Por muito tempo, um dos paradigmas centrais da esquerda era o de “desenvolvimento das forças produtivas”. Mas que forças produtivas? Forças que produzem o que, para quem e como? O fato é que diante de imensos “progressos” tecnológicos, a fome segue e o colapso ambiental se acelera. Contra as chamadas “forças destrutivas” do Capital, Sandra Rufino nos diz que a tecnologia não é neutra, e que a tecnologia social e a tecnociência solidária podem ser alternativas para o empoderamento dos trabalhadores na construção de outra economia.

Por Sandra Rufino *

A ciência e a tecnologia avançaram muito nos séculos XX e XXI, muitas conquistas no âmbito da saúde, telecomunicação, indústria, serviços, agricultura, entre outros. Entretanto, mesmo com tantos avanços, ainda não fomos capazes de acabar com a fome e a desigualdade. Os impactos negativos sociais e ecológicos gerados por um modelo convencional de produção são insustentáveis. Estamos nesse modelo matando e extinguindo os diversos tipos de vida no planeta, inclusive a nossa.

A ciência, com o termo originado do latim scientia (conhecimento), significa um conjunto de saberes sistematizados e aprofundados sobre algo ou alguma coisa. Já a tecnologia, oriunda do grego antigo tékhnē (técnica, arte ou ofício) e lógos (estudo), significa o estudo de conjunto de técnicas. Ao resgatarmos a essência dos dois termos, é possível perceber que tanto a ciência quanto a tecnologia não são exclusivas da academia e empresas, e sim de toda a sociedade. Mas que, ao passar dos séculos, foram sendo apossadas e, talvez por isso, temos dificuldades de reconhecer que os povos africanos, indígenas e tradicionais tenham sido capazes de grandes feitos.

A ciência está intimamente ligada com a tecnologia; boa parte dos avanços de uma foram alcançadas por meio da outra. Portanto, nosso propósito aqui é propor uma reflexão sobre que tipo de tecnociência produzimos e nos indagar: para que ela serve, para quem, como e por que ela é criada?

Os primeiros estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) com o objetivo de avaliar os impactos que a tecnociência pode trazer à sociedade datam do final dos anos de 1960 e início dos anos 1970. A motivação desses estudos e movimento foram as preocupações com a natureza e com o desenvolvimento de bombas químicas e nucleares. Criticando a crença de resultados positivos e a neutralidade da ciência e da tecnologia.

Muitos movimentos (acadêmicos e da sociedade civil) criticam o modo de produção hegemônico e buscam construir coletivamente alternativas tecnológicas que atendam às demandas sociais dos mais vulneráveis, buscando assim equidade, justiça social e desenvolvimento sustentável. 

O movimento da tecnologia apropriada (TA) começou, ou pelo menos se inspirou, na experiência da Índia na década de 1920, liderada por Gandhi com o resgate do uso das rocas tradicionais como resistência e enfrentamento a dominação inglesa em seu país (Dagnino; Brandão; Novaes, 2004). A TA, de modo geral, transfere soluções tecnológicas desenvolvidas nos países centrais para os países da periferia, oferecendo-as em versões simplificadas: de baixo custo e de fácil construção, operação e/ou manutenção (Thomas, 2009). Esse movimento só chegou na América Latina na década de 1960, mas a fome e miséria não desapareceram e as soluções de tecnologias “prontas e adaptadas” não respondiam a todas as problemáticas na América Latina. Então, houve, em meados da década de 1990, o ressurgimento de iniciativas para mitigar os problemas e para transformação social, as quais foram chamadas de tecnologia social (TS) (Thomas, 2009).

