Conforme a economia solidária ganha força como alternativa de organização do trabalho em uma sociedade desgastada pelas mazelas do capitalismo, mais se torna importante demonstrar como a autogestão pode proporcionar um escape desse modelo, enquanto permite o desenvolvimento humano dos indivíduos por meio de seus coletivos. Em São Paulo, dois ciclistas conversam com a Alternativas Solidárias para contar como uma cooperativa de entregas vem, na prática, demonstrando que tal premissa pode ser verdadeira.
Por Daniel Keppler *
A economia solidária tem na autogestão um de seus princípios basilares. De acordo com Paul Singer, por exemplo, é justamente por meio dela que Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) contestatários da exploração capitalista são capazes de reproduzir outros princípios em sua lógica organizacional, tais como: solidariedade, igualdade, participação e cooperação não competitiva nas atividades econômicas. Ou seja, a autogestão é um dos fatores principais a diferenciar um EES de outros modelos de negócio.
Mas a autogestão ainda tem outro grande mérito: o desenvolvimento humano que proporciona aos praticantes. Nas palavras de Singer, em “Introdução à Economia Solidária”, “participar das discussões e de decisões do coletivo, ao qual se está associado, educa e conscientiza, tornando a pessoa mais realizada, autoconfiante e segura”. Ou seja: evolui o indivíduo enquanto beneficia a sociedade.
Cada EES ciente da tarefa necessária de construir outra economia é um pequeno exemplo desse processo na prática. E em São Paulo, um coletivo de ciclistas fundado em 2017 mostra que, em tempos de aplicativos exploradores e uberização em massa, é possível valorizar o trabalho dos entregadores e couriers. Nessa edição, contaremos a história da Giro Sustentável e de como ela mudou a vida do Alan Jefferson Cunha e do Wilhans Augusto Marques, dois de seus cooperados.
Um movimento de classe
Alan está na Giro desde sua fundação, em 2017, e resume em uma frase o que motivou sua criação: “foi uma forma de tomar os meios de produção”. Ele prossegue:
“A gente sentia nas empresas como era, e queríamos algo que fosse nosso. Pois sabíamos quanto as empresas recebiam pelo nosso serviço, e quanto a gente recebia. Por isso, decidimos que a gente precisava criar algo nosso”, diz.
Inicialmente, a ideia era criar uma empresa, mas por influência do professor Ivo Pontes, militante da Economia Solidária em São Paulo, surgiu a ideia de criar uma cooperativa de entregas. “Seguimos o conselho, e acertamos. Aqui, todos se sentem valorizados, algo muito importante para todo ciclista da Giro hoje. Eles se sentem reconhecidos no trabalho”, afirma Alan.
Entre os objetivos da Giro, destaque para a revalorização do ciclista profissional. Wilhans, que é o atual presidente da cooperativa, explica: “Queremos empoderar os ciclistas. É algo importante para que a confiança no ciclista seja recuperada, pois, principalmente depois dos apps, a qualidade do serviço diminuiu muito. Antigamente, com as empresas e os registros via CLT, a categoria era mais qualificada. Hoje, estamos na luta para que os ciclistas voltem a ser respeitados como eram antigamente”.
Foi um início difícil para a Giro. No início a cooperativa contava apenas com as entregas de um pequeno restaurante. “Fazíamos as entregas deles e íamos embora”, lembra Alan. Não era o suficiente para todos os sete cooperados na época. “Foi um começo mais na base da crença na causa do que em qualquer outra coisa. Mas mesmo com os problemas, a gente trabalhava com satisfação”, complementa.
Aos poucos, e com a ajuda de outros coletivos e EES, a situação foi melhorando – a não ser por um desafio inesperado: a heterogestão (gestão hierárquica) aplicada antes na cooperativa.
“Tudo era muito centralizado nas mãos do antigo presidente. Até o dinheiro era movimentado pela conta dele, e a transparência era praticamente zero”, recorda Alan. Essa situação foi gerando desconfianças, que perduraram até 2019 – ano em que Wilhans entrou na Giro. Ele lembra o fato que representou a ruptura definitiva com o antigo cooperado:
“Percebi que a cooperativa não tinha nada padronizado: bikes, uniformes, capacetes. Decidimos então fazer camisetas, mas o antigo presidente disse que não havia dinheiro no fundo”, conta.
