Coopcent ABC: um por todos e todos por um

Em uma sociedade capitalista, somos educados e instruídos a acreditar que iniciativas solidárias são uma utopia, não possuindo viabilidade – o que sabemos não ser uma verdade, pois há inúmeros exemplos de Empreendimentos Econômicos Solidários de sucesso Brasil afora. Mas às vezes, para ultrapassar certas barreiras do capital, é necessário que a união em torno da economia solidária seja ainda mais forte. É nesse contexto que surge, no Grande ABC, em São Paulo, a Coopcent ABC, que reúne seis cooperativas com 180 catadores e catadoras. Esses trabalhadores e trabalhadoras, com a força de seu trabalho em conjunto, decidiram fazer a resistência produtiva a fim de disputar espaço com as grandes empresas num mercado hostil. Adolfo Homma conta um pouco mais dessa história.

Por Adolfo Homma *

Se não fosse a Economia Solidária, seus princípios, fundamentos e procedimentos práticos, os grupos que compõem a Rede Coopcent ABC de cooperativas de catadores e catadoras de materiais recicláveis, formada por cinco cooperativas formalizadas e uma em via de formação do Grande ABC, não teriam conseguido sobreviver da forma como conseguiram. Dizemos que a união foi fundamental para que todos conseguissem enfrentar os desafios encontrados no caminho e, assim, pudessem se organizar, fortalecer e se estruturar,  transformando-se numa das únicas redes de cooperativas de catadores e catadoras a comercializar 100% de seus materiais recicláveis de forma coletiva.

A Coopcent ABC foi formada em janeiro de 2008, como cooperativa de segundo grau – ou seja, formada por no mínimo três cooperativas singulares – para viabilizar a comercialização em rede, criando condições para que os grupos pudessem juntar seus materiais recicláveis e dessa forma conseguissem comercializar diretamente com a indústria da reciclagem, que somente adquire em grande escala. Com isso, conseguiam melhores preços, pois evitavam os intermediários que pagavam preços muito baixos às cooperativas isoladas.

As cinco cooperativas formalizadas e uma em via de formalização, totalizam 180 cooperados e cooperadas, estão localizadas nas cidades de São Bernardo do Campo, Diadema, Ribeirão Pires e Mauá. Na cidade de São Bernardo do Campo estão as cooperativas Cooperluz e a Reluz; em Diadema, a Cooperlimpa e o grupo informal Nova Conquista; em Ribeirão Pires a Cooperpires; e em Mauá a Coopercata. Sua sede localiza-se na cidade de Diadema, desde sua fundação.

Uma união baseada na autogestão

Todos os seis grupos que compõem a base da Coopcent ABC atuam de forma autogestionária. A gestão de cada cooperativa é realizada coletivamente pelos cooperados e cooperadas de forma democrática e transparente. Eles aprovam o regimento interno que organiza o funcionamento da cooperativa por meio de assembleia geral, onde todos participam em igualdade de condição, com o voto de um valendo o mesmo que o de outro. O regimento interno geralmente aborda os princípios e objetivos da cooperativa, os órgãos de administração e suas atribuições, os direitos e deveres dos associados e as regras de funcionamento, de gestão e partilha dos resultados. É importante a compreensão de que autogestão não é cada um fazer o que quiser, mas todos fazerem a partir do que foi aprovado por todos, de forma organizada e transparente.

Todos os associados trabalham coletivamente, seja coletando, triando, enfardando ou comercializando os materiais recicláveis. No fim do mês, em cada cooperativa os associados se reúnem em assembleia para saber quanto foi produzido, comercializado e qual foi o montante arrecadado com a comercialização, que é a receita mensal da cooperativa. Da mesma forma, o valor de todas as despesas realizadas com alimentação, material de limpeza, manutenção do espaço e dos equipamentos e outras que tenham ocorrido. Retira-se então da receita as despesas, e decide-se quanto irão destinar aos fundos de descanso anual, abono natalino, de reserva ou outro que tenham aprovado. O valor resultante desse cálculo é a sobra, que será destinada à retirada dos cooperados e cooperadas, que é feita de acordo com as horas trabalhadas por cada um e cada uma. 

Assim, fica evidente que quem trabalha mais ganha mais. A diferença sempre está unicamente na diferença de horas trabalhadas. Este aspecto tem sido de fundamental importância para todos entenderem que eles são iguais em direitos e deveres, independente de gênero, etnia, idade ou outras questões.

