Em uma sociedade capitalista, somos educados e instruídos a acreditar que iniciativas solidárias são uma utopia, não possuindo viabilidade – o que sabemos não ser uma verdade, pois há inúmeros exemplos de Empreendimentos Econômicos Solidários de sucesso Brasil afora. Mas às vezes, para ultrapassar certas barreiras do capital, é necessário que a união em torno da economia solidária seja ainda mais forte. É nesse contexto que surge, no Grande ABC, em São Paulo, a Coopcent ABC, que reúne seis cooperativas com 180 catadores e catadoras. Esses trabalhadores e trabalhadoras, com a força de seu trabalho em conjunto, decidiram fazer a resistência produtiva a fim de disputar espaço com as grandes empresas num mercado hostil. Adolfo Homma conta um pouco mais dessa história.

Por Adolfo Homma *

Se não fosse a Economia Solidária, seus princípios, fundamentos e procedimentos práticos, os grupos que compõem a Rede Coopcent ABC de cooperativas de catadores e catadoras de materiais recicláveis, formada por cinco cooperativas formalizadas e uma em via de formação do Grande ABC, não teriam conseguido sobreviver da forma como conseguiram. Dizemos que a união foi fundamental para que todos conseguissem enfrentar os desafios encontrados no caminho e, assim, pudessem se organizar, fortalecer e se estruturar,  transformando-se numa das únicas redes de cooperativas de catadores e catadoras a comercializar 100% de seus materiais recicláveis de forma coletiva.

A Coopcent ABC foi formada em janeiro de 2008, como cooperativa de segundo grau – ou seja, formada por no mínimo três cooperativas singulares – para viabilizar a comercialização em rede, criando condições para que os grupos pudessem juntar seus materiais recicláveis e dessa forma conseguissem comercializar diretamente com a indústria da reciclagem, que somente adquire em grande escala. Com isso, conseguiam melhores preços, pois evitavam os intermediários que pagavam preços muito baixos às cooperativas isoladas.

As cinco cooperativas formalizadas e uma em via de formalização, totalizam 180 cooperados e cooperadas, estão localizadas nas cidades de São Bernardo do Campo, Diadema, Ribeirão Pires e Mauá. Na cidade de São Bernardo do Campo estão as cooperativas Cooperluz e a Reluz; em Diadema, a Cooperlimpa e o grupo informal Nova Conquista; em Ribeirão Pires a Cooperpires; e em Mauá a Coopercata. Sua sede localiza-se na cidade de Diadema, desde sua fundação.

Uma união baseada na autogestão

Todos os seis grupos que compõem a base da Coopcent ABC atuam de forma autogestionária. A gestão de cada cooperativa é realizada coletivamente pelos cooperados e cooperadas de forma democrática e transparente. Eles aprovam o regimento interno que organiza o funcionamento da cooperativa por meio de assembleia geral, onde todos participam em igualdade de condição, com o voto de um valendo o mesmo que o de outro. O regimento interno geralmente aborda os princípios e objetivos da cooperativa, os órgãos de administração e suas atribuições, os direitos e deveres dos associados e as regras de funcionamento, de gestão e partilha dos resultados. É importante a compreensão de que autogestão não é cada um fazer o que quiser, mas todos fazerem a partir do que foi aprovado por todos, de forma organizada e transparente.

Todos os associados trabalham coletivamente, seja coletando, triando, enfardando ou comercializando os materiais recicláveis. No fim do mês, em cada cooperativa os associados se reúnem em assembleia para saber quanto foi produzido, comercializado e qual foi o montante arrecadado com a comercialização, que é a receita mensal da cooperativa. Da mesma forma, o valor de todas as despesas realizadas com alimentação, material de limpeza, manutenção do espaço e dos equipamentos e outras que tenham ocorrido. Retira-se então da receita as despesas, e decide-se quanto irão destinar aos fundos de descanso anual, abono natalino, de reserva ou outro que tenham aprovado. O valor resultante desse cálculo é a sobra, que será destinada à retirada dos cooperados e cooperadas, que é feita de acordo com as horas trabalhadas por cada um e cada uma. 

Assim, fica evidente que quem trabalha mais ganha mais. A diferença sempre está unicamente na diferença de horas trabalhadas. Este aspecto tem sido de fundamental importância para todos entenderem que eles são iguais em direitos e deveres, independente de gênero, etnia, idade ou outras questões.