Após algum tempo, ainda segundo Wilhans, a falta de transparência no uso dos recursos levou a cooperativa a convocar uma assembleia extraordinária, e o antigo presidente acabou expulso do quadro de cooperados.
Wilhans foi eleito presidente, em um momento crítico para a Giro, que foi reduzida a sete cooperados. A clientela foi reduzida e a própria cooperativa tinha uma série de pendências a regularizar, além de mais de R$ 7 mil em dívidas
Mas também havia boas notícias: entre 2019 e 2020, a cooperativa fez um curso de formação, através de um projeto da Rede Design Possível, que vencera um edital do BNDES dois anos antes. Nesse curso, os ciclistas da Giro aprenderam técnicas de gestão, atendimento e também receberam ferramentas de trabalho, como as bicicletas que foram adaptadas para o uso cotidiano da cooperativa.
Além disso, um novo contrato foi fechado, com uma empresa de comida congelada, que ajudou a cooperativa a crescer, principalmente após a pandemia. “Foi uma grande discussão interna, decidir se a Giro iria continuar abrindo ou não, mas acabamos decidindo continuar”, diz Alan. “No começo, foi como em um cenário de filme, sabe? As ruas desertas, como nunca tinha visto em São Paulo; os porteiros e clientes com medo de chegarem perto, receberem o pedido”, lembra.
Mas seguindo uma política sanitária rígida, felizmente nenhum cooperado da Giro – são 16, atualmente – se contaminou com a covid-19, até hoje. E esperamos que assim continue!
Hoje, a Giro se orgulha em seguir em frente, com uma gestão horizontal e democrática, onde todos participam do cotidiano da cooperativa e planejam seu futuro. Os objetivos maiores são a busca de novos clientes e de um novo espaço, maior e que permita aos cooperados mais conforto, para alimentação e descanso; e também a inclusão de mulheres na equipe. “Já tivemos três no passado, mas não ficaram. Infelizmente esse é um meio onde há muito machismo e preconceito, mas queremos ter entregadoras na Giro Sustentável, e vamos nos organizar para isso ser possível”, finaliza Wilhans.
A bike como companheira
Além da Giro Sustentável, Wilhans e Alan compartilham a paixão pela bicicleta. Para ambos, não se trata apenas de uma ferramenta de trabalho, mas de companheiras que ambos aprenderam a incluir nas próprias vidas – e entre os vários motivos para isso, um é especial: a mobilidade.
Alan mora em Carapicuíba, a 30 km da sede da cooperativa; já Wilhans vive em Barueri, e pedala 23 km para chegar à Giro. Mas nem sempre foi assim…
Antes de virar ciclista, Wilhans trabalhava em um banco. “Já fazia algum tempo que morava sozinho, pois saí de casa aos 14 anos. Passei muita dificuldade, cheguei a morar na rua. Mas sempre trabalhei. Cheguei a esse banco com 19 anos por indicação de uma prima. E com a rotina diária e a alimentação em excesso, acabei engordando. Um dia, jogando bola, passei mal… parecia que ia ter um infarto. Estava com 108 kg na época”, lembra.
Ele começou a pensar em maneiras de se cuidar, pois sabia que se não fizesse nada, poderia ter problemas muito sérios. Tentou ir na academia, mas não aguentou. “Aquilo não era para mim, na época. Os olhares das pessoas, você sozinho naquela esteira”, diz. Até que ele teve a ideia: e se tentasse pedalar de casa até o trabalho?
“Eu já tinha uma bike, mas usava pra coisas do dia a dia, como ir na padaria. Mas decidi naquele dia tentar ir para o trabalho. Eram 25 km de distância – vivia em Osasco na época. Cheguei no banco pingando de suor, mas feliz, afinal, tinha conseguido. Tomei um banho e, quando sentei na minha cadeira, estava tão energizado, que quase não acreditei!”, conta.
Ele decidiu que pedalaria até o trabalho dia sim, dia não. Pouco tempo depois, se pesou: havia perdido 18 quilos – e isso o motivou: passou a usar a bicicleta diariamente. Mas algo o incomodava: o próprio trabalho.
