Há 45 anos, surgia na Venezuela uma organização comunitária, com um propósito muito específico: oferecer à comunidade um serviço funerário digno e não especulativo. Mas a sociedade demandava muito mais que isso, e logo a Red Cecosesola se tornou uma rede, múltipla, reunindo dezenas de serviços e mais de mil colaboradores e colaboradoras. Em meio a um país politicamente efervescente e com as finanças oscilando da prosperidade à miséria, muitos venezuelanos encontram nessa rede sua tábua de salvação. Conheça mais sobre a história e trabalho desse movimento, através desse depoimento escrito coletivamente pelos seus próprios membros

A Central de Cooperativas de Lara (Cecosesola) é composta por uma rede de cerca de 50 organizações comunitárias dos setores populares dedicadas à produção de bens e serviços, sendo localizadas em sete entidades federativas da Venezuela. Há mais de 45 anos alimentamos um processo de transformação cultural que se baseia em ir descobrindo outras maneiras de nos relacionar. Trata-se de ir sobrepondo as relações patriarcais que, ao longo de milhares de anos, propiciaram a dominação de uns poucos seres humanos sobre os demais, incluindo tudo o que é vida em nosso planeta. Vemos tais maneiras de se relacionar como transformáveis, porque têm uma origem cultural.

É um processo que não se limita aos mais de 1200 trabalhadores e trabalhadoras associados, que colaboram diretamente na gestão da rede, mas que se irradia a qualquer um que se identifique com ele, e em especial se espraia até nossos familiares, amigos e amigas, assim como também impactam as dezenas de milhares de pessoas que se aproximam pela qualidade e a questão econômica de nossos serviços. 

Nossos inícios

Nosso início foi no ano de 1967 com o serviço funerário, respondendo a uma necessidade muito sentida nos setores populares. Assim como hoje em dia, existia uma grande especulação das funerárias privadas. 

A criação da Cecosesola foi um processo de cerca de dez meses onde, junto de dezenas de habitantes dos setores populares, participamos e demos vida às recém-criadas cooperativas da região. Com muito entusiasmo, nos reuníamos até altas horas da madrugada. Assim prevaleceram os critérios de trabalhar com recursos próprios, além de promover a inclusão, e sempre respeitando a diversidade política e religiosa.

Porém, pouco tempo após a Cecosesola ser legalizada como uma Central de Cooperativas, foi se esvaindo a paixão. Como ocorre em muitas ocasiões, a essência da cooperativa passou a ser definida por seus estatutos, uns estatutos convencionais que, ao invés de integrar, criam separações: o conselho de administração tinha plenos poderes para administrar a cooperativa até a próxima assembleia anual; não se permitia que o conselho de vigilância, participasse das decisões; havia um comitê para “transmitir” educação, ratificando a tradicional separação entre o que transmite seu saber e as outras pessoas que não têm nada ou pouco a agregar; a participação das trabalhadoras e trabalhadores das cooperativas afiliadas por meio de suas delegadas e delegados ficava relegada à tradicional assembleia anual. Assim, esse espaço de participação foi o que restou para a maior parte das pessoas que havíamos envolvido de forma entusiasmada na criação de nossa central cooperativa. . 

O que nos move

O impulso para a criação da Cecosesola foi uma necessidade muito sentida pelos setores populares: ter acesso a um serviço funerário digno e não especulativo. Nossa razão de ser se apoiava na prestação de serviços às pessoas associadas das cooperativas afiliadas.

Atualmente, nossa razão de ser se apoia em um processo educativo de transformação cultural com base na reflexão coletiva sobre o fazer diário. Nossas variadas atividades são os espaços que nos permitem desenvolver esse processo.

O impulso para ir aprofundando esse processo transformador que nos demandamos hoje em dia, iniciou-se no quinto ano de existência da Cecosesola. Começou com um questionamento ao rumo que nossa central cooperativa havia tomado, ao se burocratizar e se limitar a ser uma cooperativa tradicional de (e para) seus associados e associadas, sem maior compromisso social com seu entorno. Além disso, se questionava o conceito educativo de “transmitir” educação, contrário a um processo de compromisso social com base na reflexão sobre o fazer diário. Entre dar o peixe ou ensinar a pescar, decidimos passar a pescar juntos, incorporando a participação de todos e todas, compartilhando nossos conhecimentos e descobrimentos, resgatando assim a essência do nosso início. 

