitando a operação e logística de entrega diretamente ao consumidor. Iniciativas como essa demonstram o potencial da pauta agroecológica diante do atual momento histórico que vivemos.
Transições, esquinas geracionais
Aqui dentro do sítio, todos aprendemos todos os dias com a própria natureza, uns com os outros, com cada colheita, com cada perda. A convivência no trabalho é apimentada por um refinado choque geracional e que também revela o quanto a agroecologia, e sobretudo a Sintropia, entram em rota de colisão com muitos dos esquemas de pensamentos que herdamos de um modo de vida não sustentável e de uma forma de se relacionar com a terra pautado por uma agricultura dependente de insumos. Isso revela o quanto o método de Ernst difere não apenas do agronegócio exportador e da agricultura de monocultura, mas também, de certa forma, da agricultura familiar convencional, tão cara aos nossos pais, tios, avós, primos, funcionários e colegas.
Nesse sentido, a Agricultura Sintrópica permite uma interessante troca: aprendemos o tradicional com os que vieram antes de nós, e ao mesmo tempo ensinamos métodos e manejos novos. Por isso, atos como cobrir o solo, plantar capim, misturar culturas, não matar formiga, são coisas bastante difíceis de se introduzir em alguns contextos, mesmo entre quem quer realmente produzir alimento sem veneno. Até porque a Sintropia permite ir além disso: os alimentos também ganham valor nutricional e sabores oriundos dos processos que acontecem em um solo vivo – um benefício singular e que faz tudo valer a pena.
Solos vivos ou a morte desertificada
Se “nós somos aquilo que o solo faz de nós”, como ensinou a mestre Ana Primavesi, então tudo passa pela forma como nos relacionamos com o solo, com sua regeneração e conservação: o pão, o dinheiro, a água, a vida em si, toda a culpa, o perdão, as lutas, a resistência, a esperança, a memória, os sonhos sonhados aqui na Terra…
Portanto, somos espelho do que fazemos no solo. Toda dor do tamanho de uma pandemia, todo respeito à ciência e toda fé, tudo passa pela regeneração e conservação do solo fértil. O Inferno é o solo desertificado. Na floresta, as mortes alimentam a vida. Sempre é possível enxergar na morte a possibilidade de fortalecer a vida. Mas num deserto que era floresta, as mortes se tornam em vão, vazias. E as mortes não deveriam nunca ser em vão.
Acredito que nossa existência aqui na Terra depende da nossa luta para que ela seja um lugar melhor. E para que após a pandemia tenhamos algum aprendizado e evolução, temos urgentemente que olhar para a terra com mais atenção, respeito e consciência, a começar pela certeza de que sem floresta em pé não existe sequer a luta por justiça, saúde e liberdade.
A Sintropia não é a única ferramenta e nem o único método ou linha de agricultura ecológica, obviamente. Como diz o professor Fernando Rabello, a melhor agricultura é toda aquela que caminha para o aumento da vida, e o solo sempre é o critério de verificação desse melhoramento. Mas independente dos vários métodos existentes, aqui foi a Sintropia que nos despertou a vontade e a disposição de botar a mão na terra e plantar milhares de árvores.
Nela colocamos muita fé, foco e trabalho. Através dela, tenho conseguido entender e reunir as diferentes etapas da minha vida até aqui, a militância social, a arte e o amor pela natureza e seus mistérios. O sentido de futuro e a construção de sonhos alcançáveis vão se consolidando a cada dia de trabalho, e isso é nutrição e saúde para a nossa mente e nossa alma. Afinal, como afirmou um dia o genial Namastê Messerschmidt, “A Revolução será Agroflorestal”!
* Vicente Guindani é professor, músico e agricultor familiar, entusiasta da agricultura familiar e sintrópica. Responsável pela Florestaria Tarumin, em Gravataí/RS.