As cooperativas dialogam entre si constantemente, e mensalmente é realizada reunião com representantes dos grupos, sendo geralmente, dois por grupo. Antes da pandemia, estas reuniões eram realizadas na sede do Consórcio Intermunicipal Grande ABC, local em que os sete prefeitos da região do ABC se reúnem para solucionar os problemas comuns. Nestas reuniões, debatem-se questões relacionadas aos grupos, à Coopcent ABC, e outras de interesse e necessidade dos catadores e catadoras. 

Também é momento de prestação de contas da Coopcent ABC, especialmente do Programa de Logística Reversa Dê a Mão para o Futuro, realizado por meio de parceria entre a Coopcent ABC e a Abihpec (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos), Abipla (Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Higiene, Limpeza e Saneantes) e Abimap (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados). Durante esse período de pandemia essas reuniões foram interrompidas.

Um breve relato histórico

Desde a sua criação em 2008 até 2015, a Coopcent ABC já recebeu apoio do Governo Federal e de diversas organizações e instituições, como a Petrobrás, Fundação Banco do Brasil, BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e do Projeto Brasil – Canadá. Foram apoios importantes, que contribuíram de forma decisiva para que esses grupos conseguissem os galpões, maquinários, equipamentos e quatro caminhões. Além de várias atividades formativas que contribuíram para a formação de lideranças e para a compreensão do ideal cooperativista, vinculado à economia solidária.

Em 2016, com o fim dos recursos dos editais, a Coopcent ABC teve que repensar suas práticas e organização. As despesas relacionadas à manutenção de duas funcionárias, do vigia noturno, da motorista e dos ajudantes, da manutenção da sede eram custeadas praticamente pelos recursos desses editais. Quando as dívidas começaram a se acumular, veio a possibilidade da Coopcent ABC, participar do Programa de Logística Reversa Dê a Mão para o Futuro. A Coopcent ABC apresentou um projeto e foi aprovado.

Por este programa, a Coopcent ABC receberia R$ 106,00 por cada tonelada comercializada com os compradores de seus materiais recicláveis, por meio de nota fiscal devidamente contabilizada. O compromisso da Coopcent ABC era fornecer à Abihpec notas fiscais que no somatório atingissem o montante de 500 toneladas/mês, durante 36 meses. Esse recurso deveria ser empregado na compra de máquinas e equipamentos como esteira, prensa, empilhadeiras, aparelhos eletrônicos e outros para viabilizar o funcionamento das cooperativas, e para a manutenção e reforma dos galpões e das máquinas e equipamentos. E, para ser utilizado como capital de giro, foi repassado o valor de R$ 260 mil, visando antecipar os pagamentos para as cooperativas dos compradores dos materiais recicláveis. A cooperativa vendia, lançava a nota fiscal, e a Coopcent ABC repassava o valor imediatamente aos grupos. O comprador, posteriormente, pagava para a Coopcent ABC, num procedimento que demorava cerca de 15 a 20 dias, e em algumas vezes até mais.

Mas para que este projeto pudesse avançar era necessário reestruturar a Coopcent ABC. Esses recursos da logística reversa não poderiam ser utilizados para custear a gestão administrativa, contábil e orgânica da cooperativa de segundo grau. Neste sentido, teve que ser aprovado por todos os grupos que a comercialização seria realizada 100% em rede, e do montante global arrecadado 5% seria destinado para a manutenção da estrutura da Coopcent ABC. A exigência para repasse à Coopcent ABC por parte dos grupos filiados de 5% para a sua manutenção já existia antes desse momento, mas os grupos repassavam apenas sobre alguns produtos. Agora era uma questão existencial, que todos os grupos com muita maturidade aprovaram e cumpriram. 

Até então, as pessoas que trabalhavam na Coopcent ABC, eram celetistas, por exigência dos editais. A partir dali, passaram a ser cooperados e cooperadas. Hoje a equipe possui duas cooperadas que atuam na comercialização coletiva, contabilidade, controle fiscal e bancário, além de um motorista e dois ajudantes.

Com o uso do capital de giro, alguns grupos que antes efetuavam as retiradas para seus associados à medida em que os compradores efetuavam os pagamentos, passaram a pagar no início do mês. Antes, alguns cooperados recebiam no dia 3, outros 5, 10 e assim por diante. Não dava para programar suas vidas financeiras. Portanto, o uso do capital de giro foi muito importante para conscientizar os cooperados sobre a necessidade do seu retorno. Hoje, em média, sabemos que não pode ultrapassar 15 dias, e exceto em raras ocasiões, não chega a 30 dias.

Necessidades e possibilidades – o caso Cooperpires

O critério utilizado para aplicar os recursos do Programa de Logística Reversa em compra e manutenção de máquinas e equipamentos e reforma dos galpões foi o da necessidade e da possibilidade. Na realidade alguns grupos necessitam de mais recursos do que outros. E quase que em sentido contrário, os grupos que mais contribuíam com as toneladas disponibilizadas por meio das notas fiscais eram aqueles que menos necessitavam e os que menos contribuíam eram os que mais necessitavam. Como solucionar esta questão? 