Mudança repentina de rumos: a experiência do Serviço Cooperativo de Transporte

Em 1974, fomos mais um a se integrar às mobilizações dos setores populares contra o aumento da passagem do transporte público. E, posteriormente, depois de cerca de 20 meses de numerosos protestos contra o dito aumento, assumimos a maior parte do serviço de transporte de ônibus da cidade de Barquisimeto, com o compromisso de manter a tarifa. 

Tratava-se de um serviço público a ser gerido com a participação plena das pessoas que trabalhavam com o transporte, assim como também com a comunidade usuária. Além disso, os ônibus constituíam uma ferramenta a serviço das lutas populares. Sendo assim, abruptamente, a Cecosesola deixou de ser fundamentalmente uma cooperativa de (e para) seus associados, começando um novo processo que nos levou ao que vamos nos tornando hoje em dia.

Enfrentados pelo poder

Coincidindo com a chegada dos primeiros ônibus, o país iniciou um processo inflacionário que tornou impossível manter o preço da passagem com a receita existente. Por isso, a partir dos setores populares e do movimento estudantil, efetuamos massivas manifestações em defesa do subsídio necessário. Nossa capacidade de mobilização era muito superior à dos partidos políticos, de maneira que a Cecosesola foi se convertendo em uma referência de poder temida, não só pelo governo vigente, mas também pela maioria dos partidos de diferentes ideologias.

A imprensa foi se aliando com o governo, chegando ao ponto em que o Ministro das Relações Interiores impôs instruções às mídias para que não publicassem nossas declarações, por serem supostamente de um movimento subversivo de extrema esquerda. Isso apesar de nunca termos tido filiação política. Em várias ocasiões fomos detidos pelas forças policiais.

Por quatro anos, mantivemos igual a tarifa da passagem, até nossas instalações de transporte foram apreendidas pelo governo em março de 1980. O conselho municipal assumiu a administração do serviço e imediatamente duplicou o seu valor, e só nos devolveriam os ônibus se nossa diretriz fosse substituída por outra disposta a se desfazer do Serviço Cooperativo de Transporte.

A assembleia da Cecosesola negou esta petição e só depois de mais quatro meses de resistência, conseguimos resgatar a frota de ônibus que havia sido 70% destruída pela administração governamental. As perdas econômicas e as dívidas contraídas ao fechar o serviço em 1985 terminaram ficando na ordem dos US$ 7 milhões. Tratava-se de uma perda de 30 vezes o capital investido, em uma conjuntura econômica impossível de superar operando com critérios empresariais. Assim, quebrados economicamente, nossa possibilidade de sobreviver residia no processo educativo de autogestão iniciado no próprio Serviço Cooperativo de Transporte.

Havíamos vivido nossa primeira experiência de ir enfraquecendo as hierarquias, fomentando um processo participativo das pessoas que autogeriam diretamente os serviços, assim como das comunidades, um processo que já nessa época havia propiciado um incipiente, mas significativo sentido de identidade. Ao nos apoiarmos nessa vivência, e sem capital financeiro, no ano de 1983 iniciamos as Feiras de Consumo Familiar (nossos atuais mercados cooperativos). Com os recursos gerados por ela, saldamos todas as dívidas contraídas, e, ainda por cima, as feiras tornaram-se o motor econômico principal das atividades atuais da Rede Cecosesola. 

Nota-se que essas múltiplas atividades se desenrolaram majoritariamente utilizando recursos próprios. Como exemplo temos a construção de nosso Centro Integral Cooperativo de Saúde, avaliado em cerca de US$ 3 milhões – no qual investimos uma porcentagem importante dos excedentes das feiras, assim como o produzido por diferentes iniciativas cooperativas.

Novos caminhos e relações com o poder

Depois da experiência do Serviço Cooperativo de Transporte, a Rede tomaria um rumo diferente. Já não seria mais a mesma. Ainda que mantidos e reforçados nossos fundamentos iniciais, a autogestão foi continuada e aprofundada num processo de transformação pessoal e organizacional que nos levou por outros caminhos.

Nesta caminhada aprendemos que nosso processo aberto à diversidade entra em contradição com o mundo da luta pelo ou contra o poder. As relações de competição que se geram nesta luta poderiam ser uma das principais causas que nos levaram à crise humanitária atual e constituem justamente as relações que tentamos transformar. 

