Quando discutimos alternativas sistêmicas, é comum, em consequência, discutirmos alternativas  de e até ao desenvolvimento, centrando geralmente em questões econômicas. O contexto, porém, deve ser visto de forma mais ampla: tais mudanças não podem ser atingidas sem uma nova mentalidade, que virá por meio da educação. Quem aponta como alternativa um projeto de desenvolvimento autogestionário para educação é Alcielle dos Santos *

Os desafios da escola da atualidade têm sido debatidos por todos os atores sociais nas mais diferentes instâncias. Isso se dá devido à falta de um projeto nacional consistente e articulado, que priorize a Educação com políticas públicas de amplo acesso e, simultaneamente, de atendimento da qualidade educacional. A ausência de tais políticas já promove danos sociais visíveis a todas as camadas sociais e, portanto, torna-se pauta de debate contínuo. 

Por outro lado, apesar de ser pauta dos editoriais nacionais em todos os veículos de comunicação, a discussão de um projeto nacional de Educação ainda é vaga e, pode-se afirmar, secundária, pois também falta ao nosso país um projeto nacional de formação do cidadão brasileiro. Além disso, é urgente a ruptura com um modelo educacional que segue a atender ao capitalismo, e que condena qualquer avanço humanitário frente às mazelas que promove. Diante deste cenário e citando Paul Singer, em seu texto “A Economia Solidária como Ato Pedagógico”, podemos afirmar que “a Economia Solidária é um ato pedagógico em si mesmo, na medida em que propõe nova prática social e um entendimento novo dessa prática”. 

Orientados por esse entendimento, em novembro de 2020, já na conjuntura da pandemia da Covid-19, o Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista (FESBS) promoveu uma live com o título “Educação e Construção da Solidariedade Humana” e propôs às participantes, professoras Helena Singer e Maria Leite, a seguinte questão: como a educação pode contribuir para construir a solidariedade entre os seres humanos, inclusive envolvendo a família, em um sistema em que somos bombardeados diariamente para seguirmos um comportamento individualista, de competição?

Esta pergunta surgiu no FESBS, pois entendia-se como necessário educar para a solidariedade, e, para tanto, havia que se contestar um modelo de sociedade que incentiva o comportamento de consumidor e do empreender solitário e competitivo, ou, ainda, que defende a meritocracia, a absurda crença de que basta esforço para se obter sucesso pleno, desconsiderando-se a desigualdade e a opressão do sistema capitalista.

Não obstante a esse desafio hercúleo, a live do FESBS, buscou discutir um projeto nacional de “homo solidarius”, inspirando-se no revolucionário cubano Che Guevara, que, dentre seus escritos, propôs uma pedagogia para crianças e adultos fundamentada na construção desse homem solidário, o cidadão cubano que denominou como “Homem Novo”. Ou seja, o FESBS, como movimento, apontava que um projeto nacional de Educação precisa conciliar um projeto de homem e um projeto de sociedade, assim como não se pode visar à construção social de forma apartada da dimensão política e de pertencimento social a uma coletividade, uma nação.

O papel do Estado na Educação

Retomando o processo histórico educacional brasileiro no século XX, mais precisamente o período subsequente ao que foi denominado Revolução de 30, intelectuais brasileiros como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles, além de outros dezenove, lançaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação, texto que convocava o Estado Brasileiro a garantir a Educação Pública de forma ampla e equitativa. Esta defesa ensejou, na linha do tempo da educação brasileira, a inclusão do Artigo 205 na Constituição Federal de 1988 que veio a sedimentar a educação como direito de todos e dever do Estado, a ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.

Outros dispositivos legais, no campo da Educação, também foram imprescindíveis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que passou a zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Garantidos, o direito à Educação e os direitos humanos inegociáveis para crianças e adolescentes, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) também tiveram papel crucial, ao incluírem, no plano nacional, as juventudes, em sua diversidade, dando amplitude maior à questão do trabalho.