Foi realizado um planejamento estratégico inicial por parte da Coopcent ABC, onde foram levantadas as necessidades de cada grupo. Nesse momento se constatou a afirmação acima, de que quem menos contribuía com as toneladas era quem mais precisava. 

Havia grupos, que também estavam no Programa Dê a Mão para o Futuro em outros territórios, que pensavam diferente, e usavam os recursos de acordo com as toneladas ofertadas. Mas dessa forma, os grandes continuavam a ser grandes, e os pequenos a ser pequenos. Nosso argumento principal era de que deveríamos atuar de acordo com os princípios e objetivos da economia solidária, e então considerar as prioridades de acordo com a necessidade. Esse argumento venceu, e os grupos passaram a decidir sobre a aquisição de máquinas e equipamentos, reforma e manutenção do galpão e das máquinas e equipamentos a partir das prioridades.

A título de exemplo vamos citar o caso da Cooperpires, que é a cooperativa de catadores de Ribeirão Pires. O galpão da cooperativa está localizado praticamente no meio do mato. Um dos maiores problemas eram as invasões e furtos que vinham acontecendo, praticamente diariamente. Os cooperados cogitavam encerrar as atividades, pois não valia a pena continuar trabalhando e os ladrões levando tudo que eles produziam. Não tinha muro e era muito fácil entrar e saquear os bens existentes.

Diante dessa situação, foi aprovado que deveria ser construído um muro alto, colocado concertina sobre o muro para evitar invasões, circuito interno de câmera monitorado remotamente e cobertura de um telhado no espaço de chegada dos materiais coletados, que ficavam descobertos. Essa medida foi muito importante pois, em dias de chuva, grande parte dos materiais eram danificados e iam para rejeito, prejudicando todo o esforço despendido com a coleta seletiva.

O montante total destinado à realização de obras para todos os grupos da Coopcent ABC relacionado ao Programa Dê a Mão para o Futuro era de cerca de R$ 350 mil. O orçamento para realizar todos esses serviços na Cooperpires atingia cerca de R$ 100 mil. Ou seja, quase um terço do total, sendo que das 500 toneladas mensais produzidas a Cooperpires contribuía com cerca de 15, ou apenas 3% do total. Mesmo assim, não houve nenhum questionamento em contrário. Todos os grupos concordaram que esse investimento era necessário e o aprovaram, iniciando as obras nesta cooperativa.

Esse conceito foi aplicado também em relação aos demais grupos. Na Cooperlimpa, foi colocado cobertura no local da chegada dos materiais, que antes ficava descoberto e se chovesse ocorria a perda de quase 70% dos materiais, com o aproveitamento total apenas do plástico. Foi realizada reforma da esteira que estava bem danificada, adquirido diversos produtos e equipamentos e colocado câmeras de segurança. Na Cooperluz, foi fabricada uma esteira para subir os materiais para a esteira principal, o que ajudou muito eles. Foi comprado uma empilhadeira a gás, produtos de informática, escritório e cozinha. Para a Reluz, foram compradas prensa, ventiladores, e produtos de informática, escritório e cozinha. Na Coopercata, foi trocada a correia da esteira, grades para evitar invasões, baias para vidros e plásticos, produtos de informática, escritório e cozinha. E a Nova Conquista recebeu várias melhorias, além dos produtos de informática, escritório e cozinha. 

Ou seja: todos os grupos foram beneficiados, tendo por critério os conceitos, princípios, fundamentos e práticas da economia solidária.

Os desafios da autogestão e as perspectivas futuras

Possibilitar em um empreendimento solidário como uma cooperativa de catadores o controle efetivo dos meios de produção de forma democrática e transparente, promovendo relações humanas de produção, de forma solidária e participativa é sem dúvida um dos maiores desafios internos dos grupos que formam a Coopcent ABC.

Somos educados na sociedade capitalista, em que vivemos geralmente para o individualismo e a competitividade. As escolas preparam seus alunos para serem patrões ou empregados, não para trabalhar em empreendimentos associados, democráticos e solidários. Esses espaços são ignorados pela educação formal e isso influencia muito o comportamento das pessoas que estão atuando em cooperativas, como os catadores e catadoras de materiais recicláveis.

Ao ingressar em uma cooperativa de catadores, os novos associados geralmente estranham o fato de não ter uma figura como a de um patrão que determina o que cada um deve fazer. Por mais que se repete que ali é uma cooperativa e todos são responsáveis pela gestão do espaço, isso não é compreendido de forma tranquila. Existe uma certa desconfiança e ao mesmo tempo um receio dos novos cooperados se exporem e passarem a atuar levando em consideração a autogestão.