As cooperativas dialogam entre si constantemente, e mensalmente é realizada reunião com representantes dos grupos, sendo geralmente, dois por grupo. Antes da pandemia, estas reuniões eram realizadas na sede do Consórcio Intermunicipal Grande ABC, local em que os sete prefeitos da região do ABC se reúnem para solucionar os problemas comuns. Nestas reuniões, debatem-se questões relacionadas aos grupos, à Coopcent ABC, e outras de interesse e necessidade dos catadores e catadoras. 

Também é momento de prestação de contas da Coopcent ABC, especialmente do Programa de Logística Reversa Dê a Mão para o Futuro, realizado por meio de parceria entre a Coopcent ABC e a Abihpec (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos), Abipla (Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Higiene, Limpeza e Saneantes) e Abimap (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados). Durante esse período de pandemia essas reuniões foram interrompidas.

Um breve relato histórico

Desde a sua criação em 2008 até 2015, a Coopcent ABC já recebeu apoio do Governo Federal e de diversas organizações e instituições, como a Petrobrás, Fundação Banco do Brasil, BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e do Projeto Brasil – Canadá. Foram apoios importantes, que contribuíram de forma decisiva para que esses grupos conseguissem os galpões, maquinários, equipamentos e quatro caminhões. Além de várias atividades formativas que contribuíram para a formação de lideranças e para a compreensão do ideal cooperativista, vinculado à economia solidária.

Em 2016, com o fim dos recursos dos editais, a Coopcent ABC teve que repensar suas práticas e organização. As despesas relacionadas à manutenção de duas funcionárias, do vigia noturno, da motorista e dos ajudantes, da manutenção da sede eram custeadas praticamente pelos recursos desses editais. Quando as dívidas começaram a se acumular, veio a possibilidade da Coopcent ABC, participar do Programa de Logística Reversa Dê a Mão para o Futuro. A Coopcent ABC apresentou um projeto e foi aprovado.

Por este programa, a Coopcent ABC receberia R$ 106,00 por cada tonelada comercializada com os compradores de seus materiais recicláveis, por meio de nota fiscal devidamente contabilizada. O compromisso da Coopcent ABC era fornecer à Abihpec notas fiscais que no somatório atingissem o montante de 500 toneladas/mês, durante 36 meses. Esse recurso deveria ser empregado na compra de máquinas e equipamentos como esteira, prensa, empilhadeiras, aparelhos eletrônicos e outros para viabilizar o funcionamento das cooperativas, e para a manutenção e reforma dos galpões e das máquinas e equipamentos. E, para ser utilizado como capital de giro, foi repassado o valor de R$ 260 mil, visando antecipar os pagamentos para as cooperativas dos compradores dos materiais recicláveis. A cooperativa vendia, lançava a nota fiscal, e a Coopcent ABC repassava o valor imediatamente aos grupos. O comprador, posteriormente, pagava para a Coopcent ABC, num procedimento que demorava cerca de 15 a 20 dias, e em algumas vezes até mais.

Mas para que este projeto pudesse avançar era necessário reestruturar a Coopcent ABC. Esses recursos da logística reversa não poderiam ser utilizados para custear a gestão administrativa, contábil e orgânica da cooperativa de segundo grau. Neste sentido, teve que ser aprovado por todos os grupos que a comercialização seria realizada 100% em rede, e do montante global arrecadado 5% seria destinado para a manutenção da estrutura da Coopcent ABC. A exigência para repasse à Coopcent ABC por parte dos grupos filiados de 5% para a sua manutenção já existia antes desse momento, mas os grupos repassavam apenas sobre alguns produtos. Agora era uma questão existencial, que todos os grupos com muita maturidade aprovaram e cumpriram. 

Até então, as pessoas que trabalhavam na Coopcent ABC, eram celetistas, por exigência dos editais. A partir dali, passaram a ser cooperados e cooperadas. Hoje a equipe possui duas cooperadas que atuam na comercialização coletiva, contabilidade, controle fiscal e bancário, além de um motorista e dois ajudantes.

Com o uso do capital de giro, alguns grupos que antes efetuavam as retiradas para seus associados à medida em que os compradores efetuavam os pagamentos, passaram a pagar no início do mês. Antes, alguns cooperados recebiam no dia 3, outros 5, 10 e assim por diante. Não dava para programar suas vidas financeiras. Portanto, o uso do capital de giro foi muito importante para conscientizar os cooperados sobre a necessidade do seu retorno. Hoje, em média, sabemos que não pode ultrapassar 15 dias, e exceto em raras ocasiões, não chega a 30 dias.