Tomando-se como ponto de partida para o projeto nacional de Educação a formação cidadã e a qualificação para o trabalho, tem-se duas questões importantes a se destacar: a necessidade de uma formação política que possibilite o entendimento de mundo e a atuação consciente em sociedade, e a emancipação que se dá pelo trabalho. Assim, assume-se um projeto nacional de propósito educacional, mas ainda não se qualifica a pessoa humana, os atores desse processo, considerando seus valores e um projeto humanista de sociedade.

Logo, a lacuna do âmbito da ética da sociedade brasileira permanece sem resposta: qual projeto nacional de Educação é necessário para de fato promover a emancipação, de forma colaborativa, de todos, estudantes e educadores, que compõem a escola?

Atentos a essa questão colocada em reflexão junto ao histórico educacional brasileiro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, nº 9.394/96, e o Plano Nacional de Educação – PNE, Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, tiveram como missão legislar sobre o “como” buscar definir diretrizes nacionais de forma a qualificar a Educação brasileira. Esses dispositivos definiram critérios para o processo de ensino e aprendizagem e apresentaram escolhas didático-metodológicas, fazendo indicações para as escolas públicas e privadas. Em continuidade, e rompendo com a proposta de estabelecimento de “parâmetros nacionais”, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), promulgada como lei federal em 2017, passou a indicar “o que” e “como” construir as práticas pedagógicas da escola, adotando a metodologia de ensino por competências e habilidades. 

Os desafios recentes na formação do cidadão brasileiro

Neste cenário de muitas mudanças, de âmbito estrutural e pedagógico, e frente ao vexatório processo político recente, que incluiu um golpe jurídico parlamentar, o campo da Educação brasileira passou a ser composto por correntes de concepções políticas diversas e concorrentes. Disputas de interesse e de poder entre os atores e influenciadores da Educação nos âmbitos da formação e gestão pública têm produzido ainda mais complexidade. Assim, não se tem uma identidade de cidadão brasileiro, e, em decorrência, também não há um acordo da sociedade sobre que educação, qual projeto tem que ser construído e fortalecido nas escolas do país.

Não bastasse tudo isso, como ingrediente cruel, também a serviço da manutenção do status quo, a pauta de costumes invadiu o cenário da Educação, apontando, entre educadores e projetos de educação, vilões indecorosos que “desviam”, ou mesmo “deturpam”, valores familiares em plena sala de aula. Assim, desafiados por um currículo de formação inicial que não atende às necessidades de sala de aula, por falta de condições de trabalho que incluem salários precários e ausência de recursos em muitas das escolas em que atuam, os professores brasileiros se tornaram alvo de fundamentalistas. Já estes, passaram a ouvir camadas da sociedade negligenciada pelo enfraquecimento dos movimentos de base, o que abriu avenidas para uma atuação tão nefasta à Educação que não se imaginaria possível.

Somando mais um desafio ao cenário atual, a Educação foi exposta à pandemia da Covid-19, sem o mínimo de preparação estrutural e humana, além da absoluta ausência de articulação nacional, via Ministério da Educação. O ensino emergencial remoto, acionado como opção pelas redes educacionais, requereu que os mesmos professores, sob os quais as mais insanas suspeitas foram levantadas, assumissem a responsabilidade de acessar seus alunos, fosse por meio digital, aplicativos de conversa por celular, ou mesmo de porta em porta. Da mesma forma, a estrutura nacional, que inclui até mesmo escolas sem banheiro e a maioria dos estudantes da Educação Básica sem acesso à Internet e a computadores, teve que ser testada do fechamento ao ensino remoto, deste ao modelo híbrido (presencial + remoto) e, recentemente, frente à necessidade de reabertura, a uma onda acusatória, de perdas educacionais.

Testada ao limite e diante do aumento da evasão escolar que se soma a todos os desafios aqui enumerados, a Educação brasileira precisa resgatar-se como um projeto. E se tal projeto educacional visa a formar para a emancipação pelo trabalho, que trabalho estamos a defender? O trabalho explorado, precarizado e desumano serve à nossa sociedade? A Educação é o campo de mudança de chave, aquele que não pode desconsiderar o processo histórico de luta de classes, mas que, assumindo isso, precisa ser o espaço de diálogo e reconstrução nacional para uma nova cultura do trabalho, como menciona Cláudio Nascimento, em artigo em que apresenta uma pedagogia da autogestão.