No Brasil, a TS surge no final da década de 1990 e início dos anos 2000 a partir da articulação de várias instituições (movimentos sociais, sindicatos, ONGs, universidades, gestores públicos) e que valorizavam a perspectiva popular e democrática. A tecnologia social é o conjunto de: produtos (artefatos ou serviços), técnicas e/ou metodologias reaplicáveis e transformadoras, o qual deve ser desenvolvido e aplicado na interação com a comunidade e apropriado por ela, representando efetivas soluções para a inclusão social e melhoria das condições de vida (ITS, 2004). O Instituto de Tecnologia Social define os seguintes parâmetros para o desenvolvimento da TS:

1: Quanto à sua razão de ser: visa à solução de demandas sociais concretas, vividas e identificadas pela população; 

2: Em relação aos processos de tomada de decisão: usa formas democráticas de tomada de decisão, a partir de estratégias especialmente dirigidas à mobilização e à participação da população; 

3: Quanto ao papel da população: há participação, apropriação e aprendizagem por parte da população e de outros atores envolvidos; 

4: Em relação à sistemática: há planejamento, aplicação ou sistematização de conhecimento de forma organizada; 

5: Em relação à construção de conhecimentos: há produção de novos conhecimentos a partir da prática; 

6: Quanto à sustentabilidade: visa à sustentabilidade econômica, social e ecológica; 

7: Em relação à ampliação de escala: gera aprendizagens que servem de referência para novas experiências. Gera, permanentemente, as condições favoráveis que deram origem às soluções, de forma a aperfeiçoá-las e multiplicá-las.

Uma das bases importantes para a TS é desenvolver uma solução tecnológica que tem como princípio o diálogo e a valorização dos diferentes conhecimentos (integração entre conhecimento acadêmico e saber popular). Busca contribuir para a emancipação das classes populares, por meio da apropriação do processo de desenvolvimento e uso das tecnologias.

No uso da tecnologia social, há o pressuposto da construção de soluções de modo coletivo pelos que irão se beneficiar dessas soluções. Tais agentes atuarão com autonomia, não sendo apenas usuários de soluções importadas ou produzidas por equipes especialistas, como acontece com as tecnologias apropriadas. O impacto da TS se dá no indivíduo e no coletivo. Com objetivo de apropriação do conhecimento, desde a concepção a implementação da tecnologia social demandada pelo local, podemos considerar quatro grandes impactos: 1) apropriação do conhecimento; 2) sentimento de partilha com o desenvolvimento da tecnologia e em seus resultados; 3) exercício da democracia; 4) a emancipação do indivíduo e da comunidade que poderá, não só multiplicar as tecnologias desenvolvidas, mas também ter a capacidade de desenvolvimento de outras.

O caminho até as novas tecnologias

Muitos ainda podem se questionar o quão distante as tecnologias sociais estão das chamadas novas tecnologias ou hightech. Considerando que a tecnologia social é a construção coletiva de artefatos (produtos), e/ou métodos/ técnicas que permitam impulsionar processos de empoderamento de trabalhadores e comunidades como alternativas de desenvolvimento, ela não está distante (e nem poderia) das novas tecnologias. O que vai depender dessa proximidade ou não é a necessidade dos trabalhadores e comunidades envolvidas. 

Na Comunidade de Deus, no Rio de Janeiro, por exemplo, foi necessário o desenvolvimento de TS para rádio e portal de internet comunitários. Já para a população do conjunto Palmeiras da periferia de Fortaleza que utiliza moedas sociais, o banco Palmas, para obter maior alcance dessas moedas (utilizadas nos bancos comunitários), fez-se o uso de aplicativo em rede com outros bancos comunitários para o uso da moeda social em formato digital: e-dinheiro.

As tecnologias sociais são desenvolvidas para as necessidades mais latentes das comunidades, e seus objetivos são de difusão, sem fins lucrativos, para outras comunidades necessitadas. Buscam o objetivo de bem comum e uso de todos daquela comunidade. Os valores que regem as tecnologias sociais estão ligados à cooperação e à solidariedade. Vimos em muitas comunidades, durante a pandemia, o desenvolvimento de métodos ou técnicas que podem ser consideradas tecnologias sociais, por terem como objetivo ajudar os que mais sofriam/sofrem com a pandemia e o agravamento das crises que já existiam nesses locais. A rede de mapeamento, comunicação e apoio da comunidade do Morro do Preventório, por meio de um banco comunitário no Rio de Janeiro, o Banco Preventório, e outros exemplos vinculados ao movimento das favelas, podem ser considerados exemplos desse enfrentamento e de como as tecnologias sociais podem ajudar as comunidades nas várias crises, não apenas na pandemia.

