Dados do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS) de 2020 revelam que, no Brasil, quase 100 milhões de pessoas não têm acesso a uma rede de esgoto. Além disso, quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. São números que mostram a importância do trabalho da Sapiência Ambiental, projeto que há seis anos utiliza da tecnologia social e do saneamento ecológico para levar esses direitos básicos às vidas de comunidades inteiras. Conheça mais sobre eles, através do depoimento de Rafael Martese Privato *
A Sapiência Ambiental surgiu em 2015, a partir da reunião de um grupo de engenheiros, gestores ambientais e permacultores recém graduados. Desde então, o que nos movia era a possibilidade de consolidar um modelo de negócio capaz de gerar uma remuneração digna para seus membros e, ao mesmo tempo, ter sua atuação calcada nos princípios da Permacultura (cuidar das pessoas, cuidar da terra e partilha justa das riquezas) e da Engenharia Popular (criação de tecnologias sociais e participação social). Nossos membros possuem experiência com projetos de Agricultura Urbana, Permacultura, Saneamento Ecológico e Agroecologia.
Durante a graduação e pós, atuamos de forma voluntária, em projetos de extensão Universitária do Núcleo de Tecnologias Sociais e Agroecologia (Agroeco) do Escritório Piloto da Escola Politécnica da USP, e também do Núcleo São Paulo dos Engenheiros Sem Fronteiras.
Enquanto membros do Agroeco, colaboramos com o desenvolvimento de tecnologias sociais de saneamento rural, tendo atuado em parceria com o assentamento Dom Pedro Casaldáliga, localizado em Cajamar e vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como membros dos Engenheiros Sem Fronteiras, participamos ativamente da frente Permacultura em Movimento, em especial nos projetos: Bioconstrução (em parceria com a EMEF Desembargador Amorim Lima), Cidade Agroecológica (junto à Regional Grande SP do MST) e Permacultura na Ocupação (em parceria com movimentos de moradia vinculados ao Programa Minha Casa Minha Vida Entidades).
Escritório cooperativo de projetos socioambientais
Em conjunto, definimos a Sapiência Ambiental como um escritório cooperativo de projetos socioambientais. Isso significa que somos uma organização que não tem como objetivo a distribuição de lucro, mas, sim, a geração de renda para seus membros, viabilizando a dedicação integral de nosso tempo à realização de projetos e ações com alta relevância para a sociedade. Temos como pilares a engenharia popular, a educação e os princípios da permacultura, e somos formados por 3 membros: André Kenez, Vitor Chaves e Rafael Martese.
Ressaltamos que o trabalho da Sapiência Ambiental, diferentemente da grande maioria das iniciativas encontradas no mercado, não possui como diretriz a obtenção do lucro máximo.
Porém há, certamente, um enfoque de gerar renda para seus membros e para a manutenção e expansão de nossa estrutura. Esta característica é importante de ser observada, pois, se por um lado há empresas que pouco se importam com as consequências socioambientais resultantes de suas ações, há, por outro, uma visão romântica por grande parte da sociedade de que os projetos sociais devam ser feitos apenas a partir de trabalho voluntário e benevolência. Hoje em dia, frente à atual conjuntura política, observamos inclusive um movimento de criminalização do terceiro setor, no qual diversas Organizações da Sociedade Civil vêm sendo taxadas como oportunistas e acusadas de utilizar sua atuação apenas em benefício próprio.
A experiência mostrou-nos, entretanto, que a não profissionalização dos membros resulta em alta rotatividade de recursos humanos e/ou precarização do trabalho, o que acaba por diminuir a qualidade, longevidade e complexidade dos projetos.
O projeto Cuidando das Águas
Atualmente, a maior parte do tempo de trabalho dos membros da Sapiência Ambiental é dedicada ao projeto Cuidando Das Águas. Trata-se de um projeto socioambiental de acesso a água e sistemas de tratamento de esgoto ecológico em regiões em que há negligência do Estado. Desde agosto de 2019, no extremo sul da cidade de São Paulo, principalmente nos distritos do Grajaú, Parelheiros e Marsilac, construímos 21 sistemas de tratamento de esgoto ecológico nas propriedades de agricultores(as) familiares e aldeias da etnia Guarani no extremo sul da cidade de São Paulo, em parceria com agricultores orgânicos e membros da Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo – Cooperapas, Centro de Trabalhos Indigenistas, PWTECH, AMIB – Associação de moradores da Ilha do Bororé, Navegando nas Artes, Imargem, Associação Comunitária Pequeno Príncipe e as ONG ProBrasil e OIA O Instituto Ambiental.
Metodologia de trabalho
A primeira etapa do trabalho é realizada através de visitas técnico-pedagógicas em conjunto com lideranças territoriais. As visitas têm como objetivo tanto identificar a situação sanitária das famílias, como sensibilizá-las sobre a importância do saneamento. Nas visitas também é realizado um primeiro levantamento a respeito das condições do terreno, altura do lençol freático, tipo de solo, proximidade de corpos d’ água, níveis, localização do sistema, dentre outras características técnicas necessárias para o projeto.
A seguir, é iniciado o planejamento e execução das obras junto aos moradores, onde o passo a passo construtivo e os detalhes serão partilhados para que o conhecimento construtivo seja replicado entre os moradores no próprio território.
O diálogo com as comunidades e o aprendizado pessoal
A partir de soluções baseadas na natureza para saneamento, que são tecnologias inspiradas na natureza e cientificamente projetadas, a construção de cada tecnologia é feita co-participativamente com a comunidade, visando integrá-los ao processo de planejamento e tomada de decisões.
Com o envolvimento popular aliado ao apoio técnico da equipe, as tecnologias não são impostas, mas dialogadas em conjunto com a comunidade e adaptadas a cada situação e território. Graças a esse processo participativo, os moradores locais se apropriam dos métodos construtivos para replicarem este tipo de solução de saneamento descentralizado, e, além disso, poderem gerar renda e economizar no investimento em fertilizantes, pois os próprios sistemas de tratamento geram biofertilizantes.
Os sistemas são pensados para terem uma fácil manutenção, de forma que os próprios moradores possam realizá-la. Com isso, tem-se a disseminação de uma tecnologia simples e eficaz, baseada no conhecimento científico e na troca de saberes da própria comunidade, dando-se substrato a este importante processo de inovação social.
Mas para além desse ponto profissional, os trabalhos multidisciplinares, o exercício da escuta e compreender pontos de vistas e percepções distintas, tem nos ajudado muito no crescimento individual de cada um dos membros.
É um grande desafio construir uma nova forma de trabalho, de criar laços afetivos e intercalar entre dias de escritório escrevendo editais, organizando reuniões, fazendo projetos e estar em campo, construindo sistemas ecológicos de tratamento de esgoto, conhecendo pessoas, histórias, aprendendo muito com quem conhece a terra e seus ciclos, tem sido muito saudável e retroalimenta nossa vontade de seguir nesse caminho. Ainda mais vivendo em um período do tempo em que o capitalismo predatório, imediatismo e as estruturas hierárquicas são pilares de uma empresa de “sucesso”.
* Formado em Administração com ênfase em Comércio Exterior e Gestão Ambiental, há 5 anos atuando em projetos de agroecologia. Hoje atual responsável pelo departamento financeiro, captação de recursos e comunicação da Sapiência Ambiental