A Coopcent ABC entende que esse aspecto é importante para o desenvolvimento de uma cooperativa e procura sempre praticar a democracia e a transparência em suas ações, estimulando para que os grupos filiados façam o mesmo. Todos os grupos realizam pelo menos uma assembleia mensal onde são realizadas as prestações de contas a fim de democratizar as informações quanto à produção, comercialização, cálculo da hora trabalhada e respectivas retiradas. Além desses momentos de prestação de contas, todas as vezes que existem impasses que necessitam de decisões coletivas, os grupos são estimulados a realizar assembleias para encaminhar as decisões de forma coletiva.

Enquanto isso, pensando no futuro e diante dos desafios dos novos tempos, a Coopcent ABC vem buscando desenvolver novos modelos de negócios para garantir sua sobrevivência. Atualmente, faz a gestão de resíduos recicláveis no Shopping Tamboré, no município de Barueri. Uma de suas filiadas, a Cooperluz, faz a gestão de resíduos no maior shopping de São Bernardo do Campo, desde abril de 2019, com a participação da Coopcent ABC. São iniciativas importantes, para que as cooperativas de catadores e catadoras ampliem seus campos de trabalho, e dinamizem sua atuação na sociedade.

O mais importante é sempre garantir que os princípios da economia solidária estejam presentes em nosso meio, com os grupos atuando com autogestão e que a exploração e dominação do homem pelo homem não se faça presente em nosso universo. Com essa prestação de serviços, os recursos adquiridos são utilizados para contribuir com a manutenção da Coopcent e promover melhorias nos grupos.

Colaborando com a organização da economia solidária

Atualmente, a Coopcent ABC participa ativamente do Fórum Estadual de Economia Solidária – FOPES, bem como do Fórum Regional de Economia Solidária do Grande ABC e do Conselho Municipal de Economia Solidária de Mauá, onde atua com uma representante da entidade na presidência nesse período de 2021. Entendemos que é importante essa participação, para que haja o fortalecimento e desenvolvimento da economia solidária no país. 

Os fundamentos da economia solidária são muito sólidos e nos possibilitam inferir que este é um caminho que pode estruturar uma nova sociedade justa, democrática e solidária. Mas precisamos ampliar os horizontes pautados atualmente na economia solidária, para que consigamos convencer a sociedade e a militância, de forma consistente, do seu potencial transformador. Sair do microeconômico, ou seja, da instância dos empreendimentos, que na maioria das vezes reflete a economia de subsistência de forma precarizada, e passarmos a estruturar a concepção macroeconômica da economia solidária, ou seja a nível de país. 

Importa construir um projeto de sociedade a partir dos fundamentos da economia solidária especificando o papel das instituições nessa nova proposta. Como deve ser o Estado, enquanto objetivos fundamentais, conceito e estrutura de nação, os governos, o sistema financeiro, educacional, tributário, trabalhista, previdenciários; enfim, um novo ponto de chegada. Esse é um dos grandes desafios que a militância da economia solidária tem que enfrentar, fundamentar e estruturar, se o objetivo é a construção de uma nova sociedade. E a Coopcent ABC estará presente nesse debate, colaborando com o que for possível e necessário.

* Economista e Jornalista, Membro da Coordenação Executiva do Fórum Paulista de Economia Solidária (Fopes) e assessor da Cooperativa Central de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Grande ABC (Coopcent ABC)

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Giro Sustentável: da entrega explorada à entrega cooperada

Conforme a economia solidária ganha força como alternativa de organização do trabalho em uma sociedade desgastada pelas mazelas do capitalismo, mais se torna importante demonstrar como a autogestão pode proporcionar um escape desse modelo, enquanto permite o desenvolvimento humano dos indivíduos por meio de seus coletivos. Em São Paulo, dois ciclistas conversam com a Alternativas Solidárias para contar como uma cooperativa de entregas vem, na prática, demonstrando que tal premissa pode ser verdadeira.

Por Daniel Keppler *

A economia solidária tem na autogestão um de seus princípios basilares. De acordo com Paul Singer, por exemplo, é justamente por meio dela que Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) contestatários da exploração capitalista são capazes de reproduzir outros princípios em sua lógica organizacional, tais como: solidariedade, igualdade, participação e cooperação não competitiva nas atividades econômicas. Ou seja, a autogestão é um dos fatores principais a diferenciar um EES de outros modelos de negócio. 