Fomos aprendendo a evitar que nossos encontros e reuniões se constituíssem em instâncias burocráticas obrigatórias para tomar decisões, de tal maneira que qualquer um possa desenvolver iniciativas sem passar por esse filtro. Ainda que as reuniões sirvam para tomar decisões, este não é seu papel fundamental. O fundamental se encontra na conversação sobre nossas maneiras de nos relacionar, assim como em ir consensuando critérios coletivos baseados em nossos fundamentos éticos de responsabilidade, apoio mútuo e equidade.

Assim promovemos a ideia de que nos tornássemos responsáveis e atuássemos sem necessidade de esperar uma reunião, amparados sobre os critérios e fundamentos que fomos construindo. Mas é claro que, no caso de uma pessoa atuar por critérios pessoais, descolados dos critérios e fundamentos coletivos, se colocaria fora de nossos consensos assumindo individualmente as consequências dessa ação. 

Nem um nem outro

Assim, fomos deixando de ser uma organização vertical, mas sem tampouco querer nos converter em uma organização horizontal onde tudo, ou quase tudo, tenha que passar por uma reunião, organizações estas que tendem a ser ainda mais burocráticas que as verticais. Nem um, nem outro. Tentamos ir mais além da dualidade de ser horizontal ou vertical, imposta pelos nossos conceitos culturais. Trata-se de um projeto coletivo (mas não coletivista), onde estamos muito pendentes dos mecanismos culturais de nivelação que tendem a reduzir cada qual ao menor denominador comum, castrando nossa evolução pessoal. O fundamental é essa evolução individual, que transcende o individualismo. 

Desta maneira vamos aprendendo que as relações niveladoras são como um tumor que faz metástase rapidamente se não se corta a tempo. Sugam nossas energias assim como a kriptonita faz com o Super-Homem.

O simples e o complexo

Aprendemos além de tudo que sair das relações hierárquicas não se decreta, tampouco se pode decretar a confiança, e que a equidade só se constrói enquanto reconhecemos e respeitamos o que nos diferencia pois não somos iguais. Muitos elementos que tendemos a considerar naturais e insubstituíveis para realização de qualquer atividade, não são só desnecessários, mas também podem se converter em impedimentos que em vez de integrar, dividem e separam. Como exemplo, a negativa a compartilhar as responsabilidades, a inviolabilidade das leis de mercado, a competição como regra de ouro da produtividade, a diferenciação salarial como elemento fundamental de motivação, assim como a ênfase na especialização. 

Assim compreendemos que fomos formados em uma sociedade da separação. De tal maneira que vivemos imersos numa cultura que tende a dar ênfase ao que nos separa, mas não na imensa riqueza que nos une, pois todos e todas buscamos resolver as mesmas necessidades. Contrariamente, nosso processo vai até a integração, construindo relações harmônicas de confiança e respeito baseadas na responsabilidade, equidade e no apoio mútuo. Enfim, em relações empáticas e compassivas. 

Derrubando fronteiras

Desde a época dos ônibus propiciamos a participação das comunidades na gestão dos serviços da rede. Trata-se de um esforço permanente para transcender essa fronteira entre o que serve e o que é servido. Um esforço que implica ser consequentes com nossos fundamentos éticos sendo fiel a palavra empenhada. 

O resultado foi uma crescente identificação da população em geral com o que vamos nos tornando. 

Essa relação comunitária empática continuou a se aprofundar com o tempo e ante às situações dramáticas que vão acontecendo com o país, tentamos responder solidariamente. Por exemplo, nos anos de extrema escassez de produtos básicos, entre os anos de 2014 e 2018, nossas feiras eram a principal alternativa que tinham grande parte das pessoas para conseguir alguns desses produtos.

Enquanto muitos negócios se desfaziam rapidamente das mercadorias que escasseavam vendendo-as por maior volume, em nosso caso distribuíamos com critérios de equidade, buscando que o pouco que se tinha alcançasse o máximo número de pessoas. Podia ser só um quilo de macarrão, arroz ou farinha de mandioca por pessoa. De igual maneira, as trabalhadoras e trabalhadores que geriam diretamente os serviços da rede podiam levar a mesma quantidade. 

Nessa época, mais de cem mil pessoas vinham semanalmente fazer suas compras, nos mais de 300 entrepostos existentes. O trabalho começava às 6 da manhã e ia até altas horas da noite (em uma ocasião até as 23h). Só fechávamos os portões quando a última pessoa fazia suas compras, para levar a seu lar algo de comer.