Necessidades e possibilidades – o caso Cooperpires

O critério utilizado para aplicar os recursos do Programa de Logística Reversa em compra e manutenção de máquinas e equipamentos e reforma dos galpões foi o da necessidade e da possibilidade. Na realidade alguns grupos necessitam de mais recursos do que outros. E quase que em sentido contrário, os grupos que mais contribuíam com as toneladas disponibilizadas por meio das notas fiscais eram aqueles que menos necessitavam e os que menos contribuíam eram os que mais necessitavam. Como solucionar esta questão? 

Foi realizado um planejamento estratégico inicial por parte da Coopcent ABC, onde foram levantadas as necessidades de cada grupo. Nesse momento se constatou a afirmação acima, de que quem menos contribuía com as toneladas era quem mais precisava. 

Havia grupos, que também estavam no Programa Dê a Mão para o Futuro em outros territórios, que pensavam diferente, e usavam os recursos de acordo com as toneladas ofertadas. Mas dessa forma, os grandes continuavam a ser grandes, e os pequenos a ser pequenos. Nosso argumento principal era de que deveríamos atuar de acordo com os princípios e objetivos da economia solidária, e então considerar as prioridades de acordo com a necessidade. Esse argumento venceu, e os grupos passaram a decidir sobre a aquisição de máquinas e equipamentos, reforma e manutenção do galpão e das máquinas e equipamentos a partir das prioridades.

A título de exemplo vamos citar o caso da Cooperpires, que é a cooperativa de catadores de Ribeirão Pires. O galpão da cooperativa está localizado praticamente no meio do mato. Um dos maiores problemas eram as invasões e furtos que vinham acontecendo, praticamente diariamente. Os cooperados cogitavam encerrar as atividades, pois não valia a pena continuar trabalhando e os ladrões levando tudo que eles produziam. Não tinha muro e era muito fácil entrar e saquear os bens existentes.

Diante dessa situação, foi aprovado que deveria ser construído um muro alto, colocado concertina sobre o muro para evitar invasões, circuito interno de câmera monitorado remotamente e cobertura de um telhado no espaço de chegada dos materiais coletados, que ficavam descobertos. Essa medida foi muito importante pois, em dias de chuva, grande parte dos materiais eram danificados e iam para rejeito, prejudicando todo o esforço despendido com a coleta seletiva.

O montante total destinado à realização de obras para todos os grupos da Coopcent ABC relacionado ao Programa Dê a Mão para o Futuro era de cerca de R$ 350 mil. O orçamento para realizar todos esses serviços na Cooperpires atingia cerca de R$ 100 mil. Ou seja, quase um terço do total, sendo que das 500 toneladas mensais produzidas a Cooperpires contribuía com cerca de 15, ou apenas 3% do total. Mesmo assim, não houve nenhum questionamento em contrário. Todos os grupos concordaram que esse investimento era necessário e o aprovaram, iniciando as obras nesta cooperativa.

Esse conceito foi aplicado também em relação aos demais grupos. Na Cooperlimpa, foi colocado cobertura no local da chegada dos materiais, que antes ficava descoberto e se chovesse ocorria a perda de quase 70% dos materiais, com o aproveitamento total apenas do plástico. Foi realizada reforma da esteira que estava bem danificada, adquirido diversos produtos e equipamentos e colocado câmeras de segurança. Na Cooperluz, foi fabricada uma esteira para subir os materiais para a esteira principal, o que ajudou muito eles. Foi comprado uma empilhadeira a gás, produtos de informática, escritório e cozinha. Para a Reluz, foram compradas prensa, ventiladores, e produtos de informática, escritório e cozinha. Na Coopercata, foi trocada a correia da esteira, grades para evitar invasões, baias para vidros e plásticos, produtos de informática, escritório e cozinha. E a Nova Conquista recebeu várias melhorias, além dos produtos de informática, escritório e cozinha. 

Ou seja: todos os grupos foram beneficiados, tendo por critério os conceitos, princípios, fundamentos e práticas da economia solidária.