Mas a autogestão ainda tem outro grande mérito: o desenvolvimento humano que proporciona aos praticantes. Nas palavras de Singer, em “Introdução à Economia Solidária”, “participar das discussões e de decisões do coletivo, ao qual se está associado, educa e conscientiza, tornando a pessoa mais realizada, autoconfiante e segura”. Ou seja: evolui o indivíduo enquanto beneficia a sociedade.

Cada EES ciente da tarefa necessária de construir outra economia é um pequeno exemplo desse processo na prática. E em São Paulo, um coletivo de ciclistas fundado em 2017 mostra que, em tempos de aplicativos exploradores e  uberização em massa, é possível valorizar o trabalho dos entregadores e couriers. Nessa edição, contaremos a história da Giro Sustentável e de como ela mudou a vida do Alan Jefferson Cunha e do Wilhans Augusto Marques, dois de seus cooperados.

Um movimento de classe

Alan está na Giro desde sua fundação, em 2017, e resume em uma frase o que motivou sua criação: “foi uma forma de tomar os meios de produção”. Ele prossegue:

“A gente sentia nas empresas como era, e queríamos algo que fosse nosso. Pois sabíamos quanto as empresas recebiam pelo nosso serviço, e quanto a gente recebia. Por isso, decidimos que a gente precisava criar algo nosso”, diz. 

Inicialmente, a ideia era criar uma empresa, mas por influência do professor Ivo Pontes, militante da Economia Solidária em São Paulo, surgiu a ideia de criar uma cooperativa de entregas. “Seguimos o conselho, e acertamos. Aqui, todos se sentem valorizados, algo muito importante para todo ciclista da Giro hoje. Eles se sentem reconhecidos no trabalho”, afirma Alan.

Entre os objetivos da Giro, destaque para a revalorização do ciclista profissional. Wilhans, que é o atual presidente da cooperativa, explica: “Queremos empoderar os ciclistas. É algo importante para que a confiança no ciclista seja recuperada, pois, principalmente depois dos apps, a qualidade do serviço diminuiu muito. Antigamente, com as empresas e os registros via CLT, a categoria era mais qualificada. Hoje, estamos na luta para que os ciclistas voltem a ser respeitados como eram antigamente”.

Foi um início difícil para a Giro. No início a cooperativa contava apenas com as entregas de um pequeno restaurante. “Fazíamos as entregas deles e íamos embora”, lembra Alan. Não era o suficiente para todos os sete cooperados na época. “Foi um começo mais na base da crença na causa do que em qualquer outra coisa. Mas mesmo com os problemas, a gente trabalhava com satisfação”, complementa.

Aos poucos, e com a ajuda de outros coletivos e EES, a situação foi melhorando – a não ser por um desafio inesperado: a heterogestão (gestão hierárquica) aplicada antes na cooperativa.

“Tudo era muito centralizado nas mãos do antigo presidente. Até o dinheiro era movimentado pela conta dele, e a transparência era praticamente zero”, recorda Alan. Essa situação foi gerando desconfianças, que perduraram até 2019 – ano em que Wilhans entrou na Giro. Ele lembra o fato que representou a ruptura definitiva com o antigo cooperado:

“Percebi que a cooperativa não tinha nada padronizado: bikes, uniformes, capacetes. Decidimos então fazer camisetas, mas o antigo presidente disse que não havia dinheiro no fundo”, conta.

Após algum tempo, ainda segundo Wilhans, a falta de transparência no uso dos recursos levou a cooperativa a convocar uma assembleia extraordinária, e o antigo presidente acabou expulso do quadro de cooperados.

Wilhans foi eleito presidente, em um momento crítico para a Giro, que foi reduzida a sete cooperados. A clientela foi reduzida e a própria cooperativa tinha uma série de pendências a regularizar, além de mais de R$ 7 mil em dívidas

Mas também havia boas notícias: entre 2019 e 2020, a cooperativa fez um curso de formação, através de um projeto da Rede Design Possível, que vencera um edital do BNDES dois anos antes. Nesse curso, os ciclistas da Giro aprenderam técnicas de gestão, atendimento e também receberam ferramentas de trabalho, como as bicicletas que foram adaptadas para o uso cotidiano da cooperativa.

Além disso, um novo contrato foi fechado, com uma empresa de comida congelada, que ajudou a cooperativa a crescer, principalmente após a pandemia. “Foi uma grande discussão interna, decidir se a Giro iria continuar abrindo ou não, mas acabamos decidindo continuar”, diz Alan. “No começo, foi como em um cenário de filme, sabe? As ruas desertas, como nunca tinha visto em São Paulo; os porteiros e clientes com medo de chegarem perto, receberem o pedido”, lembra. 