Os resultados positivos do desenvolvimento e da transformação social se tornaram visíveis e, por isso, o tema TS passou a compor como pauta para fortalecer as políticas públicas de geração de trabalho e renda a fim de atender trabalhadores(as) dos grupos populares (rurais, autônomos, informais, de empreendimentos de economia solidária (ECOSOL), povos e comunidades tradicionais entre outros).

Nos últimos 20 anos, a Fundação Banco do Brasil conseguiu criar um banco de dados sistematizando e promovendo premiações para tecnologias sociais em todo território nacional em diversos temas: alimentação, educação, energia, habitação, meio ambiente, recursos hídricos, saúde, entre outros. 

A Tecnociência Solidária

Muitas ações de TS estão vinculadas à ECOSOL, que é composta por formas de organização econômica – produção, comercialização, finanças e consumo – construídas com base nos valores e princípios como: do bem viver em equilíbrio e com respeito a natureza e a vida; da autogestão e da democracia; da cooperação e da solidariedade; da prática do comércio justo e do consumo solidário; do reconhecimento do lugar fundamental da mulher e do feminino na construção de um novo modo de produção; e da justiça a distribuição dos resultados.(Singer, 2002; FBES, 2021)

As pessoas se unem e cooperam de maneira solidária, formando os Empreendimentos Econômicos Solidários. Se organizam coletivamente, porque desta forma se tornam mais fortes para enfrentar as diversas crises (econômica, social, ambiental, saúde, educação etc.). A ECOSOL, apesar de muitas vezes crescer nas crises por ser a única opção que resta aos trabalhadores/as, é um modo de produção que emancipa a todos e todas. A ECOSOL permite a produção e reprodução da vida, o desenvolvimento sustentável, a equidade e a justiça social, além da paz. É um movimento centrado na valorização das pessoas e na luta contra as desigualdades sociais.

Na união da TS com a ECOSOL surge a tecnociência solidária. Entretanto, segundo o autor Renato Dagnino (2020), esse termo deveria substituir o de tecnologia social e de outros aparentemente semelhantes como as tecnologias de base, sustentável, responsável, inclusiva, frugal, além da inovação social, entre outros com a mesma postura política de criação de uma ciência e tecnologia alternativas. Para o autor, não devemos separar em desenvolvimento de ciência e tecnologia, pois sempre construiremos os dois conjuntamente. Sendo a construção da tecnociência solidária baseada nos valores e princípios da ECOSOL, isso permitirá a ela o desenvolvimento de uma tecnociência que busque verdadeiramente uma transformação social.

Referências

DAGNINO, Renato. Tecnociência Solidária: um manual estratégico. Lutas Anticapital. Marília, 2ª edição, 2020. 161 p.

DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: LASSANCE Jr. et al. (ed.) Tecnologia social: Uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. p. 15- 64

FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: https://fbes.org.br/

INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL (ITS). Caderno de debate tecnologia social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Raiz, 2004.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. 127p. 

THOMAS, H. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales. Conceptos / estrategias / diseños / acciones. Primeras Jornadas de Tecnologías Sociales.Programa consejo de la demanda de actores sociales – MINCyT. Buenos Aires, 2009.

* Sandra Rufino é professora associada do depto. de engenharia de produção da UFRN. Possui mestrado e doutorado em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Tecnologias Sociais pela Université Catholique de Louvain – UCL. É membro fundadora da Rede de Engenharia Popular Osvaldo Sevá (REPOS),  conselheira dos Engenheiros Sem Fronteiras – ESF Brasil, orientadora ESF Natal  e ENACTUS UFRN.