Os desafios da autogestão e as perspectivas futuras

Possibilitar em um empreendimento solidário como uma cooperativa de catadores o controle efetivo dos meios de produção de forma democrática e transparente, promovendo relações humanas de produção, de forma solidária e participativa é sem dúvida um dos maiores desafios internos dos grupos que formam a Coopcent ABC.

Somos educados na sociedade capitalista, em que vivemos geralmente para o individualismo e a competitividade. As escolas preparam seus alunos para serem patrões ou empregados, não para trabalhar em empreendimentos associados, democráticos e solidários. Esses espaços são ignorados pela educação formal e isso influencia muito o comportamento das pessoas que estão atuando em cooperativas, como os catadores e catadoras de materiais recicláveis.

Ao ingressar em uma cooperativa de catadores, os novos associados geralmente estranham o fato de não ter uma figura como a de um patrão que determina o que cada um deve fazer. Por mais que se repete que ali é uma cooperativa e todos são responsáveis pela gestão do espaço, isso não é compreendido de forma tranquila. Existe uma certa desconfiança e ao mesmo tempo um receio dos novos cooperados se exporem e passarem a atuar levando em consideração a autogestão.

A Coopcent ABC entende que esse aspecto é importante para o desenvolvimento de uma cooperativa e procura sempre praticar a democracia e a transparência em suas ações, estimulando para que os grupos filiados façam o mesmo. Todos os grupos realizam pelo menos uma assembleia mensal onde são realizadas as prestações de contas a fim de democratizar as informações quanto à produção, comercialização, cálculo da hora trabalhada e respectivas retiradas. Além desses momentos de prestação de contas, todas as vezes que existem impasses que necessitam de decisões coletivas, os grupos são estimulados a realizar assembleias para encaminhar as decisões de forma coletiva.

Enquanto isso, pensando no futuro e diante dos desafios dos novos tempos, a Coopcent ABC vem buscando desenvolver novos modelos de negócios para garantir sua sobrevivência. Atualmente, faz a gestão de resíduos recicláveis no Shopping Tamboré, no município de Barueri. Uma de suas filiadas, a Cooperluz, faz a gestão de resíduos no maior shopping de São Bernardo do Campo, desde abril de 2019, com a participação da Coopcent ABC. São iniciativas importantes, para que as cooperativas de catadores e catadoras ampliem seus campos de trabalho, e dinamizem sua atuação na sociedade.

O mais importante é sempre garantir que os princípios da economia solidária estejam presentes em nosso meio, com os grupos atuando com autogestão e que a exploração e dominação do homem pelo homem não se faça presente em nosso universo. Com essa prestação de serviços, os recursos adquiridos são utilizados para contribuir com a manutenção da Coopcent e promover melhorias nos grupos.

Colaborando com a organização da economia solidária

Atualmente, a Coopcent ABC participa ativamente do Fórum Estadual de Economia Solidária – FOPES, bem como do Fórum Regional de Economia Solidária do Grande ABC e do Conselho Municipal de Economia Solidária de Mauá, onde atua com uma representante da entidade na presidência nesse período de 2021. Entendemos que é importante essa participação, para que haja o fortalecimento e desenvolvimento da economia solidária no país. 

Os fundamentos da economia solidária são muito sólidos e nos possibilitam inferir que este é um caminho que pode estruturar uma nova sociedade justa, democrática e solidária. Mas precisamos ampliar os horizontes pautados atualmente na economia solidária, para que consigamos convencer a sociedade e a militância, de forma consistente, do seu potencial transformador. Sair do microeconômico, ou seja, da instância dos empreendimentos, que na maioria das vezes reflete a economia de subsistência de forma precarizada, e passarmos a estruturar a concepção macroeconômica da economia solidária, ou seja a nível de país. 

Importa construir um projeto de sociedade a partir dos fundamentos da economia solidária especificando o papel das instituições nessa nova proposta. Como deve ser o Estado, enquanto objetivos fundamentais, conceito e estrutura de nação, os governos, o sistema financeiro, educacional, tributário, trabalhista, previdenciários; enfim, um novo ponto de chegada. Esse é um dos grandes desafios que a militância da economia solidária tem que enfrentar, fundamentar e estruturar, se o objetivo é a construção de uma nova sociedade. E a Coopcent ABC estará presente nesse debate, colaborando com o que for possível e necessário.

* Economista e Jornalista, Membro da Coordenação Executiva do Fórum Paulista de Economia Solidária (Fopes) e assessor da Cooperativa Central de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Grande ABC (Coopcent ABC)