Mas seguindo uma política sanitária rígida, felizmente nenhum cooperado da Giro – são 16, atualmente – se contaminou com a covid-19, até hoje. E esperamos que assim continue!

Hoje, a Giro se orgulha em seguir em frente, com uma gestão horizontal e democrática, onde todos participam do cotidiano da cooperativa e planejam seu futuro. Os objetivos maiores são a busca de novos clientes e de um novo espaço, maior e que permita aos cooperados mais conforto, para alimentação e descanso; e também a inclusão de mulheres na equipe. “Já tivemos três no passado, mas não ficaram. Infelizmente esse é um meio onde há muito machismo e preconceito, mas queremos ter entregadoras na Giro Sustentável, e vamos nos organizar para isso ser possível”, finaliza Wilhans. 

A bike como companheira

Além da Giro Sustentável, Wilhans e Alan compartilham a paixão pela bicicleta. Para ambos, não se trata apenas de uma ferramenta de trabalho, mas de companheiras que ambos aprenderam a incluir nas próprias vidas – e entre os vários motivos para isso, um é especial: a mobilidade.

Alan mora em Carapicuíba, a 30 km da sede da cooperativa; já Wilhans vive em Barueri, e pedala 23 km para chegar à Giro. Mas nem sempre foi assim…

Antes de virar ciclista, Wilhans trabalhava em um banco. “Já fazia algum tempo que morava sozinho, pois saí de casa aos 14 anos. Passei muita dificuldade, cheguei a morar na rua. Mas sempre trabalhei. Cheguei a esse banco com 19 anos por indicação de uma prima. E com a rotina diária e a alimentação em excesso, acabei engordando. Um dia, jogando bola, passei mal… parecia que ia ter um infarto. Estava com 108 kg na época”, lembra.

Ele começou a pensar em maneiras de se cuidar, pois sabia que se não fizesse nada, poderia ter problemas muito sérios. Tentou ir na academia, mas não aguentou. “Aquilo não era para mim, na época. Os olhares das pessoas, você sozinho naquela esteira”, diz. Até que ele teve a ideia: e se tentasse pedalar de casa até o trabalho?

“Eu já tinha uma bike, mas usava pra coisas do dia a dia, como ir na padaria. Mas decidi naquele dia tentar ir para o trabalho. Eram 25 km de distância – vivia em Osasco na época. Cheguei no banco pingando de suor, mas feliz, afinal, tinha conseguido. Tomei um banho e, quando sentei na minha cadeira, estava tão energizado, que quase não acreditei!”, conta.

Ele decidiu que pedalaria até o trabalho dia sim, dia não. Pouco tempo depois, se pesou: havia perdido 18 quilos – e isso o motivou: passou a usar a bicicleta diariamente. Mas algo o incomodava: o próprio trabalho.

“Eu ia pedalando até o banco, vendo as paisagens, aproveitando a cidade, mas quando chegava naquela mesa, a rotina acabava comigo. Meta atrás de meta, pressão, correr atrás de cliente… decidi que tinha que mudar de vida. E saí do banco”, decidiu. 

Foi quando ele conheceu Alan. Com ele, descobriu o conceito de entregas por bike, algo novo na época. “Me apaixonei por isso. Eu já havia desbloqueado a ideia de usar a bike como transporte, então usá-la como trabalho era melhor ainda. Fui contratado por uma empresa, onde comecei com uma bicicleta simples, mas cinco meses depois, comprei outra, melhor”, lembra.

Ao sair dessa empresa, em 2017, Wilhans decidiu testar seus limites. “Decidi viajar de bike, até o Uruguai. Enchemos as bikes, eu e um amigo, e fomos… trinta dias até chegar ao Chuí, mais cinco dias até Montevidéu”, conta.

Foi após voltar dessa viagem, e de passar por algumas outras empresas como CLT, que, depois de alguns convites de Alan, ele decidiu ingressar na Giro Sustentável. “No início não sabia se devia entrar, pois sabia da fama não muito boa daquele antigo presidente. Mas decidi encarar, e deu tudo certo. Estamos aqui hoje, e daqui é só para melhor!”, finaliza.

Já Alan conheceu a bicicleta como uma forma de melhorar sua mobilidade. Ele trabalhava em um escritório no centro de São Paulo, e consumia cerca de quatro horas do seu dia indo e voltando do serviço, de trem e ônibus. “Isso me fazia trabalhar esgotado, sem falar no stress que passava durante todo o dia, inclusive no próprio transporte, por causa de toda a precarização do sistema”, diz.

A ideia de usar a bicicleta como transporte partiu de um amigo, em Osasco. Ele achava uma loucura, inicialmente. Mas a semente foi plantada. Até que um dia ele decidiu: passaria a usar a bike em substituição ao ônibus – e sentiu resultado. 