“Eu ia pedalando até o banco, vendo as paisagens, aproveitando a cidade, mas quando chegava naquela mesa, a rotina acabava comigo. Meta atrás de meta, pressão, correr atrás de cliente… decidi que tinha que mudar de vida. E saí do banco”, decidiu.
Foi quando ele conheceu Alan. Com ele, descobriu o conceito de entregas por bike, algo novo na época. “Me apaixonei por isso. Eu já havia desbloqueado a ideia de usar a bike como transporte, então usá-la como trabalho era melhor ainda. Fui contratado por uma empresa, onde comecei com uma bicicleta simples, mas cinco meses depois, comprei outra, melhor”, lembra.
Ao sair dessa empresa, em 2017, Wilhans decidiu testar seus limites. “Decidi viajar de bike, até o Uruguai. Enchemos as bikes, eu e um amigo, e fomos… trinta dias até chegar ao Chuí, mais cinco dias até Montevidéu”, conta.
Foi após voltar dessa viagem, e de passar por algumas outras empresas como CLT, que, depois de alguns convites de Alan, ele decidiu ingressar na Giro Sustentável. “No início não sabia se devia entrar, pois sabia da fama não muito boa daquele antigo presidente. Mas decidi encarar, e deu tudo certo. Estamos aqui hoje, e daqui é só para melhor!”, finaliza.
Já Alan conheceu a bicicleta como uma forma de melhorar sua mobilidade. Ele trabalhava em um escritório no centro de São Paulo, e consumia cerca de quatro horas do seu dia indo e voltando do serviço, de trem e ônibus. “Isso me fazia trabalhar esgotado, sem falar no stress que passava durante todo o dia, inclusive no próprio transporte, por causa de toda a precarização do sistema”, diz.
A ideia de usar a bicicleta como transporte partiu de um amigo, em Osasco. Ele achava uma loucura, inicialmente. Mas a semente foi plantada. Até que um dia ele decidiu: passaria a usar a bike em substituição ao ônibus – e sentiu resultado.
“Então mesmo após sair desse emprego, continuei usando a bicicleta, pois notei a diferença que fazia. Durante os protestos em 2013, vinha a São Paulo de bicicleta. E nunca mais parei, pois percebi que isso me trouxe uma autonomia que nunca tive com o transporte público. Passei a usar a bicicleta para tudo”, conta.
Para Alan, também foi uma forma de conhecer a cidade e as paisagens. Com o ônibus, segundo ele, existe uma restrição de localização, o que não existe com a bicicleta. “Com ele, você se aproxima da cidade, e é livre para se deslocar. A cidade passa a ser minha”, diz.
A ideia de ser livre se tornou um objetivo de vida para Alan. Se ele podia se deslocar livremente, por que não poderia também trabalhar para si, com o que gostasse, a fim de realizar os seus próprios sonhos – e não os de outras pessoas?
Foi assim que ele conheceu o trabalho de bike courier – e se apaixonou. Decidiu conhecer mais, se candidatou a uma vaga, mesmo com dúvidas sobre se seria capaz. “Fiquei pensando se eu conseguiria pedalar tanto, todos os dias. Fui aos poucos, e vi que dava. E é o que escolhi fazer, até hoje”, afirma.
Alan se considera uma prova viva de que é possível pedalar livremente pela cidade. “Aos poucos você vai conhecendo seus limites. Se você vê uma ladeira, e acha que não consegue subir, não deve ter vergonha de descer da bike e carregá-la. Um dia, você vai ser capaz de subir pedalando. É um ciclo de auto superação e reflexão”, conta.
A grande realização, para ambos, é ver o apoio das famílias, que antes não existia. “No começo, me mandavam procurar um emprego, e me diziam que isso não era vida. Mas eu persisti, e hoje são mais tranquilos. Viram toda a caminhada, e até se orgulham, tanto por eu ter continuado quanto por verem o que estamos fazendo”, diz Alan. Wilhans completa: “Eles diziam que não ia dar certo, que eu era louco. Minha mãe via o Datena falando na TV e se preocupava. Mas eu acreditava na bike, e vi que devia acreditar no sonho. O que era resistência na família, hoje é reconhecimento”.
* Daniel Keppler é jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista