Uma empresa tradicional, referência em seu segmento mas a ponto de falir; dezenas de trabalhadores desiludidos, a ponto de perderem a esperança no próprio futuro; um ultimato impensado, que adianta uma transformação na história de todos. Três partes de uma história que resultou na criação da Metalcoop, uma cooperativa de destaque no mercado, graças ao uso da tecnologia de forjamento a frio de metais em seu processo produtivo. Conheça a fantástica história desse empreendimento, através das palavras do diretor Cláudio Domingos da Silva *
A Economia Solidária é um universo que precisa ser continuamente explorado, por ser, pelo menos, tão vasta quanto o tamanho do que conhecemos por “economia” e seus segmentos.. Um desses, que ainda não havia sido explorado aqui na Revista Alternativas Solidárias, é aquele no qual trabalhadores de empresas em crise financeira (ou já falimentar) tenham a possibilidade de manter os próprios postos de trabalho, assumindo a gestão das mesmas. São as chamadas Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores, ou ERT’s.
Levantamento feito em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada revelou que, na época, havia 67 ERT’s no Brasil, com quase 12 mil trabalhadores a elas vinculados. Boa parte delas (45%) eram do ramo da metalurgia, e nada menos que 85% delas optou por adotar a forma jurídica de cooperativa ao se formalizarem.
Trata-se de um movimento recente no Brasil, onde a Cooperativa de Extração de Carvão Mineral dos Trabalhadores de Criciúma (Cooperminas), recuperada em 1987, foi uma das experiências pioneiras. A partir de então, foram vários os exemplos bem sucedidos – incluindo, aí, o que iremos conhecer a partir de agora: a Metalcoop, recuperada em 2002 e localizada em Salto.
Entendendo o passado
Para entendermos o contexto de surgimento da Metalcoop, é necessário falar sobre a empresa que existia antes: a Picchi, uma indústria metalúrgica. Foi ela que, em 1986, contratou Cláudio como funcionário.
“A Picchi era muito conhecida, uma referência, pois atuou 53 anos no mercado. Ela atuava basicamente na produção de peças para a indústria bélica e também para o segmento agrícola. Mas com os anos, e principalmente após o fim da Guerra Irã-Iraque (1988), a empresa começou a ter dificuldades, e precisou buscar outros mercados, como o automotivo”, explica.
O problema é que, no meio dos altos e baixos, os funcionários geralmente eram os mais prejudicados. Nos anos de crise, eram frequentes os atrasos de salário e o não-cumprimento de garantias trabalhistas, o que gerava insatisfação. Cláudio observava tudo atentamente, pois fazia parte do movimento sindical, e buscava organizar os trabalhadores na luta pelos seus direitos.
Após a segunda metade dos anos 1990, porém, a situação foi indo de mal a pior. “O faturamento da empresa despencou, e fomos descobrindo uma série de problemas e irregularidades: quase todos os funcionários tinham férias vencidas; o fundo de garantia estava há anos sem depósitos; e até mesmo fornecedores estavam sem receber. A gota d’água foi quando descobrimos que nem mesmo a companhia de luz era paga. Como uma fábrica vai trabalhar sem energia?”, questiona.
A essa altura, a empresa havia escalado um diretor apenas para comparecer à fábrica e prestar contas a uma comissão de trabalhadores que foi criada. “Mas as reuniões com esse diretor eram inúteis. Os números que ele apresentava só estavam no papel, não eram reais. E no final, ele sempre afirmava que a empresa não tinha dinheiro para pagar os salários, então simplesmente dividia o que dizia ter para todos. Mas isso não agradava ninguém, pois esse valor nunca chegava perto de um salário mínimo sequer. Para quem recebia pouco, o prejuízo até era menor, mas quem recebia mais ficava revoltado, e com razão”, conta.
Até que, um dia, tudo mudaria. “Me atrasei para uma dessas reuniões, e quando cheguei, ela já havia acabado. Mas conversamos, e durante a conversa eles me questionaram sobre o que a gente queria. E eu respondi, sem pensar: queremos a fábrica! A primeira reação deles foi de desdém. Me perguntaram quem seria o presidente, o que faríamos com a fábrica. Então o presidente, que nesse dia estava lá, me chamou de canto, perguntou se era sério, e após eu dizer que sim, pediu alguns dias”, lembrou.
Eles realmente responderam alguns dias depois: informaram que fechariam a fábrica e demitiriam todos os funcionários, sem pagar nada a ninguém. Para muitos, seria um alívio, pois poderiam buscar outra colocação. “Mas insistimos na ideia, e fizemos uma proposta: arrendar a fábrica, e seus equipamentos. Eles poderiam se livrar dos funcionários e das responsabilidades, e nós seguiríamos produzindo naquele espaço, agora por conta própria. A Picchi aceitou”, revela.
Tudo foi oficializado em agosto de 2002. A Metalcoop foi fundada no dia 25, o dia em que todos os desafios começariam a ser enfrentados: a cooperativa começava com 89 pessoas, uma fábrica sem luz elétrica, uma dívida superior a R$ 500 mil, e praticamente sem faturamento, pois mal tinha clientes.
Construindo a própria credibilidade
Não foi fácil para a Metalcoop se estabelecer no mercado. Primeiro, pois havia um grande desafio inicial, e tudo dependia dele: a conta com a fornecedora de energia. “A antiga empresa já havia feito um acordo para pagar a dívida, e não estava pagando nem o acordo nem as faturas seguintes”, conta Cláudio. Mas depois de muito esforço, os trabalhadores conseguiram negociar o débito, e enfim puderam iniciar os trabalhos.
Então surgiu o segundo desafio: retomar os laços com antigos fornecedores e clientes da Picchi. Por conta da má gestão da empresa, sobretudo nos seus anos finais, muitos haviam se afastado. E quando a Metalcoop abordava essas empresas, a primeira reação era negativa. “Alguns perguntavam sobre ex-diretores da Picchi, pois não entendiam que a gestão era nossa, agora. Outros nem queriam nos atender, devido a dívidas que não foram honradas”, afirma.
Em uma das primeiras negociações, Cláudio lembra que a própria Metalcoop arcou com a matéria-prima da peça encomendada. A empresa ainda não tinha a inscrição estadual, e todo o acordo foi verbal: o cliente confiaria que a peça seria feita, e a Metalcoop confiaria que receberia o pagamento após a entrega. Ao final, tudo deu certo, e quando a cooperativa se regularizou e passou a emitir nota fiscal, a primeira foi para esse cliente, que segundo Cláudio ainda encomenda peças com eles.
Outro grande passo da cooperativa foi a conquista, em 2004, do certificado ISO 9001. “Era uma certificação fundamental para que a gente entrasse em um mercado muito importante, o automobilístico. Tínhamos vários clientes à espera apenas de que a gente tivesse essa certificação. Com muito trabalho e ajuda, principalmente do Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores), conseguimos contratar uma consultoria. Eles queriam 14 meses para concluir o trabalho, mas houve muito esforço e em seis meses tudo foi feito”, relembra.
O resultado foi espantoso: após a certificação, em junho, o número de encomendas explodiu, e o faturamento da Metalcoop subiu de R$ 300 mil naquele mês para mais de R$ 750 mil em setembro. Hoje, eles também contam com o ISO/TS 16949, uma especificação ISO que alinha as normas dos sistemas de qualidade automotiva existentes – brasileira, americana, alemã, francesa e italiana – dentro da indústria automotiva global.
A cooperativa seguiu crescendo ao longo dos anos, e atualmente possui uma carteira de clientes sólida e é bem estabelecida no mercado. Apenas recentemente, com a pandemia, a fábrica ficou parada por alguns meses, segundo Cláudio. “Optamos por deixar os trabalhadores em casa, mas seguimos pagando a todos. Retornamos com as atividades em setembro, depois que definimos todos os cuidados sanitários a tomar: máscaras, álcool em gel, distanciamento, entre outros. Mas quando alguém tem suspeita de covid, a pessoa é afastada, assim como quando alguém na família é contaminado”, afirma. Graças a esses cuidados, de acordo com ele, apenas duas pessoas foram contaminadas até o momento, nenhuma delas de forma grave.
A busca pela justiça nos ganhos
A Metalcoop tem uma política de retirada por funções, e um princípio firmado desde o início: a retirada mais alta nunca pode ser superior a cinco vezes a retirada mais baixa. É uma maneira, segundo Cláudio, de garantir que todos possam receber um bom valor mensalmente, mas ainda assim garantir que o empreendimento não perca para o mercado aquelas pessoas que cumprem funções mais especializadas.
Hoje, a Metalcoop conta com 33 cooperados, e segundo Cláudio ninguém retira menos de R$ 3500, complementados por previdência social, tanto via pessoa jurídica como física, auxílio alimentação, plano de saúde e outros benefícios. “Se considerarmos que temos, entre nós, funcionários com muito pouca instrução, é um ganho muito maior do que poderiam ter lá fora, em outras empresas”. No entanto, o inverso é verdadeiro: os mais qualificados acabam por receber menos do que a média do mercado.
Mas por que, então, essas pessoas continuam na cooperativa? Para Cláudio, a resposta é simples. “Aqui, trabalhamos um pouco pela nossa retirada, sim, mas um pouco também pela ideologia, e por tudo que o nosso trabalho gera, para nós mesmo e para a comunidade. É o que nos motiva”, complementa.
O desafio de ser cooperado
Cláudio lembra de uma passagem, no início da existência da Metalcoop, que ilustra bem como pode ser desafiador conscientizar trabalhadores acostumados com uma lógica de mercado capitalista, baseada na carteira de trabalho assinada e na garantia de direitos trabalhistas, a se tornarem “donos” da própria empresa.
“Não foi fácil para todos entenderem o que era cooperativismo, e o que significava ser cooperado. Alguns não conseguiam associar a ideia de que os ganhos só viriam mediante trabalho, e que se em um mês não houvesse trabalho, por exemplo, também não haveria retirada. Eu ouvia coisas como ‘mas no mês seguinte recebemos dobrado então, certo?’” – lembra-se, rindo – “E eu explicava que não funcionava assim. Alguns desistiram no início por isso, por não entenderem ou não acreditarem mesmo.”
Além disso, implementar a disciplina que um cooperado deve ter também foi um desafio. Cláudio aprendeu na pele que certos hábitos não poderiam ser abandonados, pelo bem do dia-a-dia da cooperativa.
“Eu sempre tive um sonho: que os trabalhadores nunca mais tivessem que marcar cartão. Era algo que sempre quis poder fazer por eles. Então, quando criamos a Metalcoop, pensei: finalmente, vou poder realizar esse sonho”, lembra.
Mas as coisas não ocorreram exatamente como ele esperava: os trabalhadores, desacostumados com a ideia, não cumpriam com os horários. “Eles diziam que agora também eram donos, então podiam trabalhar quando quisessem, e eu pensava: entenderam tudo errado! Pois o dono deve dar exemplo, ser o primeiro a chegar. Então infelizmente tive que enterrar o sonho, e até hoje marcamos o cartão aqui”, afirma.
Foi algo complicado para os trabalhadores entenderem: dormir como empregado, e acordar como sócio do próprio negócio. E como, então, essa mentalidade foi modificada? Segundo Cláudio, com conscientização, e muitas reuniões.
“Temos que contar uns com os outros. Fazemos as assembleias regularmente e procuramos manter toda a transparência, para que eles vejam o resultado do próprio trabalho e entendam como é importante a dedicação de todos. Precisamos manter essa mentalidade, senão a cooperativa não anda, e a gente não pode parar”, conclui.
* Texto redigido por Daniel Keppler. Jornalista (MTB 0087305/SP); trabalhou na versão digital do jornal A Tribuna; gestor de redes sociais e cooperado do Livres Baixada Santista