Como alternativa ao descaminho, o que se propõe é que o alicerce do projeto educacional brasileiro seja a educação para a solidariedade e para autogestão, que tenha a colaboração como valor. Ou seja, não basta uma proposta curricular, há que se ter um projeto humanista que oriente o currículo das escolas não apenas na dimensão do conhecimento, mas também para a transformação da sociedade. Os valores da Economia Solidária – autogestão, cooperação, democracia, solidariedade, respeito à natureza e valorização e promoção da dignidade do trabalho humano – assim como os princípios que a fundamentam, devem ser vistos como pilares de um projeto de educação humanista. A manutenção do modelo capitalista excludente que divide a sociedade em exploradores e explorados é o que orienta a não adoção de um projeto nacional que eduque, de fato, a população para a emancipação pelo conhecimento e pelo trabalho, para uma vida cidadã plena.

Exemplo recente desse posicionamento político do Estado brasileiro se deu no veto à Economia Solidária no currículo das escolas, no texto final aprovado da Lei Paul Singer (Lei nº 17.587, de 26 de julho de 2021), que instituiu o Marco Regulatório Municipal da Economia Solidária na capital paulista. O veto à difusão dos princípios da Economia Solidária na Educação Básica, assim como do georreferenciamento de suas iniciativas, dificulta a criação de oportunidades de se romper com o modelo hegemônico imposto na base da sociedade. Quando isso se dá em São Paulo-SP, tem-se a sinalização de qual deve ser a exigência dos movimentos sociais. “Tudo passa pela educação”, ensinamento do bairro educador de Heliópolis/São Paulo-SP, repassado pelo educador Braz Nogueira, liderança local que dirigiu a EMEF Presidente Campos Salles, é claro para todos aqueles que promovem e/ou influenciam a Educação em nosso país. E para nós, integrantes dos movimentos sociais, essa pauta também está clara? 

Paulo Freire 

A Educação precisa deixar de ser um território de disputa para se tornar um lugar de convergência, ao menos em princípios. Para tanto, há que se realizar audiências públicas, assembleias nas comunidades, abrir fóruns populares e outras ações que possibilitem a discussão de um projeto solidário para a Educação em nosso país.  Só assim evitaremos que se eternize o modelo denunciado por Freire: “o homem novo, ao superar a contradição, através da transformação social, se torna um engodo, mais um opressor de novos oprimidos”: atualmente, o modelo glamourizado pelo discurso do empreendedorismo.

O desvelar da opressão se dá por meio da compreensão crítica, e deve ocorrer simultaneamente nas escolas (Educação formal) e nas comunidades e movimentos sociais (Educação não-formal). Assim, em abordagem dialógica, com altos níveis de participação e representatividade e tendo as escolas como centros de conhecimento e articulação social, seremos capazes de promover a educação do homem novo. Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia da Esperança”, explica como o processo educativo é capaz de reverter a realidade em que vivemos: “a fraqueza dos oprimidos se vai tornando força capaz de transformar a força dos opressores em fraqueza”. 

Ou seja, só o processo educativo é capaz de romper o modelo de educação que forma para o sonho do sucesso individual, sem a conscientização necessária para o entendimento do pertencimento coletivo da vida em sociedade. A compreensão de que estamos em um mesmo planeta e que, como seres humanos, somos semelhantes que precisam ser solidários para continuar a existir, é condição necessária para a formação de indivíduos que atuem para a transformação do cenário atual, em prol da justiça social. 

Precisamos, assim como Paulo Freire nos ensinou, nos mover com essa esperança, mas construindo-a no movimento, como propôs Paul Singer, rumo à utopia, a cada passo, no cotidiano. 

* Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC/SP; mestre em Educação: Formação de Formadores, também pela PUC/SP. Pós-graduada em Aprendizagem Cooperativa e Tecnologia Educacional pela Universidade Católica de Brasília; Licenciada em Pedagogia; também possui graduação em Direito e em Administração de Empresas. Atualmente é Presidenta da Cooperativa de Professores Cipó Educação e atua como formadora e consultora educacional junto à rede pública, privada e terceiro setor