Na ocasião do apagão elétrico de cinco dias em março de 2018, com a maioria da população sem condições para fazer suas compras e sem luz nos pontos de venda, os negócios que comercializavam comida na cidade fecharam suas portas temendo saques. Contrariamente, nossas feiras se mantiveram abertas fornecendo mais de 100 toneladas de verduras, o que para muitos foi sua única possibilidade de levar comida às suas casas.

Essa longa história de empatia comunitária concorda com os resultados de uma pesquisa, realizada na cidade de Barquisimeto pelo Centro Gumilla, e financiada pela Unviersidade Católica Andrés Bello (2018), dentro da qual foi ressaltado que 90% dos entrevistados respondeu que, se alguém tentasse prejudicar a Cecosesola, a apoiaria e faria qualquer coisa para defendê-la. 

Isto se manifesta diariamente na atitude de cuidado pelos serviços da rede e por uma confiança em participar, seja pessoalmente ou por meio das redes, dando opiniões ou sugestões. 

Resiliência: uma história de tenacidade e flexibilidade

A capacidade de resiliência, demonstrada ante a derrocada econômica derivada da experiência do Serviço Cooperativo de Transporte, foi se aprofundando com o tempo, e se manifesta hoje diante da dramática situação que se vive no país, agora ampliada com a chegada da pandemia. 

Ao longo dos anos, enfrentamos os “vai e vem” do país, entre eles, saques massivos, três golpes de Estado, violentas manifestações ao redor de nossas instalações e também, diante das intrigas políticas da época, desenrolando estratégias de sobrevivência quando o governo venezuelano tinha como política a expropriação de múltiplas empresas por decreto. 

A essa altura, pelo que se dizia nos corredores, já não éramos o movimento subversivo de extrema esquerda dos anos 1970, mas, por capricho da graça, tínhamos nos convertido em capitalistas raquíticos. 

E foi assim durante os últimos tempos, uma vez passada a bonança petroleira e agora com o bloqueio e a pandemia, o que se evidencia de novo com força é a resiliência que se encontra implícita em nosso processo transformador. 

Foi um período no qual tivemos que nos adaptar praticamente de imediato às mudanças permanentes tanto das leis como das regras do jogo informal, sabendo intuir quando uma predomina sobre a outra e, ao mesmo tempo, ter presente nossa posição ética ante o avanço crescente da corrupção.

Estamos enfrentando uma realidade permanentemente mutável, que nos exige a flexibilidade de adaptação ante as novas situações que vão se apresentando, muitas vezes sem aviso prévio. Vivenciamos uma inflação que obrigou a cortarmos oito zeros da moeda e já se anunciam mais seis, totalizando quatorze. Assim, experimentamos a repentina e enorme baixa do poder aquisitivo da população. 

Depois de passar primeiro por uma dramática escassez de alimentos, agora nos encontramos em uma situação de abundância com uma sobreoferta por parte de novos negócios improvisados que não cumprem as medidas sanitárias, que evadem até o imposto de valor agregado e pagam salários precários. Padecemos uma escassez endêmica de eletricidade que esporadicamente paralisa diferentes regiões e, em uma ocasião inesquecível, o país inteiro por cerca de cinco dias. Sofremos frequentes quedas das conexões dos pontos de venda que terminam paralisando suas atividades por dias inteiros. 

Passamos a ser obrigados a criar nossas próprias rotas de transporte para suprir as grandes falhas desse serviço público. Ainda assim, mantivemos sempre abertos nossos serviços quando os demais fechavam ante ameaças de saque e isso muitas vezes em meio a violentos enfrentamentos de manifestantes com as forças de segurança. Acabamos por superar uma reiterada escassez de combustível que por momentos paralisa os processos produtivos assim como a distribuição de mercadorias. E em meio a todas essas circunstâncias, confrontamos uma pandemia com quarentenas e medidas sanitárias que incluem fechamentos temporários e toques de recolher.

É evidente que imersos a esses problemas e muitos outros se reduziu a periodicidade de nossos encontros educativos e se afeta grandemente nossas receitas e custos, assim como o que recebem periodicamente os associados e associadas. 

Frente a essas situações, nosso processo educativo continuou se fortalecendo, a grande maioria dos produtores e produtoras da rede segue produzindo e nossos serviços continuam sendo para a população, por longo período, a alternativa mais econômica. De maneira que, ante as penúrias que confrontam a maioria dos venezuelanos e venezuelanas, nosso aporte solidário tem mais importância. 

* Esse texto foi elaborado por um coletivo de autoras e autores da Red Cecosesola, cujos escritos são produtos do seu conviver e compartilhar