“Então mesmo após sair desse emprego, continuei usando a bicicleta, pois notei a diferença que fazia. Durante os protestos em 2013, vinha a São Paulo de bicicleta. E nunca mais parei, pois percebi que isso me trouxe uma autonomia que nunca tive com o transporte público. Passei a usar a bicicleta para tudo”, conta.

Para Alan, também foi uma forma de conhecer a cidade e as paisagens. Com o ônibus, segundo ele, existe uma restrição de localização, o que não existe com a bicicleta. “Com ele, você se aproxima da cidade, e é livre para se deslocar. A cidade passa a ser minha”, diz.

A ideia de ser livre se tornou um objetivo de vida para Alan. Se ele podia se deslocar livremente, por que não poderia também trabalhar para si, com o que gostasse, a fim de realizar os seus próprios sonhos – e não os de outras pessoas?

Foi assim que ele conheceu o trabalho de bike courier – e se apaixonou. Decidiu conhecer mais, se candidatou a uma vaga, mesmo com dúvidas sobre se seria capaz. “Fiquei pensando se eu conseguiria pedalar tanto, todos os dias. Fui aos poucos, e vi que dava. E é o que escolhi fazer, até hoje”, afirma.

Alan se considera uma prova viva de que é possível pedalar livremente pela cidade. “Aos poucos você vai conhecendo seus limites. Se você vê uma ladeira, e acha que não consegue subir, não deve ter vergonha de descer da bike e carregá-la. Um dia, você vai ser capaz de subir pedalando. É um ciclo de auto superação e reflexão”, conta.

A grande realização, para ambos, é ver o apoio das famílias, que antes não existia. “No começo, me mandavam procurar um emprego, e me diziam que isso não era vida. Mas eu persisti, e hoje são mais tranquilos. Viram toda a caminhada, e até se orgulham, tanto por eu ter continuado quanto por verem o que estamos fazendo”, diz Alan. Wilhans completa: “Eles diziam que não ia dar certo, que eu era louco. Minha mãe via o Datena falando na TV e se preocupava. Mas eu acreditava na bike, e vi que devia acreditar no sonho. O que era resistência na família, hoje é reconhecimento”.

* Daniel Keppler é jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista

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Vem novidade por aí: o curso Construindo o Socialismo Autogestionário!

Por: Guilherme Prado, em nome da Rede Livres

Estamos felizes em anunciar nosso novo curso de formação nacional “Construindo o Socialismo autogestionário: teoria e prática”, realizado por nós da Rede Livres em parceria com o Centro de Economia Solidária e Agroecologia (CESA), Centro Organizativo dos trabalhadores (COT) e a Fundação Rosa Luxemburgo.

Vamos refletir sobre como podemos, aqui e agora, construir alternativas ao sistema capitalista que concentra a riqueza na mão de poucos e destrói a natureza a ponto de nos colocar sob a ameaça da 6ª grande extinção? Bora refletir sobre Como reorganizar o trabalho e a natureza de modo a atingir o Bem Viver?

Já há, na verdade, coletivos de trabalhadores, cooperativas de agricultores e outros grupos que já organizam o trabalho e a natureza para além do capitalismo.

Outras ecologias! Outras economias!

Quer conhecê-las, entendê-las e saber como funcionam refletindo sobre o outro sistema que temos que construir?

Com exceção das duas aulas inaugurais (dias 3 e 6 de agosto), as aulas online serão às terças, às 19h e vão contar sempre com dois convidados (as): um com olhar mais teórico e outro mais prático, contando com professores, professoras e lideranças de empreendimentos econômicos solidários, para nos inspirar a pensar um outro mundo mais cooperativo e mais agroecológico.

Clique aqui e confira o cronograma completo do curso:

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Economia Solidária e Macroeconomia: hein?

Por Guilherme Prado *

Vale introduzir um tema que futuramente será abordado pelo professor Genauto Carvalho Filho, da UFBA, na nossa Revista Alternativas Solidárias. Há quem pense que a Economia Solidária versa sobre a microeconomia apenas, e a microeconomia para a esquerda tem importância minoritária.

Isso está errado, primeiro porque a microeconomia dita o subjetivo das comunidades econômicas e não é menos importante por isso. É no micro que as relações econômicas se dão. Porém, achar que a Economia Solidária não é importante para a macroeconomia é um grande erro.

Desescalar a macroeconomia e regionalizar a microeconomia é, de alguma forma, uma proposta interessante.

O Socialismo fala sobre democracia econômica, e não há democracia econômica que expolie o local em detrimento do global. É no território que os trabalhadores e a natureza produzem a riqueza. Assim o capitalismo trabalha com a distribuição desigual de excedentes, o tal “desenvolvimento do subdesenvolvimento” de Andre Gunder Frank. Dito isso, socialismo passa por um profundo projeto de relocalização da economia.

Por várias questões, mas principalmente as ecológicas, a economia de escala como conhecíamos já faz parte do problema. Vemos isso, por exemplo no sistema alimentar: como a globalização da produção de alimentos produz pandemias, explora agricultores, além de tornar dependentes vários países.

Se só uma região de um país produz alimentos para uma nação, ou pior, para o mundo todo, todos dependem das condições de produção desse local (especialmente climáticas). Ou seja, a macroeconomia é pensada só como uma questão de custos, e nunca como uma questão de subsistência, autonomia e resiliência. Vimos isso quando percebemos que poucos países podem produzir vacinas nessa pandemia. É um pensamento quase irracional e anacrônico quando pensamos em alimentos: quanto mais nossos alimentos precisam de combustíveis para chegar na nossa mesa, mais ameaçado estamos, vide a última greve dos caminhoneiros.

A Economia Solidária pode ajudar a fazer o que a teoria do desenvolvimento não teve fôlego ou ousadia para fazer, apesar de suas grandes contribuições.

Discutir macroeconomicamente a microeconomia e vice versa é uma tarefa que a Ecosol pode fazer em um mundo constrangido pelos limites ecológicos. Regionalizar cadeias produtivas, um objetivo complicadíssimo e que demanda várias outras cabeças para nos ajudar, é o paradigma para um pós-desenvolvimentismo ecologicamente correto, socialmente justo e democrático.

* Guilherme Prado é mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), militante do PSOL e coordenador da Livres Coop – Rede Agroecológica de Produção e Consumo

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As Alternativas Solidárias como uma Revolução Silenciosa

Por Francisvaldo Mendes de Souza *

A esperança de superar o sistema opressor do capitalismo é uma energia que emerge de todas as pessoas que querem ver a vida seguir o ritmo de consolidação do ser humano como uma espécie em constante evolução para superar o próprio motivo de sobreviver, mas sim viver com a intensidade que a vida merece!

É com esse intuito que surgem as alternativas entre os trabalhadores; em vários lugares do mundo, há ecossistemas solidários funcionando, dos pequenos aos maiores. São mulheres costurando em cooperativas, catadores que (apesar da precarização) fazem o Brasil ser o maior reciclador de latinhas de alumínio do mundo, indígenas e camponeses defensores de sementes, bancos comunitários que reinventaram suas comunidades, moedas sociais que denunciam que o dinheiro deve obedecer a necessidade do homem, e não a necessidade do dinheiro, atendendo assim o bem comum. Apesar de serem experiências ainda fragmentadas, possuem um potencial enorme de apontar para uma construção coletiva e socializante.

O avanço da uberização que reorganiza o trabalho tem sido letal para os trabalhadores e trabalhadoras e faz também brotar modos alternativos e cooperativos de organizar a atividade laboral – sem patrão e super exploração, é bom lembrar. O colapso ambiental motiva muitos coletivos de agricultores e agricultoras a enfrentar a crise climática por meio de agroflorestas e da agroecologia. Não há, portanto, alternativa pronta. Mas há alternativas a se apoiar e construir. E é no sentido de potencializar e fortalecer tais experiências, e caminhar para um projeto de formação dessa colcha de retalhos antissistêmica, que nasce a revista Alternativas Solidárias – A Revolução Silenciosa.

Na sua primeira edição, temos artigos tão especiais quanto necessários, distribuídos inicialmente numa discussão sobre a adoção do socialismo autogestionário pelas esquerdas em sua tática de luta; seguido do debate de uma visão alternativa do desenvolvimento trazendo a experiência da Justa Trama, rede que produz roupas sem veneno e sem exploração desde a plantação de algodão até o último acabamento de cada peça; em seguida temos a agroecologia sendo colocada como forma de produção solidária e criativa; depois temos nosso “mão na massa” com a experiência concreta de Vicente Guindani e a Agricultura Sintrópica; e, por último, mas não menos importante, apresentamos o Empreendimento Econômico Solidário da Lavanderia Comunitária 8 de Março como uma experiência de mudança de vida de mulheres em estado de vulnerabilidade social.

Por isso, convidamos todas e todos para essa viagem para uma economia gestada aqui e agora dentro dos escombros do Capitalismo. O nosso desafio é a Fundação Lauro Campos e Marielle Franco colaborar na expansão das Revoluções Silenciosas já em curso!

* Francisvaldo Mendes de Souza é Presidente Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (FLCMF).

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